Reportagens

Peninha e sua Ilha

  Um dos mais importantes historiadores catarinenses é um típico manézinho. Peninha estuda, vive e provoca a cultura florianopolitana há mais de 40 anos.

As vigas de madeira sustentando o teto alto, os tijolos feitos de barro, as grandes janelas olhando o mar. Cada detalhe arquitetônico nos remete a uma casa açoriana típica. A morada de Peninha é o seu seio cultural ilhéu. A construção e os objetos que a enfeitam evidenciam a íntima ligação da casa e seu dono. “Pago para não sair de casa”, diz ele.

A morada que se localiza na praça central da Enseada do Brito, município de Palhoça, foi comprada por Peninha em 2008, depois de muita procura. Ela seria a sede de um projeto planejado por ele durante anos: a Biblioteca Comunitária gratuita, um espaço para leituras e realização de oficinas. O projeto não saiu do mundo das ideias. Não que ele tenha deixado de fazer sua biblioteca, ele a montou em uma sala de sua casa, porém, não teve condições para abri-la ao público. É nela que Peninha passa boa parte de seu tempo, cercado de aproximadamente 4 mil livros.

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“Passo os meus dias em casa, lendo ou fazendo jardinagem. É o que eu gosto de fazer.” afirma. Foto: Eliza Della Barba.

Cada item dentro da casa tem um significado especial; seja uma lembrança de uma viagem, um objeto que ele achou diferente ou “bonitinho”, como ele mesmo os adjetiva. Os bois de mamão de cerâmica nas prateleiras, os azulejos açorianos pintados, as bruxinhas penduradas no teto. Cada detalhe da decoração o caracteriza de alguma maneira. A casa e Peninha formam uma simbiose.

No corredor da casa que faz ligação aos quartos e ao banheiro, uma mesinha chama atenção pelos objetos nela apoiados. Uma espécie de altar católico com imagens de santos, terços feitos de madeira, pombas (símbolo do Divino Espírito Santo) e, no centro da mesa, a imagem de Nossa Senhora em cima de um siri, feitos de barro. “Não sabes a história da Nossa Senhora e do siri? Então vou te contar: A Nossa Senhora queria passar do Continente pra Florianópolis, mas não tinha a Ponte ainda. Ela pediu então uma carona até o outro lado pro linguado que estava passando ali na hora, mas ele não quis dar. Foi quando passou o siri e deu a carona pra Nossa Senhora. De castigo pro linguado, ela colocou os dois olhos dele do mesmo lado da cabeça. E de agradecimento pro siri ela gravou sua imagem do lado de dentro do casco do animal”, explica Peninha.

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“Aqui na Enseada se mantém ainda muitas tradições da cultura açoriana”, observa Peninha. Foto: Eliza Della Barba.

– Mas então o senhor é bem religioso, não é? questiono depois de ver o altar.

– Sou nada, menina! Não faço oração, não vou a missa, nada.

Apesar de saber todos os ritos religiosos católicos, devido a sua formação familiar, acredita que Deus é uma força maior, não seguindo qualquer religião.

José Gelci Coelho tem 68 anos e é natural da cidade São Pedro de Alcântara, a 35 km de Florianópolis. Ele é o nono dos dez filhos de José Elias Coelho e Alcides Silveira Coelho. Com pai músico e sapateiro e a mãe costureira, Peninha teve uma infância simples. Aos três anos idade, se mudou com a família para cidade de São José, Grande Florianópolis, em busca de melhores condições de vida. Foi no bairro Praia Comprida, onde morou boa parte de sua vida, que ele conheceu a cultura açoriana e, pela primeira vez, viu o mar. “O dia que descobri o mar foi inesquecível, era dia de vento sul. Era algo quase inconcebível para nós”. Com o tempo e a prática, as águas foram dominadas, e foi através delas que a família conseguiu fartura. “Foi um período muito bom, sempre tinha comida garantida. Era tanto peixe, camarão, siri, que tinha dia que não conseguíamos nem entrar no mar”.

A polêmica é a base do sucesso

Foi no final da década de 1960 que Peninha, a procura de um emprego, conheceu a Universidade Federal de Santa Catarina. Ali ganhou o apelido que o caracteriza. “Fiquei três meses na universidade fazendo testes pra conseguir o emprego de datilógrafo. Eu ia de São José até a Trindade, naquela época era uma luta enorme, mas eu precisava do serviço. Quando saiu o resultado da seleção, eu não tinha passado. Fiquei mais uma semana lá trabalhando na limpeza, organização dos departamentos. E todo mundo me vendo naquela situação falava “Ah, que peninha dele! Que peninha que ele não conseguiu o emprego!”. Uma semana depois aparece uma moça dizendo que eu tinha passado, e que estavam brincando”, lembra ele, que entende o apelido como “resultado de um bullying”.

Já na Universidade, aos 21 anos, prestou vestibular para História. Sempre muito interessado em artes e cultura, o curso trouxe oportunidades que ele nunca imaginaria ter, uma delas foi conhecer e trabalhar com Franklin Cascaes. “Conheci o Franklin Cascaes em 1973 no Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC (MArquE), ele trabalhava lá, no setor de cultura popular. Depois desse dia eu o convidei para uma exposição de arte, conversamos bastante. Aí eu ia sempre no museu visitar ele”.

Um episódio marcou a trajetória de Peninha, consolidando sua amizade com Cascaes e dando início às pesquisas sobre cultura açoriana, que desenvolve até os dias atuais. “Quando o museu foi fundado, surgiu um problema: não tinha público. Aí em uma conversa que eu escutei do diretor do museu Alroino Baltazar Eble com o Cascaes ele dizia que não sabia o que fazer para atrair a população, foi quando eu me meti e disse “Eu sei o que fazer! A polêmica é a base do sucesso!” [risos].

Peninha e Franklin Cascaes organizaram uma exposição exótica para os padrões da época. Montaram um presépio de Natal feito inteiramente com a natureza de Florianópolis, utilizando conchas, folhas de piteira, barba de velho, tendo como intuito mostrar a fragilidade da flora da ilha.“Houve uma reunião dos diretores da UFSC que disseram que era um absurdo expor aquele presépio na frente do museu. Quando ouvi aquilo, eu bati palma e afirmei que já era um sucesso. Sei te dizer que, pela primeira vez na história da Universidade, a comunidade invadiu a UFSC para ver o tal do presépio!” [risos].

Em 1974 Peninha se graduou e em 1975 foi convidado a trabalhar no Museu onde desenvolveu, com Cascaes, diversas pesquisas e exposições sobre a Ilha, continuando o trabalho após a morte de seu mentor em 1983. Em 1996, Peninha recebeu o convite para ser diretor do MArquE, onde trabalhou até se aposentar em 2008.

Seu amigo João Dias o define como uma “biblioteca ambulante”, fonte inesgotável de conhecimentos sobre a Ilha. “Eu participo de diversos projetos, começo trabalhos, apresento ideias e provoco para que elas aconteçam. Tudo o que eu tenho feito durante todos esses anos é provocar”, afirma ele que se entende mais como um animador cultural do que como um Historiador.

A solidão na beira do mar

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“O mar, menina. O mar é o espaço do vazio.” diz Peninha. Foto: Eliza Della Barba.

Além das pesquisas que hoje desenvolve junto ao Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC (NEA), ficar em casa e cuidar dos seus dois gatos, o Bebé e a Menina, é o que lhe dá prazer. Os animais são seus companheiros. “Desde jovem eu sou assim, fazendo as minhas pesquisas, custando para me manter. Nunca tive competência para ter família”, avalia. Peninha não costuma receber muitas visitas de amigos e familiares. Em dias festivos como aniversário, Natal, Ano Novo, ele comumente passa sozinho em sua casa; desfrutando de sua própria companhia e do mar.

Foram nas ondas da Enseada do Brito que Peninha encontrou a calmaria e o descanso. “Por respeito a Ilha eu não moro nela. Gosto tanto dela que não quero sujá-la de jeito nenhum. Nem com as minha necessidades biológicas, nem com nada”, explica ele que jamais quis viver em Florianópolis.

Mesmo morando só, Peninha está muito bem acompanhado, seja de sua casa e seus objetos, seus gatos, sua cultura, suas lembranças. “Aqui eu tenho tudo, não sinto falta de nada. Adoro estar na Enseada”, esclarece ele, que entende que a solidão é uma questão de costume, ou quem sabe, de ponto de vista.

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