“Nós não temos casa”: a quarentena de uma comunidade em situação de rua
Reportagem e fotos de Rodrigo Barbosa
“Vão para casa!”, grita um policial. Àquela altura, menos de uma semana havia se passado desde o decreto das medidas de isolamento social para combater a pandemia de Covid-19 em Santa Catarina, e a Polícia Militar tentava dispersar um grupo de homens na Praça Santos Dumont, em frente à UFSC, no bairro Trindade. “Que casa, senhor? Nós não temos casa, a gente mora aqui”, respondeu um homem. A equipe da PM se retira do local e, por várias semanas, aquela seria a última aparição do Estado no Pida, como a praça é mais conhecida. Sem o Estado, aquela população teria que se virar de outras maneiras durante a pandemia.
O primeiro mês de quarentena foi o mais duro. Com pouca informação sobre a doença e altos níveis de isolamento social (acima de 60% nos primeiros vinte dias de pandemia), a comunidade do Pida se viu instantaneamente sem suas principais fontes de renda: não havia quem comprasse artesanato, e o baixo fluxo de veículos diminuiu os ganhos dos flanelinhas. A dependência de auxílio direto de pedestres começou a se acentuar a cada dia. Comer só era possível com a ajuda de transeuntes e associações religiosas, que comparecem à praça a cada dois dias, aproximadamente. A ‘xepa’ dos mercados da região costuma completar as refeições.
O fechamento de pequenas lojas e brechós ainda impossibilitou o acesso da comunidade – composta por cerca de uma dezena de pessoas – a roupas e cobertores. A higiene pessoal também foi afetada: o acesso a banheiros era permitido por funcionários de estabelecimentos próximos – sem que houvesse, necessariamente, o consentimento dos patrões. Estes locais, porém, também se encontram fechados: “Cada um se vira do seu jeito. A gente não recebe álcool em gel e máscara”, reclama um dos homens. Àquela altura, todos estavam sem máscara há mais de uma semana. Nenhum deles relatou sintomas da Covid-19, mas não foram realizados testes na comunidade.
Os principais projetos de auxílio a pessoas em situação de rua concentram suas atividades em outras regiões da cidade. O maior deles é a Passarela da Cidadania, que oferece alimentação e pernoite à população de rua na região central da capital catarinense, e teve sua capacidade ampliada de 160 para 250 pessoas por noite. O local é administrado pela Secretaria de Assistência Social da prefeitura de Florianópolis (SEMAS) e conta com o auxílio de diversos projetos sociais para a operacionalização das ações. Para a população do Pida, entretanto, a Passarela não tem sido uma opção: a ausência do transporte público, também suspenso por conta da pandemia, impossibilita a locomoção de mais de 10 quilômetros (em trajeto de ida e volta) por dia. Parte dos moradores ainda reclama que teriam sido barrados na única tentativa de acessar o abrigo por falta de documentação. A Secretaria refuta a denúncia e afirma que não é necessária a apresentação de documentos para adentrar o local.
Além da Passarela, as demais opções de abrigo oferecidas pela prefeitura somam pouco mais de cem vagas. Um levantamento feito pelo ICOM Floripa mostra que, em maio de 2017, a população de rua da capital era de 499 pessoas. Ou seja, mesmo com o aumento da oferta na Passarela, o déficit de vagas ainda atingiria mais de uma centena de pessoas. Questionada sobre este déficit, a Secretaria de Assistência Social não respondeu. O órgão limitou-se a dizer que “o acesso às Casas e aos locais de pernoite estão vinculados com o desejo do usuário, e com o momento pelo qual ele está passando, as equipes trabalham buscando o fortalecimento de cada indivíduo para que a mudança da condição de vida, no entanto todos os atendimentos são ofertados aos usuários, não possuindo caráter compulsório”.
A entrada nos abrigos da prefeitura não é a única preocupação que envolve os moradores do Pida com relação à ausência de documentos. Ao menos três dos homens que hoje ali vivem têm dinheiro a receber do FGTS, mas não conseguem sacá-lo no banco pela falta de identificação. O auxílio governamental de R$ 600 também é realidade distante para todos eles, que reclamam do excesso de burocracia e automatização no processo. “O cara tá na rua, sem celular. Como que ele vai fazer essa parada? É tanta incomodação que muita gente acaba desistindo”.
Segundo eles, também falta encaminhamento por parte das autoridades para que eles possam ter acesso à documentação. A situação fica ainda mais grave quando são as próprias autoridades quem retiram os documentos das mãos da pessoa. Foi o que teria acontecido recentemente em um tipo de operação que já é alvo de denúncias da comunidade há muito tempo e que, segundo eles, estaria sendo repetida durante a pandemia.
As visitas do caminhão da Comcap
“O cara acorda com uma arma na cara e spray de pimenta!”, relata um morador da praça que prefere não se identificar. Naquela manhã, não teve muito tempo para levantar e, quando viu, homens retiravam seus pertences do lugar. O destino? Um caminhão de lixo da Comcap, autarquia da prefeitura de Florianópolis que realiza a coleta de resíduos na cidade. O armamento é utilizado pela Guarda Municipal, que sempre acompanha a equipe da Comcap neste tipo de operação. Sem aviso prévio, barracas, roupas e cobertores vão para o lixo em questão de minutos.
No meio de mês de maio, uma destas operações contou também com a participação de uma assistente social. Segundo os moradores, teria sido a primeira visita de um membro da SEMAS à praça desde o começo da quarentena, quase dois meses depois da adoção de medidas para evitar o contágio pela Covid-19. Mas a esperança de que a presença da Secretaria poderia trazer benefícios logo se foi.
De acordo com os moradores, a própria representante da SEMAS teria atirado objetos pessoais da comunidade no caminhão da Comcap. Neste momento, a mochila de Toni, um dos mais antigos moradores do Pida, teria sido arremessada sem sua permissão dentro da caçamba: “O trabalho da assistência social é um lixo. Ao invés de nos encaminhar para fazer a documentação, eles vêm com um caminhão da Comcap e a Guarda Municipal. Se tiver barraca, eles jogam a barraca no lixo. Jogaram colchão e coberta fora, também. Eu tô sem documento porque a assistente social jogou minha mochila fora”.
Este tipo de operação não é exclusivo dessa região da cidade, sendo relatada em outras localidades onde também existem pessoas vivendo nas ruas. Em contato com a reportagem, a SEMAS afirmou que não há, por parte da Secretaria, qualquer orientação para a remoção de pertences de pessoas em situação de rua. As denúncias apresentadas seriam “apuradas e as providência tomadas”, sem mais detalhes.
Para os moradores do Pida, os dias seguintes à operação seriam de muita andança pelas ruas da região – quilômetros percorridos, sem máscara, em busca de recuperar parte dos itens perdidos. A noite na rua é fria e chuvosa, e esperar pela boa vontade da população (que cresceu durante a pandemia, é verdade), pode levar tempo demais.
Na última semana de maio, uma ONG visitou a praça e forneceu máscaras, itens de higiene pessoal e cobertores aos moradores – foi a primeira doação em grande escala deste tipo de mantimento desde o começo da pandemia. Uma ajuda, ainda que tardia, muito bem-vinda para uma comunidade esquecida pelo Estado em meio à maior crise sanitária de sua época. Uma ajuda que fará um pouco menos frias as noites daquela dezena de homens. Ao menos até a próxima visita do caminhão da Comcap.