Walderes Coctá Pripá em seu filme "VÃNH GÕ TÕ LAKLÃNÕ" (Foto: Reprodução)
Reportagens

Povos indígenas conquistam espaço no audiovisual catarinense

Realizadores colecionam prêmios e usam o cinema como ferramenta de luta e representação

Reportagem por Lara Schweitzer

Um pôr-do-sol aparece na tela enquanto uma voz diz: “Ser indígena não está na tinta do urucum, no adereço da cabeça ou no que o índio pode ou não usar. Ser indígena está em nossa ancestralidade, em nossas lutas diárias de resistência no mundo que nos discrimina, ignora e extermina”. Entre outras frases, surge uma tela preta com agradecimentos e créditos e o documentário Os Povos Originários Catarinenses, de Ítalo Mongconãnn, chega ao fim. 

O curta-metragem foi o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Ítalo, que é do povo Laklãnõ/Xokleng e foi a primeira pessoa indígena a ingressar e se formar no curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2018. Produtor e distribuidor da Guatambu Filmes, Ítalo é um dos cineastas indígenas que têm conquistado espaço no audiovisual catarinense. A presença indígena nesse segmento ainda é pequena, mas vem ganhando força nos últimos tempos. Só nos últimos dois anos, foram lançados filmes como Maloca Nossa Luta, Aqui Onde Tudo Acaba e Vãnh gõ tõ Laklãnõ em Santa Catarina.

A trajetória de Ítalo como estudante – e agora, cineasta – sempre foi voltada para produções indígenas. No segundo ano de faculdade, em 2015, fez o documentário Resistir: Vários povos, uma só luta, como resposta a alguns comentários preconceituosos que haviam sido feitos na internet depois da criação do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Ele recorda que lia comentários como “Esse curso ensina a caçar capivara e fazer cocar”, além de outras falas como: “Vocês andam pelados?” e “Esses índios aí são todos falsos, querem viver às custas do governo”. O curta-metragem apresenta perguntas feitas por indígenas e respondidas por estudantes da UFSC, e traz depoimentos de alunos de diversos povos contando suas vivências no ambiente acadêmico. “Esse trabalho foi muito importante, porque foi um pontapé inicial para a minha trajetória no cinema de luta, de resistência”, conta.

Ítalo Mongconãnn em seu filme “Os Povos Originários Catarinenses”(Foto: Reprodução)

O cineasta considera o audiovisual uma gigante ferramenta de mobilização. Ele explica que o movimento do cinema indígena mudou a forma como o cinema foi pensado para os povos originários. No início, as produções eram criadas para serem trocadas com outros povos. Em determinado momento, como lembra Ítalo, os indígenas tiveram autonomia para produzir outras linguagens, de outras formas, e utilizá-las para ter uma ferramenta de luta em mãos. Ele ressalta, no entanto, que o cinema indígena é mais prestigiado fora do Brasil, sendo recente o reconhecimento dentro do país. 

“Se você perguntar para um não-indígena se ele conhece algum cineasta indígena, ele vai dizer que não, nem sabia que existia. Tem muito chão ainda para a gente conquistar dentro do movimento, principalmente na questão do público. Em Santa Catarina, mais ainda”. Ele também vê o audiovisual como uma forma de quebrar estereótipos e preconceitos, além de dar voz aos povos originários.

“É onde falamos de nós para os outros e para nós mesmos”.

Futuros cineastas

Duas mulheres indígenas ingressaram no curso de Cinema da UFSC em 2023: Édina Mīg Fe Barbosa Farias, do povo Kanhgág, e Suzani Fonseca, do povo Parintintin. Édina já possui graduação em Ciências Sociais e Humanas na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Decidiu fazer Cinema por sua forte relação com a fotografia e sua participação no movimento indígena. Seu objetivo é seguir trabalhando na área, inspirada no trabalho de Ítalo e Takumã Kuikuro. “Desejo enquanto indígena e futura cineasta ser inspiração, assim como eles são para mim. Quero trabalhar com o meu território, fazer ecoar nossas vozes e nossas lutas, mostrar nossa realidade de verdade”.

Suzani ingressou em Nutrição na UFSC em 2022, mas percebeu que Cinema tinha mais a ver com ela e seus interesses, já que gosta de filmes e de criar mundos e personagens. Para o futuro, também quer ter projetos sobre outras temáticas, mas pensa em utilizar o audiovisual como ferramenta para a luta indígena. “A gente vem para a universidade para adquirir o conhecimento não-indígena e poder lutar contra as pessoas que são contra nós. Para mim, é um grande motivador utilizar os aprendizados para dar mais visibilidade ao nosso movimento”.

Para Édina, o audiovisual se concretizou, principalmente nos últimos quatro anos, com o envolvimento dos mais jovens. Ela também ressalta a importância do protagonismo indígena. “É importante que o nosso cinema seja construído a partir do nosso olhar”. Ela explica que várias produções feitas dentro dos territórios são construídas a partir da visão não-indígena, que além de omitirem muitos aspectos, desvirtuam outros.

“Nós mesmos queremos produzir nossos conteúdos”.

Édina se sentiu muito acolhida pelos estudantes indígenas da UFSC e por alguns professores do curso. Suzani também encontrou nos professores compreensão e possibilidade de diálogo. “Quando nós não estamos na sala de aula, estamos em outros espaços lutando”, explica Suzani. 

Oficina do projeto “Valorizando o Audiovisual Indígena na UFSC” (Foto: Fotofilme A magia do encontro, de Vera Collares)

A partir da presença de alunos indígenas no curso de Cinema, professores passaram a criar projetos relacionados às produções dos estudantes. Um deles foi o “Valorizando o Audiovisual Indígena na UFSC”, de 2019, iniciativa conjunta do professor Alfredo Manevy e do estudante Eliezer Verá Antunes, do povo Guarani, que já era um realizador audiovisual na sua comunidade. Quando Eliezer ingressou no curso de Cinema da UFSC, Alfredo viu no cineasta uma oportunidade de aprendizado e enriquecimento para o curso. “A presença da cosmovisão indígena no cinema é algo extremamente potente”, explica. Eliezer foi seu aluno e, depois de muita conversa, surgiu a ideia de fazer um trabalho em sua comunidade, a aldeia do Morro dos Cavalos. Alfredo procurou entender a realidade e as demandas da aldeia, para que o projeto fosse útil tanto para fortalecer a presença de Eliezer como estudante, como para ajudar no desenvolvimento das ferramentas audiovisuais na comunidade Guarani, já que vários jovens do local também sonhavam em trabalhar com cinema. 

Alfredo e Eliezer tiveram a ideia de fazer uma oficina de linguagem e realização audiovisual. Além de conseguirem uma pequena verba para o custeio do combustível, através da Pró-Reitoria de Extensão da UFSC, também receberam apoio do curso através do empréstimo de equipamentos e auxílio de professores e técnicos. Depois desse incentivo, foi aberto um processo seletivo em que cada inscrito deveria enviar uma ideia de roteiro. 

Ao todo, foram 20 inscritos que participaram de um curso de dois finais de semana. A oficina incluiu aulas teóricas e atividades práticas, desenvolvidas a partir de quatro roteiros selecionados. Cada grupo de cinco pessoas produziu um filme, com revezamento de funções e, no último dia, os oficineiros fizeram a montagem e a exibição dos produtos finais, que podem ser acessados no canal do YouTube do projeto. 

O professor Alfredo relata que essa foi a primeira vez que o curso de Cinema da UFSC foi até uma comunidade indígena e se dispôs a trabalhar de uma forma respeitosa, horizontal, tentando construir junto “ao invés de levar uma verdade nossa, como se nós fossemos detentores de um saber maior que eles”. A oficina foi realizada na aldeia do Morro dos Cavalos, mas os participantes eram de diversos povos e tinham toda a liberdade para gravar em outros lugares. 

Alfredo e Eliezer queriam fazer outros módulos, para atender ao desejo da comunidade de ter um núcleo de cinema na aldeia. “É o nosso maior objetivo, porque a gente sabe que nem todos aqueles jovens vão conseguir vir aqui na UFSC e fazer quatro anos de graduação”. Dentre as pretensões do projeto, estavam a formação de jovens realizadores na comunicação audiovisual e a abertura de um diálogo do curso de Cinema com as comunidades originárias de Santa Catarina, oquê até então era feito somente através dos alunos indígenas. 

A pandemia e as dificuldades orçamentárias da universidade inviabilizaram a continuidade do projeto, mas este segue sendo um desejo de Alfredo e Eliezer. “O cinema tem muito a ganhar com a visão indígena, porque é um lugar sagrado que revela muitas dimensões da nossa existência, que vão além do uso puramente informacional ou de entretenimento”. Para Alfredo, o audiovisual é uma ferramenta de afirmação de identidade política e, ao mesmo tempo, para os não-indígenas, a possibilidade de compreender a enorme riqueza de uma cultura que está viva e firme apesar de todas as barbáries. Para ele, um dos grandes acontecimentos do cinema mundial, nos últimos anos, são os indígenas assumindo o audiovisual não apenas como personagens, como tema, mas como protagonistas e realizadores das obras.

Para além da UFSC

Walderes Coctá Pripá é uma protagonista da história de seu povo. É também professora, historiadora, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFSC e primeira indígena a defender um título de pós-graduação na área de Arqueologia no Brasil. Ela é uma das roteiristas e diretoras do documentário Vãnh gõ tõ Laklãnõ, que conta a história de luta, resistência e persistência do povo Laklãnõ/Xokleng. 

O filme mostra a extensa batalha pela demarcação do território Xokleng em Santa Catarina, área que foi foco do julgamento do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Marco Temporal é uma tese que defende que os povos originários só teriam direito às terras comprovadamente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. 

Walderes abre um sorriso ao falar de seu filme. “Eu estou super feliz porque a gente conseguiu colocar no documentário o sonho que a gente sempre teve”. Ela conheceu as outras duas roteiristas e diretoras, Barbara Pettres e Flávia Person, através de Jucelino Senei Filho, estudante de Jornalismo na UFSC, que assumiu a produção local do filme. A ideia de fazer o documentário partiu de Barbara e Flávia, e Walderes prontamente aceitou participar. Barbara conta que seu objetivo com o documentário é “ajudar nessa retomada cultural que eles lideram”. Ela deseja que o filme seja um instrumento de luta, principalmente na discussão do Marco Temporal.

Depois de o curta-metragem ser contemplado pelo edital Elizabete Anderle e pelo Prêmio Catarinense de Cinema, Barbara e Flávia visitaram a terra Laklãnõ pela primeira vez, e Walderes as apresentou para as lideranças das aldeias. “Foi incrível conhecer a terra indígena”, lembra Barbara. Ela conta que fez mais de uma visita, e durante esse processo ela e Flávia sempre tiveram muito cuidado, certificando-se de que fossem às aldeias apenas quando a comunidade concordasse e julgasse seguro, levando-se em conta o risco relacionado à pandemia de covid-19. As três mulheres começaram a escrever os roteiros e iniciaram a pré-produção. “Fizemos rodas de conversa, ou na linguagem não-indígena, entrevistas, com membros da comunidade, anciãos e professores”, conta Walderes. Elas também conversaram com um kujá, o curandeiro da comunidade. 

No fim, a equipe tinha 20 horas de material. O documentário, segundo o edital, deveria ter a duração de 23 minutos. “Não foi fácil. Tinha coisa que eu ficava com dor no coração de cortar”, relembra Walderes. Paralelamente ao filme, Jucelino, com o apoio das diretoras do documentário, idealizava o Portal de Saberes. Inicialmente, a ideia era que o portal fosse físico, uma espécie de biblioteca dentro da comunidade Laklãnõ. A partir da percepção de que o projeto ficaria restrito ao local, com pequeno alcance, surgiu a proposta de estruturar um portal online. Dessa forma, todo o material não utilizado no filme seria disponibilizado, além de servir como contrapartida, levando para dentro da comunidade toda a sua rica contribuição, como explica Jucelino. “Eram materiais valiosíssimos, como estudos de pontas de flecha, contação de histórias e recitação de poemas, que não se encaixavam exatamente na linha do filme”. Atualmente, o portal armazena materiais de diversas comunidades e possui um canal de notícias.

O lançamento do Portal de Saberes na UFSC ocorreu simultaneamente ao pré-lançamento do documentário. “Tivemos uma resposta muito positiva do público”, conta Walderes. No dia seguinte, foram até a aldeia para mostrar o resultado dos dois projetos. Todas as sessões, realizadas em duas escolas, lotaram. Foi necessário até adicionar mais sessões. “Os anciãos amaram o trabalho, a liderança também ficou feliz. Isso para mim é o mais importante, a comunidade receber o filme bem”, afirma Walderes.

Bárbara e Flávia atentaram-se para que o documentário estivesse de acordo com a vontade da comunidade Laklãnõ. “Por sermos brancas, eu e a Flávia sempre tivemos essa preocupação. A cada decisão queríamos ter o aval e o olhar da Walderes. Quisemos ouvir ao invés de impor”.

Para Walderes, o audiovisual é uma ferramenta de luta que deve ser usada para contar a história dos povos originários, possibilitando um amplo alcance dessas informações. Prova disso é o fato de o filme ter sido exibido em outros países, como França e Alemanha.

“Chegou o momento de nós, como indígenas, sermos os protagonistas da nossa própria história. E é o que estamos fazendo hoje. Mas a gente também conta com nossos apoiadores não-indígenas, peças fundamentais para a divulgação dos nossos trabalhos”.

Vãnh gõ tõ Laklãnõ vem rodando festivais e ganhando diversos prêmios, como “Melhor Curta” no Prêmio Canal Brasil e “Melhor Documentário” no Festival de Cinema de Santa Tereza, no Espírito Santo.

Jucelino também é um protagonista da história de seu povo. Junto de Fernando Xokleng, foi nomeado para fazer parte do comitê gestor do Fórum Setorial Permanente Audiovisual de Santa Catarina (FSPAv). É a primeira vez que indígenas integram o comitê, que desde 2013 é responsável por pensar políticas públicas para o desenvolvimento do audiovisual no Estado. Além disso, Jucelino e Cláudia Cárdenas dirigiram o documentário Aqui Onde Tudo Acaba. O filme é um curta-metragem experimental e poético que transita entre os gêneros documentário e ficção, buscando reativar a memória das origens do povo Laklãnõ/Xokleng e sua relação com a natureza. O curta é na língua Xokleng, legendado em português, com um enredo não-linear. São várias histórias separadas que fazem sentido juntas, unidas pelo tema comum das plantas medicinais. Aqui Onde Tudo Acaba vem colecionando diversos prêmios, como “Melhor Curta” no Festival do Salto, no Uruguai, e menção honrosa no Festival Curtas-Brasil.

Jucelino conta que Cláudia, especialista em cinema de 16 mm, o procurou para fazerem algo nesse formato. No início, ele ficou receoso, pois a proposta lhe parecia lúdica demais, mas resolveu aceitar, para testar uma técnica nova e ganhar conhecimento. 

Feito com filmes de 16mm e revelado com plantas, o curta teve todas as suas etapas construídas coletivamente na aldeia Bugio, sem a hierarquia dos diretores. Foram feitas oficinas de áudio e vídeo com os jovens da comunidade, que puderam participar ativamente do filme. 

Apesar de Cláudia e Jucelino terem feito um roteiro prévio para apresentar ao Prêmio Catarinense de Cinema, optaram por fazer o filme sem ele. As ideias para montar o filme partiram das oficinas com as crianças. “Foi um processo de ensinar primeiro e depois aprender a como fazer o filme”. 

Oficina de áudio e vídeo durante a gravação do filme “Aqui Onde Tudo Acaba” (Foto: Jucelino Senei Filho)

Jucelino lembra que as crianças ficavam muito curiosas vendo suas próprias fotos. Na oficina de áudio, eles tinham um equipamento que captava diversos sons em várias frequências e as faixas iam se combinando, formando uma cacofonia de sons da natureza. “Era uma experiência sensorial muito forte. Foi um processo divertido porque as crianças se divertiam muito”. Ele quis que os jovens, além de conhecerem o processo, desenvolvessem um olhar diferente para o cinema. Nos dias de sol aconteciam as filmagens e quando chovia, eram feitas as oficinas.

“É uma história bem bonita de ser contada. Foi a melhor experiência com cinema que eu já tive”, relata Jucelino. A principal mensagem que ele quis passar com o filme foi de como as pessoas podem conviver com a natureza sem agredi-la. Mostrar, por exemplo, como essas plantas medicinais ajudaram as crianças da aldeia a nascerem e as mães a sentirem menos dor durante o parto. “Não é algo místico, é algo que faz parte da cultura indígena. É algo vivo. Descobrimos um método novo de utilizar essas ferramentas de cura para a revelação do nosso material. A gente conciliou duas funções importantíssimas: a do cinema e a de cura”. Vários tipos de plantas eram testadas na revelação dos filmes, ao mesmo tempo em que se aprendia sobre as suas propriedades terapêuticas. Jucelino explica que outros filmes já utilizaram esse método de revelação natural, porém com o uso de aditivos.

Ao longo da produção, Jucelino percebeu nas crianças um forte senso de luta e afirmação identitária. “Quando eu era criança, era diferente. Eu não chegava para as pessoas e dizia que sou indígena. Hoje em dia, a afirmação é muito maior”.  Durante as oficinas, a equipe ligou a câmera e pediu para que as crianças se apresentassem. A primeira coisa que eles diziam era “eu sou Laklãnõ/Xokleng”. “As crianças da minha época nem mesmo se afirmavam enquanto indígenas por não terem espelhos, representatividade. Eu não tinha ninguém em quem me enxergar”. Para ele, o cinema, tanto de documentário quanto de ficção, teve esse papel de criar nos indígenas um senso de auto representação, com os povos originários assumindo o protagonismo nesse espaço. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.