Reportagens

Comunidade mais vulnerável de SC se organiza coletivamente para construção de banheiros em casas

A filantropia comunitária como uma ferramenta para o fortalecimento democrático

Reportagem por Fernanda Biasoli

Quando o relógio marcava 10 horas da manhã, um grupo de pessoas começava a se reunir em uma das salas da Associação Laura dos Santos, organização da sociedade civil (OSC) localizada na comunidade Frei Damião, em Palhoça, região metropolitana de Florianópolis, Santa Catarina. O encontro era mais uma das reuniões mensais do Comitê de Desenvolvimento do Frei Damião, movimento iniciado em julho de 2023 que surgiu com o objetivo de construir, coletivamente, caminhos para o desenvolvimento comunitário de um dos locais mais vulneráveis de todo o estado. O grupo de 24 instituições é composto por representantes dos moradores, do poder público, de organizações da sociedade civil e de empresas privadas locais. Juntos, discutiram por mais de duas horas quais as principais necessidades e demandas da comunidade. Essa articulação plural de diferentes atores é um dos exemplos de ferramentas para fortalecer o movimento da filantropia comunitária no Brasil. 

O Comitê é uma das instâncias de governança do Programa de Desenvolvimento do Frei Damião, iniciativa do Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (ICOM) que tem objetivo de contribuir para a melhoria dos indicadores socioeconômicos e de qualidade de vida do local que, de acordo com o IBGE, possui alguns dos piores de Santa Catarina. É na maneira como esse trabalho é pensado e executado que se percebem as bases da filantropia comunitária, um movimento que se propõe a inverter a ordem da filantropia tradicional. Ou seja, na perspectiva desse movimento, são aqueles que recebem o dinheiro que decidem para onde ele vai, de forma independente. Durante as manhãs de reuniões do Comitê, essa é uma das pautas principais: mapear quais as principais demandas do Frei Damião, apresentadas por aqueles que vivem o território todos os dias.

“A primeira coisa é fazer com o território e não fazer para o território. As protagonistas são as organizações locais, são elas que realmente conhecem a comunidade e estão lá no dia a dia trabalhando muito”. É assim que Willian Narzetti, gerente executivo do ICOM, define a perspectiva da governança do Comitê. Ele coloca, ainda, que esse trabalho integrado entre poder público local e regional, OSCs, empresas e comunidades precisa acontecer de maneira transparente e clara. E é buscando essa transparência que, na filantropia comunitária, outra instância fundamental de governança é a criação e gerenciamento de um fundo independente. 

No caso do Frei Damião, quando fortes chuvas atingiram o estado de Santa Catarina no final de 2022, a comunidade se encontrou num cenário em que havia 400 famílias em situação de vulnerabilidade. Nesse contexto, o ICOM lançou o Fundo Chuvas, em que pessoas físicas e jurídicas podiam realizar doações em dinheiro para apoiar as famílias atingidas. A partir da iniciativa, o instituto arrecadou R$222 mil, de mais de 130 pessoas, entre físicas e jurídicas. No total, foram 61 famílias apoiadas, totalizando 279 pessoas beneficiadas. Ao perceber a efetividade do Fundo Chuvas, o Instituto e outros atores resolveram dar continuidade ao trabalho, fundando o Programa de Desenvolvimento do Frei Damião que, além do Comitê como instância de governança, também conta com o Fundo de Desenvolvimento do Frei Damião. 

A área demarcada é a região da comunidade Frei Damião. Foto: Reprodução/Prefeitura de Palhoça (PMP)

No contexto da filantropia comunitária, um fundo é um mecanismo independente, conectado à causa da justiça social ou socioambiental. Essa independência significa que é um fundo que não tem apoio direto de uma empresa, de uma fundação familiar ou do governo, o que permite diferentes tipos de apoio e maior preocupação com o atendimento às necessidades das comunidades e grupos de base, ao invés de priorizar a demanda dos financiadores. O fundo do Frei Damião é orientado pelas prioridades destacadas pelos moradores e conta com o apoio de empresas, pessoas físicas, OSCs e órgãos públicos, sendo gerido pelo Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (ICOM), um dos membros do Comitê.

A Frei Damião

É difícil imaginar como um Programa de Desenvolvimento funciona e para tornar mais palpável, pode-se começar dizendo que em comunidades altamente abandonadas pelo poder público, um programa desses começa pelo mais essencial, como necessidades básicas. E o Frei Damião, mais do que abandonado, já foi quase apagado. Sua história teve início ainda no final dos anos 80, quando seus primeiros moradores iniciaram o processo de ocupação do que viria a ser a comunidade. Na época, a área pertencia à Companhia de Habitação do Estado de Santa Catarina (Cohab/SC) e não contava com serviços básicos como abastecimento de água e energia elétrica. Por ser um terreno estadual e em processo de ocupação, foi por muito tempo esquecido, sem contar com o apoio e investimento do poder público. A situação começou a mudar em dezembro de 2015, quando a Cohab doou a área para o município de Palhoça, o que deu início ao seu processo de regularização fundiária. Hoje, o Frei Damião possui cerca de mil escrituras já regularizadas, posto de saúde, ruas pavimentadas, escolas, creches e uma área de lazer recém-inaugurada. No entanto, ainda existe uma longa caminhada pela frente para levar dignidade plena a todos os seus moradores, pois a comunidade segue crescendo, com áreas sendo ocupadas até hoje (a ocupação mais recente teve início no ano passado). 

Além de carecer de infraestrutura básica, também não existem informações oficiais atualizadas sobre o desenho socioeconômico da região, o que torna difícil saber precisamente quantas pessoas vivem ali e qual a sua real situação. Entre os anos de 2011 e 2012, a empresa GeoMais foi contratada para realizar um levantamento socioeconômico da comunidade com o objetivo de realizar um diagnóstico dos moradores e suas necessidades. De acordo com a pesquisa, na época existiam 5.500 pessoas morando no Frei Damião. Porém, segundo dados mais atuais do posto de saúde, o local possui hoje 14 mil moradores em uma área de aproximadamente 70 mil m2. A pesquisa da GeoMais também traçou um perfil socioeconômico das famílias do Frei Damião e demonstrou que mais de 20% delas viviam, à época, com menos de um salário mínimo por mês. 

Hoje, o local tem como seus limites a cidade de São José ao norte e o bairro Brejaru ao sul. Também faz divisa com uma área industrial ao leste e com o Aero Park Pedra Branca a oeste. Este, inclusive, é um dos pontos que chamam a atenção sobre a sua localização: a proximidade com o bairro planejado Pedra Branca, um dos mais ricos da cidade de Palhoça. O local tem estrutura para receber 40.000 moradores, 10.000 estudantes e gerar 30.000 empregos, de acordo com informações disponibilizadas no site do empreendimento. E basta percorrer uma distância que não ultrapassa cinco minutos de carro, para ser recebido por uma realidade completamente oposta. No Frei Damião, o transporte público não entra: os ônibus com as linhas mais próximas somente contornam os limites do bairro. Várias de suas ruas ainda não existem oficialmente, pois parte delas até hoje não possui o Código de Endereçamento Postal (CEP). E basta percorrê-las para encontrar casas improvisadas e amontoadas, construídas com tábuas de madeira e que, muitas vezes, não possuem estruturas básicas, como um banheiro.

"Um galo sozinho não tece uma manhã"

*Referência ao poema de João Cabral de Melo Neto

É nessa realidade que o Programa de Desenvolvimento do Frei Damião atua. Um dos projetos discutidos pelo Comitê envolve justamente a construção de banheiros para 180 famílias que não têm acesso a essa estrutura em suas casas. A demanda partiu de Vladimir Borges Ribeiro, presidente da Associação de Moradores do Frei Damião que, ainda em 2019, percebeu essa necessidade depois de uma visita às casas dos moradores atingidos por uma tempestade. Naquele momento, ele iniciou um trabalho em parceria com empresas e OSCs locais e até o momento já foram finalizados onze banheiros e mais três estão sendo construídos. Essas 14 estruturas atendem ao todo 64 pessoas. A intenção agora é ampliar o projeto e entregar os banheiros que ainda faltam.

Imagine morar numa comunidade em pleno século 21 e não ter o mínimo? Um cômodo mínimo, como um banheiro decente para você fazer uso, tomar o teu banho direitinho. Desabafa Vladimir.

A comunidade Frei Damião. Foto: Fernanda Biasoli

A construção dos banheiros a partir de uma demanda dos moradores, é um exemplo dessa dinâmica que acontece de baixo para cima, um dos princípios básicos da filantropia comunitária. Ou seja, quando aqueles interessados em investir em determinada comunidade, primeiro fazem o movimento de escutar quais são as demandas locais para, assim, doarem o dinheiro de maneira que a população local tenha independência sobre o seu destino. É importante ressaltar que a filantropia comunitária defende o ato de doar, não de executar. Isso porque acredita no poder de transformação que as comunidades podem ter sobre suas realidades, quando decidem de maneira autônoma em quais pontos querem investir. Afinal, nem toda filantropia tem o objetivo de transformar a sociedade. Muitas vezes, pode ser uma forma de preservação do status quo e das relações de poder. Por isso, é importante pontuar as diferenças entre a filantropia comunitária e a tradicional.

Construção dos banheiros no Frei Damião. Em diversos casos, as estruturas são colocadas do lado de fora das casas, pois, geralmente, os banheiros novos são uma das melhores partes das moradias. Com isso, a intenção é possibilitar que os moradores construam novas casas ao redor dessas estruturas. Fotos: Vladimir Rodrigues/Associação de Moradores do Frei Damião

Segundo as pesquisadoras Jenny Hodgson e Anna Pond, no estudo “How Community Philanthropy Shifts the Power”, a filantropia comunitária pode ser definida como “uma forma e uma força voltada para o desenvolvimento de recursos, talentos, capacidades e confiança locais. É uma forma de transferir poder para mais perto da base, para que as populações e atores locais tenham maior controle de seu próprio destino”. Ou seja, é uma filantropia que acredita que o movimento de fortalecer organizações e coletivos que já existem e atuam nos territórios, é uma das respostas para a construção democrática do país. 

Ao reunir representantes de diferentes órgãos e entidades, o Comitê de Desenvolvimento do Frei Damião promove uma troca de saberes entre a comunidade e as pessoas interessadas. Vladimir Ribeiro, presidente da Associação de Moradores do Frei Damião, coloca que essa conversa abre um leque gigante de possibilidades e explica: “Para você poder fazer alguma coisa, tem que conhecer a realidade. Aqui, já vieram diversos atores tentar mudar nossa realidade, mas sem escutar quem está aqui trabalhando no momento. Não buscaram saber das nossas mazelas, dos nossos dilemas, das nossas necessidades. Então quando acontece essa conversa, a gente consegue expor tudo isso, deixar mais explícito e fica mais fácil da pessoa investir em pontos específicos que estamos acionando”.

Essa dinâmica também permite que aqueles que recebem as doações saiam do lugar de “beneficiário” e ocupem a posição de “co-investidor”, o que contribui para uma maior horizontalidade e participação social. Maria Amália Souza, uma das fundadoras do Fundo Casa Socioambiental e uma das vozes ativas pela filantropia comunitária no Brasil, define: 

Alguém que fala por si mesmo é exatamente a base da democracia.  Explica Maria Amália Souza.

Ela defende que esse apoio direto às comunidades é um ponto de virada muito forte, pois fortalece o sentimento de que essas pessoas e suas necessidades estão sendo ouvidas. Amália ainda coloca que, junto com o recurso financeiro, muitas vezes são oferecidos outros tipos de recursos, como formações, capacitações e acompanhamento durante a execução das atividades.

Ouça o áudio acima para saber mais sobre filantropia comunitária no Brasil.

Assim, além de ser aliada à promoção de orgulho e dignidade a uma comunidade, a filantropia comunitária também é um movimento que acontece em rede e permite que encontros, relacionamentos e afetos aconteçam. “É como o poema do João Cabral de Melo Neto: ‘um galo sozinho não tece uma manhã’. É um movimento que vai armando toda uma teia de fortaleza,  porque se a gente quer mudar esse país, temos que colocar dinheiro na mão do povo para ele executar suas soluções e entender que também são incluídos. Com isso, vão ficando cada vez mais fortes e melhores atores dentro da sociedade”, finaliza Amália.

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