Aula prática de trimming para extração de canabidiol (Foto: Ana Krug/Gabriel Gomes Olivo/CCR/UFSC)
Reportagens

Uma marola pela mudança em Santa Catarina

O acesso medicinal e a pesquisa acadêmica do uso da maconha em um dos Estados mais conservadores do país

Reportagem por João Mesquita

Dentro do armário de um cômodo de um conjunto habitacional no bairro Bela Vista, está o medicamento do palhocense Igor Seco, portador da síndrome de Marfan – doença que afeta o coração, os olhos, vasos sanguíneos e os ossos. As principais características de pessoas com esta condição são a alta estatura, membros desproporcionalmente longos, escoliose, lordose e outras características físicas capazes de gerar dor crônica.

“É um problema genético que causa uma aceleração do metabolismo, […] meio que os hormônios que fazem o esqueleto crescer nunca param de ser produzidos, ou param e podem voltar a se reproduzir a qualquer momento. Aos 9 ou 10 anos eu comecei a ter dor na coluna e nas costas, com 11 anos a minha escoliose apareceu e desde então eu tenho problema do pescoço à lombar, a coluna inteira torta”.

Assim como Igor, atualmente existem mais de 180 mil pacientes sendo tratados com a medicina canábica, segundo os registros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estudos indicam que os derivados da maconha podem ajudar no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson, glaucoma, depressão, autismo e epilepsia. O medicamento também pode ser útil contra dores crônicas, pois o Canabidiol (CBD) interage com receptores do sistema endocanabinoide, que estão presentes em diferentes partes do corpo, como o cérebro e o sistema nervoso central. Essa interação reduz a inflamação e a dor crônica.

Mesmo assim, o caminho para a prescrição de um tratamento com canabinóides é tortuoso, pois a planta e seus derivados são proibidos no Brasil desde 1938. Essa decisão foi influenciada pela proibição de entorpecentes nos Estados Unidos em 1930, ano em que foi criado o Departamento Federal de Narcóticos norte-americano. Desde essa época, o uso de drogas passou a ser controlado por instituições de segurança pública do Estado, ceifando a perspectiva do tema ser tratado como Saúde Pública. 

Devido à proibição, o medicamento não pode ser produzido no Brasil e tem de ser importado a um custo que pode chegar a mais de R$ 2.500. Outra forma de se conseguir acesso ao tratamento é pela via judicial, através de um habeas corpus para o paciente que não conseguir arcar com os custos do remédio importado, permitindo que ele cultive seu próprio medicamento.

Uma associação pela mudança

Igor possui habeas corpus para o cultivo domiciliar de maconha desde maio de 2021, mas já plantava clandestinamente na sua casa desde 2020, graças ao curso online de cultivo e extração da cannabis promovido pela Santa Cannabis – uma associação de pacientes em tratamento com derivados da maconha. Mesmo com este salvo-conduto, a maior parte do tratamento é feito a partir do óleo medicinal proveniente da associação, que também representou juridicamente Igor e seu afilhado Théo, no processo de conquista de seus respectivos HC’s. 

Segundo a prescrição médica, Igor deve consumir, a cada oito horas, duas gotas de um óleo que possui um pouco de CBD (Canabidiol) e uma alta concentração de THC (Tetrahidrocanabinol), que é a molécula mais psicoativa da cannabis, porém, também é a substância que mais atenua inflamações e dores crônicas. 

Já Théo, seu afilhado de seis anos de idade, foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e faz uso de um óleo que possui quantidades iguais de THC e CBD. Antes do uso do óleo, os pais de Théo tentaram remédios tradicionais, que até tiveram um efeito positivo ao cessar com os tiques nervosos do garoto, mas eles logo desistiram ao constatar que o menino ficava numa espécie de estado letárgico, passando o dia todo no sofá de casa. 

Igor e Théo após uso do óleo medicinal da Santa Cannabis (Foto: Reprodução/ Instagram)

A relação entre Igor e a associação também se estende para um projeto comunicacional, que é o Santa Cannabis Podcast, um programa semanal com novidades sobre a maconha no Brasil e no mundo. Ao todo, o programa já entrevistou mais de cem pessoas, dentre médicos, pesquisadores, artistas, jardineiros e criadores de conteúdo. Trata-se de uma forma de ampliar o debate sobre o universo da maconha, rebatendo mitos e dando voz a usuários e empreendedores na área. Além disso, Igor é podcaster de longa data, já que também produz o THShow, programa que fala sobre maconha de forma mais descontraída. 

Os dois podcasts estão disponíveis não só nas plataformas digitais convencionais, mas também na RádioHemp, Web Rádio criada pelos membros do THShow em parceria com a Santa Cannabis. A programação da rádio conta com podcasts canábicos de diversos lugares do país, notícias de última hora e entrevistas sobre o assunto, consagrando o projeto comunicacional da Santa Cannabis como uma das frentes de atuação da organização.

O debate legislativo em um Estado conservador

Além do tema já ser debatido com seriedade por usuários e simpatizantes, ele também vem ganhando espaço nas casas legislativas do Estado. Somente no ano de 2023, foram protocolados na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) três projetos de lei (PL) sobre o uso da cannabis medicinal e sua distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 

O texto que já foi aprovado e está em debate desde 2021 é de autoria da deputada Paulinha (Podemos). Outras duas propostas dos deputados Volnei Weber (MDB) e Marquito (PSOL) foram apensadas ao seu projeto. No entanto, apenas os projetos dos deputados preveem o fornecimento de medicamentos por meio de parcerias com associações da sociedade civil ou importações.

O valor do medicamento importado é visto como inacessível por pacientes, como Igor Seco.

“Não faz sentido importar CBD de baixa qualidade do Canadá enquanto a gente tem associações do Nordeste ao Sul do Brasil cultivando genéticas de alta qualidade e já suprindo a necessidade de seus pacientes por valores abaixo do que a gente encontra no mercado de importação”.

Mesmo que os projetos tenham como questão central o acesso gratuito aos derivados medicinais da maconha, pouco se discute neles sobre o fornecimento destes fármacos pelas associações que já existem no Brasil. Estas são organizações do terceiro setor (ONGs) compostas principalmente por pacientes em tratamento com derivados da cannabis.

Igor Seco na estufa de cultivo de maconha da Santa Cannabis em Itapoá, Santa Catarina. (Foto: Reprodução/Instagram)

A Santa Cannabis é uma entidade catarinense que recebeu no ano de 2023 uma decisão judicial favorável ao plantio e extração do óleo da maconha para produção de medicamentos de uso humano e veterinário. A instituição já atende mais de quatro mil pessoas em Santa Catarina, mas ainda não foi cotada para ser fornecedora de medicamentos para o SUS. 

O presidente da Santa Cannabis, Pedro Sabaciauskis, critica a forma com que o Legislativo brasileiro vem pautando o assunto sobre a distribuição destes medicamentos pelas unidades públicas de saúde.

“Isso é um crime que estão fazendo com o Brasil. Me desculpem os [políticos] bem intencionados, mas mal assessorados, porque usam dessa lei para ganhar voto e no fim tá empurrando todo o custo desse medicamento para o SUS, que vai usar o importado gerando lucro paras as empresas lá de fora e não pro Brasil”.

O preço da importação de remédios de laboratórios estrangeiros poderia gerar um custo de R$ 3,5 bilhões para o SUS. Caso fosse feito por associações nacionais o gasto poderia ser de menos de R$ 1 bilhão. O dado é uma estimativa de Pedro para a possibilidade de atendimento de cerca de 14 milhões de brasileiros pelo SUS.

Na Câmara Municipal de Florianópolis, tramita um projeto de lei da vereadora Carla Ayres (PT) que procura estabelecer uma ponte com as associações brasileiras, preservando as relações de trabalho já existentes na busca de uma produção nacional do ramo. A parlamentar lembra que já houve outros PLs aprovados nas câmaras de vereadores de Porto Alegre e Belo Horizonte e recentemente houve uma lei sancionada pelo governo do Estado de São Paulo. Entretanto, ela destaca que o único projeto a ser realmente implantado foi no município de Búzios (RJ), que produz medicamentos em parceria com a Associação Abrario. 

Lá, a associação possui um programa social em parceria com a prefeitura, que fornece gratuitamente o medicamento para até 100 pacientes associados por ano. A entidade, no entanto, não foi beneficiada com a licitação do medicamento distribuído pelo SUS. Ao invés disso, a prefeitura fechou, em 2022, um contrato de importação ao custo de R$ 7 milhões para atender 400 crianças. Segundo a Abrario, as mesmas 400 crianças poderiam ser atendidas pela associação e o custo não chegaria a 10% desse valor. 

Em função disso, Carla está incluindo em seu projeto de lei a Santa Cannabis como fornecedora dos medicamentos para o SUS e também para a Diretoria do Bem-estar Animal (Dibea) de Florianópolis. A vereadora também é autora de outro PL que visa fomentar o desenvolvimento de pesquisas sobre os usos farmacêuticos, medicinais e industriais da cannabis. 

Os dois projetos ainda não foram aprovados na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, que é a primeira comissão pela qual passa uma proposta até que seja debatida em plenário. Carla relata um avanço tímido destas pautas devido ao tema ser sensível para a base eleitoral de muitos parlamentares. 

Mesmo assim, os projetos já foram debatidos em audiência pública em abril de 2023. Estiveram presentes especialistas da área médica, científica e jurídica, além da participação de movimentos sociais e pacientes que relataram a melhora na qualidade de vida proporcionada pela medicação.

A Lei de Drogas de 2006

A Lei de Drogas de 2006 foi aprovada pelo Congresso e sancionada durante o segundo governo Lula. A legislação tinha um tom progressista ao diferenciar as categorias de usuário e traficante. Com a diferenciação, as penas também mudavam. O usuário poderia cumprir entre seis meses e dois anos de detenção, enquanto o traficantes estaria sujeito a, no mínimo, cinco anos de prisão.

A lei, no entanto, não definiu formas para distinguir o uso pessoal de drogas do tráfico, deixando que a distinção ficasse a cargo do juiz ou das forças policiais que efetuam as prisões. Para determinar a categoria do crime, são levadas em consideração questões como quantidade de droga, local da ocorrência, antecedentes criminais e a diversidade de entorpecentes em posse da pessoa. 

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em junho de 2005, havia 296.919 pessoas encarceradas no Brasil, sendo que apenas 14% dos presos haviam sido condenados por crimes relacionados ao tráfico. Em 2022, eram 820.689 presos, quantidade quase três vezes maior. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), apenas em 2022, foram 197 mil pessoas presas por conta da Lei Antidrogas, sendo 164 mil detidas por associação ao tráfico, número quatro vezes maior do que em 2005. 

Apesar de ser uma discussão ampla, nas casas legislativas brasileiras o que vem ganhando pareceres mais progressistas são as pautas ligadas à causa medicinal.

A causa medicinal como porta de entrada

André Farias é coordenador do mandato do deputado Marquito (PSOL) na Alesc e afirma que a bandeira pela legalização é levantada primeiro pela perspectiva medicinal, mas as reivindicações que o tema traz são mais profundas. “No atual momento histórico, escolhemos a cannabis medicinal para ser a porta de entrada de um movimento antiproibicionista, que é a única e verdadeira luta neste sentido.” 

Países latino-americanos, como Uruguai e Argentina já adotaram uma postura menos moralista sobre o uso de drogas e mais informativa para que os cidadãos saibam mais sobre a redução de danos. 

A política é um conjunto de estratégias que visa minimizar os danos causados pelo uso de diferentes drogas, ao invés da prevenção do uso das substâncias em si. O tema faz parte da pesquisa de Vini Lanças, doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal Santa Catarina (UFSC).

O movimento antiproibicionista

Enquanto a regulação do uso medicinal é a bandeira da vez no campo político, os movimentos de rua clamam por uma uma legalização mais democrática e reparadora. Lanças é um dos organizadores da Marcha da Maconha em Florianópolis. Para ele, o movimento de rua tem que ser combativo e ousado em suas propostas.

“A função do movimento social é ser utópica, de sair para as ruas para pedir o impossível. Quem tem que tá preocupado com negociata e congresso é o político, que pode ser pelego. Se apequenamos nossa pauta, os políticos vão apequenar mais ainda”. 

O movimento antiproibicionista faz parte de um debate mais amplo sobre a questão da “interseccionalidade” entre os movimentos sociais e as diversas formas de opressão. A Marcha de Florianópolis possui apoio do movimento negro, antimaniconial, feminista e do Hip Hop. 

Para Lanças, é importante trazer o debate político interseccional, pois há uma disputa de discursos nas Marchas Municipais e na Marcha Nacional. “Há 10 anos atrás, o movimento antiproibicionista era uma coisa da branquitude universitária, hoje em dia já é uma coisa da molecada da quebrada. Não queremos pedir só a legalização de todas as plantas e substâncias proibidas, mas também o fim da violência policial e o fim do encarceramento em massa, porque denunciar é uma questão de luta de classes. Sabemos que a proibição não impede o uso, é apenas um pretexto cínico para criminalizar e matar pretos e pobres”.

A pesquisa sobre a cannabis na UFSC

Tirar a maconha dos bolsos e levar para os laboratórios. Esse é um dos desafios de Erik Amazonas, professor do curso de veterinária da UFSC no campus de Curitibanos. Erik é pesquisador do uso veterinário da maconha e inaugurou o primeiro curso de Endocanabinologia no país, que estuda o sistema endocanabinóide em humanos e animais. Além disso, ele possui HC para o cultivo de dezenas de plantas para fins acadêmicos no campus de Curitibanos, onde também desenvolve a exploração econômica do cânhamo, planta que pertence à mesma espécie da maconha, a Cannabis Sativa. 

Professor Erik Amazonas lecionando a disciplina de Endocanabinologia na estufa de cultivo da UFSC (Foto: Ana Krug/Gabriel Gomes Olivo/CCR/UFSC)

O cânhamo possui pouco THC, por isso seu cultivo não costuma ser para o fumo ou extração medicinal e sim para um uso econômico, já que é um vegetal de uso versátil. Ele pode ser usado nas indústrias têxtil, de construção, de celulose e bioplástico. 

Existem ainda estudos de utilização do cânhamo para recuperação de solos contaminados ou degradados por meio da fitorremediação, que é um processo que utiliza plantas como agentes de purificação ambiental. De acordo com a pesquisa de campo do trabalho de conclusão de curso (TCC) de Lucas Delfino pela Universidade de Brasília (UnB), o cânhamo também ajuda na saúde de solos de plantio, por meio da rotação de cultura, o que contribui nas colheitas.

Este conjunto de fatores torna o terreno de Curitibanos fértil para a criação do Polo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis (Podican) da UFSC. “A 200 km ao leste daqui tem o polo têxtil catarinense, a oeste tem toda a produção animal e da indústria alimentícia, e aqui está localizado o centro de celulose e papel. Também estamos próximos da área metalúrgica, que pode colaborar na criação de equipamentos necessários para a industrialização do cânhamo. Tudo isso contribui para que Santa Catarina possa se tornar o propulsor da nova bioeconomia voltada à cannabis”, diz Erik.

A cannabis medicinal e a classe médica

Ainda na UFSC, o professor do curso de Medicina e neurologista há mais de 40 anos, Paulo Bittencourt, já tratou de doenças como Parkinson, Distonia e Alzheimer. Ele prescreve medicamentos à base de cannabis, que segundo ele, são tão ou mais seguros que os remédios tradicionais em certos tratamentos.

“Para quem tem o transtorno do espectro autista, não há dúvida que a cannabis é a melhor solução. Além do mais, a maconha tem uma ação polivalente no combate de mais de uma doença, como no tratamento de epilepsia e distonia, duas condições relacionadas ao distúrbio neurológico dos movimentos do corpo.” 

No entanto, a demora do Conselho Federal de Medicina (CFM) em atualizar suas regras sobre a prescrição desses remédios tem deixado médicos que receitam esse tipo de tratamento expostos a processos e sindicâncias.

“Como é que eu vou falar bem de uma coligação de extrema direita que apoiou o uso de cloroquina [durante a pandemia] e causou a morte de milhares de pessoas nesse país. Eu desconfio fortemente que essa instituição seja um aríete da indústria farmacêutica”, diz Bittencourt. 

Em função dessas barreiras, é muito comum que antes de ter acesso a um tratamento com a cannabis, o paciente precise tentar diversos tipos de remédios convencionais antes.  Igor Seco, por exemplo, já utilizou mais de dez medicamentos diferentes para tratar suas dores crônicas, mas só encontrou resultados eficientes quando começou a usar os fitoterápicos à base de cannabis. 

Mesmo que exista um horizonte de uma possível regulação da maconha para fins medicinais e acadêmicos, o país ainda se arrasta na direção de uma mudança em escala nacional. Mesmo assim, instituições sociais e de pesquisa em Santa Catarina vêm tornando o Estado um dos pivôs para a luta pelo acesso medicinal e para a exploração econômica da cannabis no Brasil.

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