Moradores do Morro do Mocotó, Moisés Nascimento e Liznaria Souza trazem representatividade às passarelas de Santa Catarina
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Favela na passarela: lideranças do Mocotó levam beleza e representatividade para o ‘Mundo Miss’

Moisés Nascimento foi eleito em novembro o primeiro Mister SC negro em 34 anos de concurso; Miss Florianópolis e também moradora do Morro do Mocotó, Liznaria Souza participará do Miss Brasil Mundo 2025

Reportagem por Rodrigo Barbosa

“Eu paguei a inscrição do estadual parceladinho”, lembra Moisés. Eleito Mister Santa Catarina no mês passado, é o primeiro homem negro a ostentar o título na história do concurso. Morador do Morro do Mocotó, comunidade da região central de Florianópolis, ele foi convencido por uma amiga a entrar no “Mundo Mister”, de onde promete continuar militando pelos direitos da periferia. A amiga em questão, Liznaria, decidiu ser Miss durante uma gira de umbanda e, desde então, é a representação da negritude nas passarelas do Estado mais branco do Brasil.

Conheça a história das lideranças que colocaram o “Moca” em destaque no corre da moda.

O Morro do Mocotó, lar de Moisés Nascimento e Liznaria Souza, é historicamente ligado à população preta de Florianópolis. Foto tirada por um educando da ACAM (Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó) durante oficina de fotografia

Moisés não é daqui. Nascido e criado numa quebrada de Campo Grande (MS), tinha o sonho de virar jogador de futebol e se mudar para o Canadá, mas, para morador de comunidade, o corre costuma vir antes do sonho. “Eu precisava de uma profissão e a profissão que eu procurei foi ser barbeiro. Paguei um curso de barbeiro, mas não me deu a afirmação que eu esperava”, conta o Mister. Mudou-se para Florianópolis em 2013 e foi exercer o novo ofício na Praça da Alfândega, no centro da cidade.

Na Alfândega, adquiriu habilidade com a profissão e conheceu muita gente. Lembra-se, em especial, dos moradores de uma comunidade próxima, que costumavam ajudá-lo. “O próprio povo que me via na praça me montou a barbearia, tá ligado? Eu ganhei quase todos os equipamentos. Eu ganhei cadeira, ganhei máquina, ganhei altas parada”. Pegou tudo e se mudou para o Morro do Mocotó. Nos primeiros anos como morador do Moca, foi dono de uma barbearia que funcionava dentro de sua casa, bem na entrada da comunidade. 

“Na entrevista do concurso eu contei dessa minha dívida que eu tinha com a minha comunidade, tá ligado? Eles montaram tudo. Contei o que eu faço, o que eu acredito. Só que aí eu troquei o campo de jogo de novo né, pro campo da luta social”. Uma vez estabelecido na comunidade, as atividades em prol da população foram tomando cada vez mais tempo, e a barbearia acabou sendo herdada por seu irmão. Moisés focou-se nos corres do morro. 

Uma de suas primeiras conquistas para a comunidade foi a limpeza de um lixão que funcionava na Cabeça do Santo, uma das áreas de mais difícil acesso no morro. Em 2019, negociou diretamente com a diretoria da Comcap (Companhia de Melhoramentos da Capital) para que o local fosse limpo e revitalizado para que, futuramente, fosse possível implementar uma horta comunitária no lugar do antigo lixão.

A horta não saiu ainda, mas o barranco segue sem lixo quatro anos depois – num processo que também envolveu a conscientização de moradores.

No mesmo ano, uma iniciativa parecida foi feita no antigo Clube Caramuru – espaço depredado localizado na extremidade oposta do morro e que é tido pelos moradores do Moca como sendo o de maior potencial para a instalação de um futuro e revitalizado espaço comunitário de lazer e organização social no morro. 

No ano seguinte, 2020, e ainda distante dos holofotes das passarelas, Moisés fundou, junto da amiga e também moradora do Mocotó, Liznaria Souza, a Frente Jovem Voz da Favela. A Frente nasceu como resposta a um dos vários casos de violência policial dos quais a comunidade foi vítima e, desde então, vem trabalhando para tentar garantir os direitos dos jovens das periferias de Florianópolis. 

Além de uma série de manifestações, a Frente também realiza eventos de conscientização, faz campanhas de arrecadação e tem atuação política, tendo representado a comunidade em diversas instituições do Estado. Na metade de 2022, Moisés ainda fez parte da primeira turma a concluir o curso de Defensores Populares de Santa Catarina. Promovido pela Defensoria Pública do Estado, o curso proporciona educação em direitos e é destinado a “pessoas que desempenham funções de lideranças comunitárias no território em que residem”.

Moisés Nascimento em protesto contra a violência policial em setembro de 2019, meses antes da criação da Frente Jovem Vos das Favelas.
Liznaria Souza (à direita) em protesto contra a violência policial realizado pela Frente Jovem no primeiro semestre de 2020, durante a pandemia do coronavírus. Fotos: Rodrigo Barbosa

Frente Jovem Voz das Favelas, projeto chefiado por Moisés e Liz, foi o responsável por organizar a celebração do Dia da Consciência Negra do Morro do Mocotó em novembro de 2022. Fotos: Rodrigo Barbosa

Da militância para as passarelas

A parceria entre Liz e Moisés foi para além da militância. “Ah… Eu tenho que agradecer à Liz, né?” Se a faixa de Mister SC hoje encontra-se no Mocotó, a culpa é, na verdade, de Liznaria. Nascida e criada no próprio Moca, recebeu o convite para entrar no “Mundo Miss” pouco depois da criação da Frente. “Foi depois de uma sessão de umbanda que os meus orixás me mostraram que sim, eu deveria aceitar e era um novo caminho. Foi onde eu decidi aceitar e procurar sobre o concurso”, lembra a modelo. O lema do concurso, “beleza com propósito”, chamou sua atenção, e Liz fez sua inscrição, sem muitas pretensões, no último dia do prazo.

Desde então, a cria do morro vem acumulando feitos. Criou a Frente Jovem Miss das Favelas, ramificação do projeto original voltada para as mulheres da periferia. “Eu decidi ramificar a Frente pro Miss das Favelas, botando um olhar mais feminino pras mulheres da comunidade”, conta Liznaria. O objetivo do projeto é oportunizar empregos, cursos e contribuir para o empoderamento feminino.

Liz foi eleita Miss Florianópolis Mundo 2022/23 e faz parte da Corte Carnavalesca da cidade, sendo atualmente a 2ª Princesa do Carnaval de Floripa. Engajada, usa suas faixas para trazer mais visibilidade ao Mocotó. Foi essa razão, inclusive, que fez o amigo entrar no corre da moda.

Do Moca para o mundo: Liznaria Souza vem ganhando espaço nas passarelas do Estado seguindo o mantra “beleza com propósito” (Fotos: Divulgação)

“Eu não botei fé. Eu não queria na real. Só que ela falou: ‘Vai, vai que a gente tem chance. E vai trazer uma representatividade fodida pra nossa comunidade’. E aí ela me convenceu”, diz Moisés. A ideia era que Florianópolis fosse representada no concurso estadual, em 2023, por um casal preto, mas a dupla acabou descobrindo que a capital já tinha um Mister eleito. A coordenadora do evento, entretanto, apontou que Biguaçu ainda não tinha um representante. “Eu sempre gostei de lá. O pessoal lá é muito humilde. Pessoal é meio do interior lá, parça. Pessoal muito querido. Falei: ‘Ah mano, vou tá representando uma galera fodida né’”, lembra Moisés, que aceitou representar o município vizinho. 

“Foi muito difícil quando eu escolhi Biguaçu porque Biguaçu também sofre um preconceito. Vou matar no peito os preconceitos, tá ligado?”, lembra. Via de regra, Moisés teve os pedidos de patrocínio recusados após dizer que não concorreria ao Mister SC por Florianópolis. Seu tempo de preparação foi consideravelmente menor que o de Liz, que já se preparava para o evento há mais de um ano. Acabou conseguindo o apoio de uma loja de ternos baseada na cidade de São José e do restaurante de um amigo, em Floripa. Em 24 de novembro, o casal de amigos do Mocotó partiu para Itajaí para competir no Miss/Mister Santa Catarina.

O concurso

Foram três dias de confinamento em um hotel de luxo em Itajaí. Dentre as 16 pessoas que participaram da etapa final do concurso (dez homens, seis mulheres), Liz e Moisés se destacavam. “De preto só tinha nós dois, não tinha mais ninguém. Só playboy”, contam. Desfilariam desafiando não apenas o próprio nervosismo mas, também, a branquitude.

“Quando eu cheguei lá, os cara tava tudo nervoso. Não tinham nem se cumprimentado ainda, parça. Eu cheguei lá, cumprimentei todo mundo e já chamei os cara pra trocar uma ideia. Aí que os cara se conheceram. Os cara tudo na competitividade. Falei: ‘Não, mano. Não é nós que vai escolher. É os jurado, parça. Esquece’”, lembra Moisés.

Mostrou seu vídeo de inscrição para os concorrentes e logo ganhou torcida: “Porra negrão, tomara que cê ganhe. Cê merece ganhar. Você com a faixa, aí que cê tem que soltar a voz mesmo”. Foi o incentivo que o modelo, até então desacreditado, precisava para encarar o restante do fim de semana.

No segundo dia de confinamento, os candidatos passam por uma entrevista. Perguntas aleatórias são distribuídas para cada um dos modelos, que as respondem de maneira individual. Na vez, de Moisés, sortearam a pergunta de número 6. “Se você acordasse amanhã com uma habilidade para mudar o mundo, qual seria”?

“Eu fiquei pensando e o cara fez a pergunta de novo. Aí eu falei: ‘Ah, mano, eu gostaria de ser marceneiro’. Antigamente, marceneiro era uma das pessoas mais importantes que tinha na sociedade porque eles conseguiam fazer qualquer tipo de construção através da madeira. E é uma habilidade que se pode associar à arte, tá ligado? Aí depois eu falei: ‘Pedreiro também’… mas eles me cortaram, porque era só uma [risos]”. A resposta inusitada foi inspirada em um vizinho de infância e agradou o júri. Seria importante para o resultado final, anunciado no dia seguinte. 

Antes, porém, era hora dos desfiles. Os homens subiram à passarela primeiro para os desfiles de luxo e moda praia. Ao final, os jurados entregaram seus votos ao organizador do evento. Envelope a envelope, cada candidato anunciado dá um passo à frente. “Suador, calafrio, tremedeira do caralho. É uma sensação horrível, tá ligado?”, conta Moisés. 

“Biguaçu!”

“Já falei: Vish!”

“Aí depois falaram Blumenau”.

“Depois Araranguá”.

“Aí de novo Biguaçu. De novo eu. Já queria desmaiar. Acaba logo essa porra aí”.

“Aí depois Araranguá. Porra, ficou empatado. Aí o cara deu um passo à frente, ficou parelho comigo”.

“Caralho mané, eu vou passar mal aqui parça”.

As entrevistas realizadas no dia anterior decidiriam o vencedor. E a vitória viria graças ao vizinho marceneiro. “Daqui a pouco, ‘Mister Biguaçu!’. Aí os cara já me levantaram. ‘Pô, mereceu e pá’. Eu fiquei branco. Deu tela branca na cabeça, não entendi nada. Do nada geral me chacoalhando”, lembra o Moisés.

Em 34 anos de concurso, aquele cara sendo jogado para cima era o primeiro negro a conquistar o título de Mister Santa Catarina. “Primeiro negrão a representar um estado de branco! Eu tô me achando, meu parça! Essa conquista não é minha, essa conquista é do povo negro”, comemora.

“Primeiro negrão a representar um estado de branco! Eu tô me achando, meu parça! Essa conquista não é minha, essa conquista é do povo negro”, comemora.

Moisés Nascimento, liderança do Morro do Mocotó e primeiro Mister SC negro da história. Fotos: Rodrigo Misleri Fernandes

O primeiro Mister da quebrada, inclusive, pretende fazer diferente. Ao contrário de parte dos candidatos, que chegaram a gastar até R$ 8 mil em procedimentos estéticos, Moisés pretende investir em outras áreas. Além de alavancar a Frente Jovem e trazer benefícios para sua comunidade, não pretende deixar a militância de lado enquanto estiver com a faixa.

“Eu quero fazer diferente, tá ligado? Não é uma parada pro capital, pra economia, que eu quero fazer. A minha primeira parceria vai ser com psicólogo. Porque a gente tem que falar de beleza de dentro. Porque se faz muita parceria com bagulho de estética, que muda o cara. Cê fica parecendo um Transformers, um bonecão. E o negrão não tem que ficar fazendo essas coisas, não vai ficar legal. Não vou ficar fazendo essas parada. No máximo arrumar um dente. Eu quero tentar fazer outra abordagem”, revela. Para o concurso estadual, Moisés apenas intensificou a rotina de treinos. A alimentação continuou à base de “arroz e bife, parça”. 

O concurso de Miss Santa Catarina aconteceu após o desfile masculino. Liznaria, que conseguiu uma van para que a família inteira acompanhasse o momento de gala, foi finalista e ficou em terceiro. O ótimo desempenho nas passarelas e na oratória chamou a atenção dos organizadores e, mesmo sem a faixa, a noite também terminou vitoriosa para a Miss Floripa. Liz foi convidada a participar do Miss Brasil Mundo 2025 representando a Grande Florianópolis. Mais uma vez, terá mais tempo de preparação em relação ao amigo, Moisés, que levará a potência do povo preto e do Morro do Mocotó para o concurso nacional já no primeiro semestre de 2024, no Rio Grande do Sul. 

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