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O Explorador da Ilha da Magia

Reportagem de Matheus de Moura (matheusjorvieira@gmail.com)

 

Com as vestes negras cobrindo todo o corpo, o fotógrafo Gabriel Vanini se mistura às sombras da noite florianopolitana e escala as vigas metálicas da área externa de uma das torre de sustentação do lado ilhéu da ponte Hercílio Luz. No meio do caminho, certifica-se de que estão firmes os óculos de grau, sempre evitando olhar para baixo; o medo de altura que descobrira ainda criança não é suficiente para impedir a escalada, mas nem por isso fica menos nervoso. O método mais perigoso é sempre a última opção — o que acabou sendo o caso. Quando decidiu subir a ponte, tentou pelos lances de escadas de marinheiro do interior da torre de sustentação, mas esse caminho estava bloqueado por um alçapão cadeado. Respirou fundo e começou a escalada pelas vigas. E o que move um homem de 28 anos a ir contra as fobias da infância e alçar-se ao cartão postal de Florianópolis?

Tirar uma foto.

Há sete anos que Vanini vem invadindo propriedades e edificações abandonadas com o objetivo de registrar fotograficamente o que considera parte da história urbana de Florianópolis. Ele se apresenta como um praticante de Urbex, ou exploração urbana, uma mistura de arte com esporte e intervenção urbana, que tem como intuito guardar registros históricos dos centros metropolitanos — basicamente arqueólogos da cidade. A modalidade é conhecida no mundo inteiro, tendo se popularizado principalmente nas grandes capitais, como Londres, Nova Iorque e São Paulo. Na Ilha da Magia, entretanto, Vanini se mantém o único praticante de que se tem notícia.

Essa não é sua primeira investida na ponte Hercílio Luz; foi o primeiro lugar explorado por ele, há nove anos, quando ainda era apenas um graduando de Turismo no Instituto Federal de Santa Catarina. Na época, como Trabalho de Conclusão de Curso, decidiu colar um autorretrato em pontos turísticos clássicos ou alternativos para ajudar visitantes a encontrar os locais interessantes da cidade. A foto preto e branco de um jovem Vanini apontando a câmera para o além foi colada primeiro na ponte, pelo fato de ser a edificação mais conhecida cidade.

A ideia de fazer disso o TCC morreu seis meses após o início do projeto. Porém, o autorretrato sobreviveu e ganhou nome: O Turista — o alterego desbravador e corajoso de Vanini, cujo nome real ficava em casa.

O sucesso da dupla foi eminente. Antes de completar um ano explorando os escombros do passado urbano, a colagem do Turista já havia aparecido tantas vezes nos jornais quanto o trabalho de Vanini como fotógrafo de moda e lifestyle para a empresa PhotoAssistantBR.

Por cinco dos sete anos de Urbex, todo mês, Vanini planejava pelo menos umas três investidas pela noite florianopolitana. Vez ou outra, acompanhado por algum pichador ou grafiteiro renomado, como o Rizo — conhecido pelos desenhos de iguanas. A relação foi se degradando em 2015, quando os preço das impressões gráficas passaram de cinco até dez reais para vinte e cinco. O tempo de Vanini se tornou escasso também. Além do emprego como fotógrafo, montou uma pequena marca de roupas inspiradas em seu motoclube, Floripa Selvagem.

Em 2016, o Turista já não andava mais pelas ruas, abandonando o fotógrafo em presença, mas não em mente. Vanini mantém diálogos internos com o seu alterego, que por vezes surge com cobranças.

Ali, no topo da ponte, com a câmera apontada para os 820 metros de travessia, o Turista o chama.

“Você deveria voltar com o nosso trabalho”, diz o Turista.

“Eu sei, mas é que eu tô sempre fazendo tanta coisa! Motoclube, fotografia, surfe, exploração…”, responde Vanini

“É, mas pensa no que nós poderíamos ganhar juntos.”

“Como assim?”

“E se você levasse nosso trabalho a sério, tentasse fazer dinheiro, exposições, arte comigo?”

Gabriel não sabe responder.

Este questionamento é feito reiteradamente não só pelo Turista, mas por todos seus amigos. Por que não focar em um projeto apenas? Sente-se inseguro para decidir isso ainda. Responde para o turista o mesmo que para os amigos: “não gosto de gente que foca demais em uma coisa só, sabe?”

O Turista sabe.

Vanini desce da ponte com cuidado, mas não o suficiente, um estridente e metálico ecoa na região ao bater o pé numa barra de ferra. Em segundos, cachorros começam a latir incessantemente. Por sorte, nada acontece. Abaixo da ponte Hercílio Luz havia duas casas onde moram pedreiros que, com a ajuda dos cães, trabalhavam também como seguranças.

Menos de uma hora atrás, Vanini quase foi pego pelos seguranças .

Ele havia deixado sua Canon Mac III programada para disparar quando, embaixo da ponte, ele chegasse à outra torre de sustentação. Para realizar tal proeza, precisaria caminhar por um parapeito que ligava as torres. Se caísse, se espatifaria entre pedras e o mar. Sempre evitando olhar para baixo, chegou salvo ao destino. Ligou uma lanterna que carregava em uma faixa na cabeça e a câmera disparou. No chão, avistou parafusos industriais que calculou terem pelo menos 50 anos. Guardou-os no bolso. Quando se preparava para a travessia de volta, cachorros começaram a latir ferozmente.

Em reflexo, Vanini se abaixou, deitando no chão. Apagou a luz e rastejou até a beirada, observando dois guardas equipados com lanternas caminharem de um lado para o outro, em busca do que teria alertado os cães. Em silêncio, Vanini sentia suor molhando a faixa na testa. A tensão se manteve por cinco minutos. Depois disso, os homens perderam a confiança nos avisos caninos, voltaram para suas casas e de lá não saíram, nem mesmo quando os animais latiram para o fotógrafo subindo a ponte.

Se precisasse, aquela não seria a primeira vez que Vanini conversaria com seguranças. Indiferente de ser a ponte ou apenas uma área industrial abandonada, os homens costumam fazer a abordagem com agressividade, geralmente com medo de que o invasor seja um viciado em drogas procurando por uma boca de fumo. Eles sempre abaixam a guarda e o liberam quando descobrem que é apenas um jovem branco de classe alta, com pais que moram no condomínio perto da 1007, no Centro — uma das regiões mais caras da cidade.

Vanini desce da ponte da mesma forma que subiu.

Uma vez fora da zona de alerta, tira do bolso os parafusos e reflete sobre a possibilidade de fazer deles os primeiros artefatos de uma exposição que vem planejando há alguns meses. Pretende fazer como os arqueólogos e usar objetos para contar a história da cidade. Provavelmente voltará aos locais que já explorou, como o Iate Casablanca, para recolher tralhas — antes que a prefeitura o faça.

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