Manifestações ocorreram em diversas cidades brasileiras. A revolta contra o reajuste da passagem de ônibus em São Paulo foi o estopim dos atos. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Entrevista: “Brasil teve ‘saída à direita’ para as demandas das Jornadas de Junho de 2013”

Para Murilo Procópio, que pesquisou as Jornadas de Junho 2013 na UFSC, a reivindicação pelo embaratecimento dos serviços foi atendida por meio da precarização do trabalho. Apps de transporte e alimentação seriam sintomas desse processo

Por Felipe Bottamedi

O professor universitário e advogado Murilo Ramalho Procópio tem uma relação íntima com junho de 2013. Na época, o então mestrando da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) foi às ruas movido pelo o que hoje entende como “sentimento de que a ascensão social impulsionado pelos governos petistas tinha encerrado e ele “ficou de fora do oba-oba”. Os atos reuniram milhares de insatisfeitos com o custo de vida, entre tantas outras coisas, em diversas cidades brasileiras. O estopim foi o reajuste da passagem de ônibus em São Paulo.

As Jornadas de Junho se tornaram objeto tanto do mestrado como do doutorado de Procópio, o último concluído em 2022 no PPGICH/UFSC (Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina), no qual interpretou o fenômeno e pesquisou os reflexos das manifestações nos grupos de esquerda, tal como a emergência dos chamados “coletivos”. O recorte foi o município mineiro de Governador Valadares, onde ele vive. O estudo pode ser conferido neste link. Antes, no mestrado, estudou se era constitucional o uso de máscaras em manifestações.

Dez anos depois, o pesquisador guarda uma perspectiva positiva sobre os impactos do movimento na esquerda. Ele a difere das duas opiniões correntes – que responsabilizam as Jornadas de 2013 pela ascensão da extrema direita ou que veem o movimento como revolucionário. Atualmente docente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), Procópio conversou com o Cotidiano UFSC por telefone sobre as suas memórias e conclusões do fenômeno divisor de águas para o Brasil.

Onde você estava e o que te impulsionou aos atos em junho de 2013?

Morava no Rio [de Janeiro] e fazia mestrado na época. Não era vinculado a nenhum coletivo, fui como manifestante avulso. Essa política sem democracia direta e sem consulta ao cidadão me tocava na época. A outra coisa, lembro bem, como jovem sentia que estávamos esgotando as possibilidades de ascensão social dos governos petistas. Sentia que estávamos no final das oportunidades. É como se eu não estivesse fazendo parte do oba-oba que estava acontecendo A revolta surgiu como crítica pouco elaborada desse processo, por mim. Eu não sabia nem como colocar pra fora, eu era o que estava sentindo.

O que as Jornadas de Junho representam de novo para a esquerda?

As Jornadas tiveram influência na esquerda mais positiva do que negativa. Elas colocaram para fora algumas necessidades de revisão e de mudança no modo de atuação, de maneira geral. Principalmente em relação à construção de novas pautas, de novas formas de organização dos movimentos sociais e de pautas que a esquerda geralmente não gosta de tocar. Também de formas de organização, no sentido de valorizar as ações de rua e o intercâmbio com pessoas despolitizadas. Coisas que a esquerda estava precisando rever mas que não necessariamente aprendeu, né?

 

Quais são essas pautas?

São as que são chamadas de maneira pejorativa de identitárias, apesar de ser um nome que eu não gosto de utilizar. São pautas que dizem respeito às questões de comportamento e individuais, e não ligadas necessariamente ao mundo do trabalho. As Jornadas também colocaram em evidência questões como a gratuidade do transporte público, como construir serviços públicos de maneira gratuita e custeado pelo governo e pela sociedade, e não em uma lógica privatista.

 

De dez anos para cá, quais foram as soluções encontradas para essas pautas?

As jornadas expuseram o alto custo de vida nas grandes cidades e a precariedade do serviço público. Os manifestantes estavam pensando numa saída à esquerda para aqueles problemas. Só que, infelizmente, a resposta institucional e econômica foi uma saída pela direita. Simplesmente se barateou às custas da precarização. Como não se adotou a saída das Jornadas, tivemos respostas privatistas. Por exemplo, veio Uber, veio iFood, veio uma série de coisas que barateiam o custo ao trabalhador mas ao mesmo tempo gera precarização para ele.

 

Apesar disso, você classifica tua perspectiva sobre as Jornadas como “otimista”.

Há interpretações que apontam as Jornadas de Junho  como responsáveis pelas piora da esquerda e da vida do trabalhador de lá para cá. Mas eu não vejo relação de causa e efeito.

 

Você critica tanto a interpretação pessimista como a considera “a mais otimista”. Qual é o erro delas?

A interpretação que eu chamo de “otimista” é baseada na vivência próxima do evento por ativistas. Além de participar, conheci jovens que estavam envolvidos na época e havia certo exagero na possibilidade dos efeitos transformativos. É como se aquilo ali fosse um processo realmente revolucionário. Acreditava-se que estávamos em uma situação de deposição de governo, de mudança constitucional, de mudança nos valores da sociedade brasileira. E ela não representava isso tudo em primeiro lugar, né?

Em relação às interpretações pessimistas, o problema é que elas apontam que as Jornadas foram de alguma maneira planejadas – ou por organizações internacionais ou por opositores internos ao Partidos dos Trabalho (PT) aqui no Brasil. No sentido de que a extrema direita sempre esteve no controle da situação desde a sua emergência. Quem vivenciou e se debruça sobre os acontecimentos verifica que elas são resultados de movimentos que já existiam e faziam barulho em algumas cidades. Aquilo se tornou viral por uma contingência. E tinha predominantemente um viés de esquerda no seu início. Atribuir controle e maniqueísmo da direita para as Jornadas não encontra reflexo na realidade.

 

Na tese você ressalta a aproximação dos movimentos com pessoas não-politizadas. O que isso significa?

Durante a tese cheguei à conclusão de que certas formas de expressão da ação de rua, que valorizavam a autonomia dos movimentos e se afastavam do protagonismo de um partido tradicional ou de um movimento sindical específico, eram uma preocupação com que outras pessoas também tivessem voz. Vivenciei isso e, com as entrevistas junto aos coletivos [feitas durante o doutorado], entendi que foi uma tentativa de aproximação  com quem não tinha grau de politização. Tanto a escolha da forma coletiva como movimento social quanto a característica dos protestos.

 

Você menciona o protagonismo dos coletivos.

Embora existam há mais tempo – há diferentes trabalhos que estudam eles em anos anteriores às manifestações – eles foram a principal novidade ao público leigo. Em muitas cidades foram eles que organizaram efetivamente os primeiros protestos. Os coletivos traziam essa crítica à política representativa e à representação que ocorre na política tradicional, nos partidos, nos sindicatos e movimentos sociais mais antigos. Que é a escolha de um líder, de um presidente, ou de uma liderança que responde pelo todo, que tem mandato, que tem salário. Os coletivos se organizavam de maneira diferente, pelo menos inicialmente. A proposta era essa: não haver liderança fixa, uma valorização das deliberações coletivas e democráticas, todo mundo ter um voto igual e tentar chegar às soluções pelo consenso. Os coletivos representavam questões como o distanciamento da política com a população. Eles expressavam esse descontentamento.

 

Por que os atos viralizaram?

As redes sociais foram importantes. Além disso tem a conexão simbólica que o acontecimento fazia com outras lutas ao redor do mundo. Tanto as lutas relacionadas à Primavera Arabe, o Occupy Wall Street e aos protestos anti-austeridade que vieram depois da Crise Econômica de 2008, do Subprime. Tinha essa conexão simbólica com os movimentos de jovens, principalmente dos pertencentes aos coletivos.

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