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Três anos sem soluções: atingidos por rompimento de barragem da Casan em Florianópolis reivindicam desativação do sistema de bombeamento

Sistema que deveria ser provisório continua operando, causando danos ambientais em Unidade de Conservação

Reportagem e fotografia por Cintia de Oliveira

Um grupo de cerca de 30 pessoas está reunido nas margens da Avenida das Rendeiras, muitos deles vestindo camisetas brancas decoradas com o símbolo verde do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O cenário de fundo é a Lagoa da Conceição, um dos cartões postais da capital de Santa Catarina, e entre os gritos de ordem entoados está: “águas para a vida e não para a morte”. Com microfone na mão, os manifestantes fazem questão de chamar o rompimento da lagoa de evapoinfiltração (LEI) que devastou a Servidão Manoel Luiz Duarte de “maior crime socioambiental da história de Florianópolis”. 

Mais de mil dias se passaram desde que uma enxurrada de água e lama despertou todos os moradores da Servidão, por volta das 5h40 da manhã de 25 de janeiro de 2021. A água que levou bens materiais e afetivos de mais de 50 famílias era o suficiente para encher cerca de 40 piscinas olímpicas, mais de 100 milhões de litros, e veio de uma lagoa de evapoinfiltração (LEI) que rompeu, sob responsabilidade da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan).  

Mesmo passado todo este tempo, para os atingidos a memória daquela manhã é bem viva. Todos os anos, eles se reúnem no mesmo dia 25 de janeiro, no exato local onde água e lama desaguaram na Lagoa da Conceição para que a população da cidade também se lembre. Além da reivindicação da memória sobre o desastre e de celebrarem a própria luta, pedem a desativação do bombeamento da LEI para o Parque Natural Municipal de Dunas e recuperação do ecossistema da Lagoa da Conceição. 

A reivindicação já foi tema de reportagem quando o desastre completava um ano. Passados mais de dois anos daquele texto, a repórter retornou ao local para atualizar a situação. Basicamente, o único processo que foi concluído de forma satisfatória para os atingidos foram as indenizações pelos danos materiais. Resta ainda uma Ação Civil Pública na Justiça para que os atingidos recebam uma indenização pelos danos morais e ambientais causados pela Casan, além do clamor por reparação ambiental. 

Manifestação em 25 de janeiro de 2024 marcou os três anos do rompimento da lagoa de evapoinfiltração
Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) auxiliou os moradores da Servidão Manoel Luiz Duarte desde o dia do desastre

Sem soluções definitivas

A chamada LEI (lagoa de evaponfiltração), com profundidade de mais de nove metros, ainda está lá, enfiada no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, a cerca de 300 metros das casas da Servidão Manoel Luiz Duarte. Continua recebendo a água resultante da Estação de Tratamento de Esgoto da Lagoa da Conceição (ETE), que fica localizada nas proximidades, na rua Mandala. 

Em 2021, o rompimento da barragem, conforme revelado pela reportagem anterior, foi causado pela perda da capacidade de infiltração da lagoa  por conta de uma camada de lama acima da superfície de areia. A Casan já tinha ciência do processo de perda de capacidade de infiltração e aumento da área da LEI pelo menos desde de dezembro de 2018 como mostra um ofício da própria companhia.

Após o rompimento, em junho de 2021, a Companhia começou a realizar o bombeamento emergencial da lagoa. Este processo que consiste em diminuir artificialmente o nível de água da LEI, jogando parte da água em outra área das dunas.  O objetivo é manter o nível da água em cerca de nove metros e evitar novos rompimentos ou transbordamentos. 

Tanto a LEI quanto o sistema de bombeamento ficam dentro do Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, uma Unidade de Conservação Permanente, que abriga vegetação de restinga. A gestão da área é de responsabilidade da Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis), que é também o órgão que fiscaliza e emite as autorizações ambientais para o funcionamento e obras do sistema.

Ubirajara Camargo, conhecido como Bira, morador atingido que se tornou militante do MAB, comenta ironicamente que “está tudo como planejado”. A lagoa de evapoinfiltração continua funcionando e o bombeamento que foi ativado como medida emergencial continua sendo utilizado. Segundo ele, “nada foi feito para restauração ambiental. Na verdade, a degradação só está aumentando, por conta do bombeamento para as dunas”.

O morador aponta o bombeamento como algo pior do que a LEI, pois é muito “menos cuidado, porque está simplesmente jogado. Simplesmente bota água nas dunas e deixa escorrer”, enquanto a lagoa tem delimitações e um barramento.  Ele questiona: “Já foi feita a limpeza [do fundo da lagoa], já foi feito o muro, por que ainda tem o bombeamento? Porque é confortável. O que era provisório virou essencial”. 

Lagoa de evapoinfiltração ainda em funcionamento no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição
Lagoa de evapoinfiltração ainda em funcionamento no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição

O muro verde citado por Bira é uma contenção para evitar novos deslizamentos da barragem, que foi finalizada em março de 2022. Já a limpeza do fundo, foi um procedimento que deveria fazer com que a capacidade de infiltração voltasse, estabilizando o nível da lagoa. No entanto, o bombeamento continua sendo ativado para manter o nível do local, o que indica que a capacidade de infiltração não foi recuperada. Sobre a capacidade de infiltração, em 2022 a Casan havia afirmado que dependia da finalização de um estudo geotécnico para verificar a capacidade. No entanto, desta vez, questionada pela reportagem, a assessoria afirmou que o estudo citado “não avaliou a capacidade de infiltração”. 

Roberto, um dos moradores atingidos, classificou o bombeamento como uma “gambiarra”. Para ele, o sistema prejudica o turismo na região, pois está “feio para caramba”. “Gastaram R$ 180 milhões para ficar daquele jeito. Eu vou lá direto e choro, era para ter natureza e não uma lagoa de esgoto”, diz ele. 

A assessoria de imprensa da Casan negou acesso aos relatórios do bombeamento, portanto não é possível saber qual volume vem sendo lançado nas dunas, nem com qual frequência. No entanto, os relatórios de 2021 mostram que somente naquele ano foram mais de 58 mil metros cúbicos de efluentes despejados nas dunas, o equivalente ao volume de 23 piscinas olimpícas.

Bombeamento emergencial começou em junho de 2021 e continua sendo acionado; lagoa já ocupa grande área da Unidade de Conservação

Apesar de o efluente da estação de tratamento ter passado por uma melhora na qualidade, segundo a Casan, com a retirada de compostos orgânicos como nitrogênio e fósforo que causam poluição, o despejo no Parque já afeta negativamente o ambiente. Um estudo, desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso de Biologia, por Thiago Lorencetti Ehlert, recomenda “a interrupção de lançamento de efluente sobre a vegetação de restinga, uma vez que se configura um fator de degradação em uma unidade de conservação”. A conclusão se deve à análise de um ano, que demonstrou que o lançamento do efluente vem diminuindo a quantidade e a diversidade de vegetação na área atingida no Parque Natural das Dunas da Lagoa da Conceição. 

De acordo com a Casan, a desativação do bombeamento está condicionada a destinar o efluente para um campo de aspersão. O campo de aspersão consiste no mesmo tipo de sistema que a atual LEI, de infiltrar a água no solo, apenas sem a formação de uma lagoa. De acordo com a empresa, para o campo de aspersão será utilizada outra área do Parque Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição e o projeto já teve aprovação da Floram. 

A reivindicação dos atingidos para a desativação do bombeamento faz parte de uma mobilização maior para a restauração ambiental da Lagoa da Conceição e a preservação do Parque Natural das Dunas da Lagoa da Conceição. Para marcar esse compromisso, eles propõem a criação do Memorial VERA, sinônimo de Valorização Ecológica e Recuperação Ambiental. Vera é também uma homenagem a Vera Herbert, professora que morava na Servidão Manoel Luiz Duarte, que se engajou na luta pela reconstrução da vida dos atingidos, e morreu dois meses e meio depois do rompimento da barragem da Casan, em decorrência da covid-19. 

A Casan, em conjunto com a Universidade de Santa Catarina (UFSC) e a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), em junho de 2022, financiaram um edital que contemplou cerca de 20 projetos que beneficiam a Lagoa da Conceição. Um desses projetos é o Restaura Restinga, que prevê o plantio de mudas nativas na área afetada pelo rompimento da barragem. Representantes do projeto estavam na manifestação de 25 de janeiro de 2024 e forneceram as mudas de árvores que foram plantadas pelo pequeno grupo de manifestantes como símbolo da luta pela recuperação ambiental, pela memória dos atingidos e por uma Lagoa da Conceição viva.

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