Reportagens

Violência policial em SC é invisibilizada como estratégia da branquitude

No Brasil, 83% das vítimas da polícia são pessoas pretas; em SC, dados de letalidade policial não têm recorte por raça; para a antropóloga Flávia Medeiros, o motivo passa pela propaganda de um Estado que se diz “a Europa no Brasil”

Reportagem por Marcela Catelan e Rodrigo Barbosa

A polícia matou cerca de 18 pessoas por dia no Brasil entre janeiro e dezembro de 2022, totalizando 6.430 vítimas. A maior parte era do sexo masculino (99%), negra (83%) e foi morta por arma de fogo (99%). Os dados são da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), em Santa Catarina, houve um aumento de 72% nas mortes cometidas por policiais civis ou militares entre os anos de 2022 (43) e 2023 (74). 

Esses números, no entanto, são pessoas.

Entre elas, provavelmente está Antônio, homem negro de 38 anos, morto pela PM de Florianópolis no Morro do Mocotó, em março de 2023, em operação omitida pelas forças de segurança e denunciada em primeira mão pelo Cotidiano UFSC. Em 2024, o panorama promete ser o mesmo, visto que apenas entre os dias 20 e 24 de janeiro a PMSC foi responsável por quatro mortes na região metropolitana de Florianópolis.

Convidamos Flávia Medeiros, professora doutora de Antropologia da UFSC e especialista em segurança pública, para debater a violência policial. Coordenadora do projeto Ebó Epistêmico e militante da Renfa (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas), Flávia foi condecorada em novembro de 2023 com a Medalha Cruz e Sousa, que homenageia pessoas negras com contribuição relevante para Santa Catarina, e traz um recorte afrocentrado de sua visão para o problema da violência policial em Santa Catarina. 

Cruzes no canteiro da Rua Silva Jardim, em 20 de maio de 2020, denunciavam a violência policial na comunidade do Mocotó. Foto: Rodrigo Barbosa

“Investimento” em Segurança Pública

“O Governo do Estado coloca outdoor na cidade ‘O maior orçamento em segurança pública da história’, sendo que eles, ao mesmo tempo, argumentam que é o lugar onde não existem problemas de segurança pública. Então pra que tanto orçamento em segurança pública? Se não tem crime e violência?”, questiona Flávia.

O apontamento da antropóloga vai ao encontro dos números divulgados pelo 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que mostram um aumento de 22% em gastos relacionados à Segurança Pública em SC desde 2019. Em 2023, foram mais de R$ 3 bilhões investidos na área. 

Em contrapartida, também corroborando o pensamento da antropóloga, Santa Catarina vê a maior parte de seus indicativos de violência caindo ano após ano. Foram 689 mortes em 2022, número 40% menor do que o registrado seis anos antes. Proporcionalmente à sua população, Santa Catarina é o segundo Estado com menos mortes violentas no país. 

Há indicativos, entretanto, que vão na contramão do discurso institucional e explicitam que a Segurança em Santa Catarina é oferecida de maneira seletiva. O número de pessoas mortas pela própria polícia aumentou quase duas vezes mais que a queda nos indicativos de mortes violentas.

74 pessoas foram mortas pelo Estado em 2023 – um dos cinco anos mais violentos da história da polícia catarinense. 

Flávia Medeiros pontua que este é um problema generalizado no país e que têm suas raízes numa política antidrogas baseada no racismo: “De uma maneira bem geral e superficial, a continuidade desse processo de produção de morte voltado às populações tratadas como periféricas, vulnerabilizadas por conta da ausência de políticas públicas, e cuja linguagem oficial do Estado é a da violência armada e como isso se estende, se reproduz e se aprofunda em diferentes contextos. Em cada cenário, de cada Estado, cada região metropolitana se expressa com suas particularidades. É um fenômeno generalizado e sendo aqui um pouco afro pessimista, sem caminho de resolução a curto e médio prazo”. 

É importante pontuar que os números apresentados são relativos apenas às mortes. Não consta nenhum levantamento relativo às agressões não-letais e intimidações sofridas por moradores de favelas, ocupações, por pessoas em situação de rua e movimentos sociais, por exemplo.

Mortes de Santa Catarina não têm raça, gênero ou idade

Se em nível nacional é relativamente fácil corroborar a origem racista das políticas de Segurança Pública no país, Santa Catarina se esforça para esconder os rostos de quem mata. Os dados divulgados mensalmente pela Secretaria Estadual de Segurança Pública são números frios, não contemplando recortes de raça, gênero, idade ou localidade das vítimas.

“Eu acho que a questão tanto de esses casos não repercutirem, da polícia e da segurança pública não publicarem os dados, é uma estratégia não apenas de invisibilizar isso [o genocídio de pessoas pretas], mas é porque se visibiliza outras coisas. Que é a Santa Catarina ideal, a Europa no Brasil, onde as coisas são feitas de um jeito certo. Onde não tem negro, não tem pobreza, crime ou violência. Então política pública nem se pensa pra isso, porque ‘isso não é um problema aqui’. Aqui se invisibiliza, oblitera, apaga e esconde como se não existisse. Em cima justamente dessa ideia da branquitude”, afirma Flávia. 

Embora não divulgados à sociedade, esses recortes poderiam (e deveriam) ser devidamente organizados pelas próprias instituições do Estado. Isto porque toda morte violenta (ocasionada ou não pelo Poder Público) gera um laudo, no qual existem descrições da vítima.

Flávia revela que já teve acesso a laudos produzidos pela polícia que, inclusive, separam as categorias raciais “negro” e “pardo”. Segundo ela, “desmembrando os pardos dos negros, colocando negro como sinônimo de preto e esvaziando a categoria negro, tirando os pardos e subnotificando os negros, mas também sobrenotificando o pardo. Porque eles tratam o pardo isolado da categoria negro. Então já tem um problema nisso”.

Além disso, há pelo menos um caso concreto investigado pelo Cotidiano UFSC em que o Estado foi responsável pelo embranquecimento póstumo da vítima. Nathanael Alves Mendes, adolescente de 17 anos morto pelo Batalhão de Choque no Morro do Mocotó em 27 de setembro de 2021, era negro. No laudo de sua morte, ao qual tivemos acesso, Nathan é descrito como um “masculino branco”.

Moradores do Mocotó durante protesto contra a violência policial em 24 de setembro de 2019

Câmeras corporais e a espetacularização da violência

“Eu cheguei em Florianópolis na época da pandemia. Aí trancada em casa, eu ficava no YouTube pesquisando e assistindo coisas. Até que achei o fatídico e incrível canal da PMSC, o canal oficial da Polícia Militar em Santa Catarina. Lá, achei os vídeos do Papa Mike, em que eles usam as câmeras corporais e das viaturas para fazer vídeos editados.”, lembra Flávia, se referindo à série ‘Papa Mike SC’. 

A série em questão tem 34 episódios e estreou em março de 2019, sendo o carro-chefe do canal. Nela, são exibidos vídeos de abordagens em diversas localidades do Estado, em sua maioria vulnerabilizadas. Parte das imagens da segunda temporada da série foram captadas das câmeras corporais dos policiais (e posteriormente editadas). As câmeras estão presentes no fardamento da PMSC desde julho de 2019 para, teoricamente, conferir mais lisura às ações policiais. Teoricamente. 

“A minha preocupação em relação a isso é como a gente pode garantir que essas câmeras corporais não sejam mais uma forma de violência que a polícia use contra as vítimas. Se o argumento dessas câmeras é para evitar que os policiais cometam crimes e que, caso cometam, isso vire prova, a minha pergunta para o responsável pelas câmeras corporais, é: Qual é a cadeia de custódia dessas gravações? Quem são os responsáveis pela manutenção desses registros? E quem vai garantir que não vai ter violação da privacidade da imagem das pessoas? Quem vai garantir que a LGPD vai realmente ser cumprida?

Porque o que a gente vê é que aqui em Santa Catarina é que isso não existe. 

Como que isso vai ser efetivamente utilizado como prova para proteção das potenciais vítimas e para responsabilização das pessoas que cometem crime? Eu já digo pra vocês, eu acho que não vai”, afirma Flávia. 

A embranquecida morte do adolescente Nathanael, já mencionada anteriormente, também serve para ilustrar o uso seletivo das câmeras. Naquele caso, dos mais de vinte policiais militares envolvidos na operação, apenas um portava câmera. O próprio comandante da corporação confirmou à época que a câmera em questão encontrava-se na entrada da comunidade no momento dos disparos, a meio morro de distância do ponto crítico da operação.

Dois anos antes, uma outra operação realizada pelo 4º Batalhão (4BPM) no mesmo local também não foi gravada. A câmera que poderia ter filmado a morte do jovem Shilaver, de 22 anos, foi ligada após a realização dos disparos – fato também confirmado à nossa reportagem pelo comandante do 4BPM à época. O equipamento da PMSC é muito criticado por permitir ao policial que o porta desliga-lo e religa-lo a qualquer momento, através de um botão de fácil acionamento. O procedimento é diferente do adotado, por exemplo, pela PM de São Paulo, onde o policial não tem este poder.

Se têm falhado em sua função principal, as câmeras têm gerado resultado na espetacularização da violência. De acordo com a plataforma SocialBlade, que fornece métricas de perfis em redes sociais, o canal PMSC no YouTube conta com quase 25 milhões de visualizações, somando-se seus 521 vídeos. Destas, mais de 22 milhões são relativas aos vídeos da série Papa Mike. 

Número de views por categoria de vídeo no canal do YouTube da Polícia Militar de Santa Catarina

A série não é atualizada desde dezembro de 2019, pouco tempo antes da sanção da Lei 13869/19, que dispõe sobre crimes de abuso de autoridade. Porém, os vídeos do “GTA da internet”, como a pesquisadora se refere à série, seguem no ar. 

“Existe uma legitimidade de matar. Não é só que eles matam, mas que têm a autorização prévia e a posteriori de que eles mataram de forma justa, a tal da injusta agressão. A polícia é a violência legitimada, organizada e cada vez mais desejada por parte de sociedade também. Não é só provar que eles atiraram, isso não é o ponto. O ponto é discutir quem pode matar e quem deve morrer. Porque se acredita realmente que as pessoas devem morrer”.

O futuro

Movimentos sociais têm tentado propor resoluções concretas acerca do tema. Em Florianópolis, a violência policial foi tema recente de audiências públicas na Câmara Municipal (junho de 2022) e na Alesc (novembro de 2023), mas, até o momento, não é possível ver impacto prático destes encontros nos morros. Prova disso foram as quatro mortes causadas pela PMSC na região metropolitana em menos de uma semana, entre os dias 20 e 24 de janeiro. 

Na noite do dia 20, um jovem foi morto no Morro do Horácio, em Florianópolis. De acordo com testemunhas, policiais armados de fuzil fecharam a Rua Geral do Horácio por ao menos três horas após o ocorrido e houve sobrevoo de helicópteros sobre a comunidade no dia seguinte. Em 21 de janeiro, um homem foi morto e outro ferido no bairro do Brejaru, em Palhoça. O caso revoltou a comunidade, que afirma que o homem morto trabalhava com reciclagem e estava em um aniversário quando morreu. Houve protestos no local. Na noite seguinte, um homem foi morto perto do Elevado Dias Velho, no Centro de Florianópolis, após, segundo a PM, tentar agredir policiais com uma faca. Por fim, na madrugada de 23 para 24 de janeiro, um quarto homem foi morto no Morro do Mocotó, região central da capital. De acordo com testemunhas, não houve troca de tiros ou apreensões, e a vítima tratava-se de um homem em situação de rua que não residia na comunidade – assim como um segundo homem que foi baleado ao seu lado. Uma moradora foi atingida por estilhaços. Com exceção do caso do Dias Velho, a PM afirma ter reagido a disparos de arma de fogo em todas as ocasiões.

A revolta expressa no Brejaru não é inédita. Uma série de manifestações foram realizadas pelas próprias comunidades ao longo dos anos, via de regra sendo reprimidas pela mesma polícia que era alvo de críticas dos atos. Na morte de Mãozinha, em março de 2023, o comandante do 4BPM, Rodrigo Serafin, admitiu à nossa reportagem que viaturas foram colocadas ao pé do Mocotó na manhã seguinte para “controlar uma possível manifestação popular”. Fatos que apontam que o Estado não está disposto sequer a debater devidamente a questão.

Para Flávia Medeiros, a falta de prestação de contas nos casos de morte ocasionadas pelo Estado está diretamente relacionada ao que define como um “álibi”, que é legitimação da guerra às drogas.

“A política proibicionista de drogas funciona como um tipo de dispositivo, um feixe de poder que é utilizado nessa extensividade do que é o dever negro. Que não se restringe especificamente a corpos de pessoas que se identificam como negras, mas a corpos passíveis de racialização pelas hierarquias de poder no qual a violência armada é a principal linguagem.

Quando a gente pensa na violência policial motivada pelas questões de racismo, na verdade eu acho que a gente fala da violência policial sustentada pela política de drogas. Que é uma política de repressão, punição e proibição para nutrir ou valorizar mais o mercado de drogas. E quanto mais colocadas à margem da legalidade, mais ganho se tem para seus agenciadores”. 

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