Reportagens

Cena musical independente de Florianópolis abre espaço para diversidade

Ambiente historicamente dominado por homens mostra cada vez mais a presença de mulheres e pessoas LGBTQIA+

Reportagem por Ana Beatriz Quinto

Em uma noite de sexta-feira na Rua Victor Meirelles, no centro de Florianópolis, duas mulheres ocupavam o palco do Bugio, tradicional bar de música da cidade. Uma delas tocava guitarra e cantava suas composições autorais no microfone. Logo atrás, a outra liderava o ritmo com a bateria. A dupla mostrava a potência das mulheres na música, mesmo que em uma cena historicamente dominada por homens. Ambas formam a banda Dirty Girlls.

Mariel Maciel, 39 anos, baterista do duo, começou a tocar o instrumento aos 15 anos de idade. Nos anos 2000, formou um grupo composto só por mulheres, a B.I, que se apresentava no extinto “Underground Rock Bar”, localizado na Avenida das Rendeiras: “Quando surgiu a B.I, foi algo muito massa. Era uma banda autoral, chamou bastante atenção”, relata Mariel. Apesar de ser uma das poucas mulheres tocando em bares, ela conta que fazer música sempre foi algo muito natural: “nunca parei de tocar”. Quando a banda encerrou as atividades, ela integrou o grupo Borboletas Acrobáticas e o Menino Isoladinho, nome que fazia referência às três integrantes meninas e um garoto.

Atualmente, Mariel compõe a Dirty Girlls em parceria com a vocalista e guitarrista Jéssica Gonçalves, 37 anos. A dupla se uniu durante a pandemia: “A gente já teve muitas outras bandas, a Dirty Girlls foi agora, um resgate”, destaca, contando que as bandas estavam paradas devido à pandemia. “E a gente sempre foi muito ativa”, acrescenta Jéssica.

Em outubro de 2022, a dupla lançou o seu primeiro EP, intitulado “Faz teus corre, irmão”. Com o retorno dos shows, Jéssica e Mariel se apresentaram em casas de show clássicas do centro de Florianópolis, mas também chegaram a outras cidades, como Curitiba, Brusque, Ponta Grossa e São Paulo. As duas procuram transitar em locais que elas sabem que são mais progressistas e feministas. “A gente não vai tentar tocar em locais que não vai ter uma abertura para banda independente e autorais”, explicam.

Jéssica e Mariel no evento Girls on the Front, na Bugio, em outubro de 2022 (Foto: Ana Quinto)

Para Mariel, que frequenta a cena musical há algumas décadas, os últimos anos, a fizeram perceber a importância da representatividade. “Quando eu comecei eu era muito nova. Ao longo do tempo, da vida, isso foi se mostrando mais importante, essa ideia de que eu estou num lugar que representa bastante”. Ocupar espaços de relevância no palco pode influenciar muitas outras pessoas. Segundo Jessica, um dos principais desafios é dar o primeiro passo. “É ter coragem de se jogar, de fazer, você vai pensar: ‘vão me julgar por eu ser mulher'”. Mariel completa em seguida, “mas foda-se!”.

A presença na cena musical de mulheres como Mariel e Jessica é importante para pavimentar caminhos para a nova geração que está trilhando passos importantes em Florianópolis e que também pode influenciar meninas mais novas a ocuparem esses espaços. É o que reforça Ana Nasário, de 26 anos, que estava como baterista da banda Exclusive os Cabides e agora se prepara para assumir os teclados. Ela, que também é formada em piano e toca outros instrumentos como guitarra, experienciou um momento marcante em um show, quando observou uma menina de três anos impressionada que havia uma garota no palco tocando. “Foi o primeiro show que a Exclusive fez pós pandemia”, conta Ana. “Ela ficou do meu lado na bateria, olhando para mim, tipo ‘tem uma menina aqui” sabe? E ela era muito pequena”. Para a baterista, momentos como esse são especiais. “Talvez no futuro isso a afete de uma forma positiva, que ela pense, se essa menina está aqui, eu também posso. Acho que a importância parte daí, das mulheres ocuparem esse lugar, porque a música é um ambiente bem machista”, completa. Ana já passou por algumas situações em que a misoginia se mostrou presente. É comum as mulheres se sentirem mais cobradas nos palcos, principalmente na técnica musical. “A gente foi tocar em São Paulo e um cara falou para mim, que pela levada, pela mão leve [na bateria], ele tinha sentido que era uma mina tocando, e na hora eu não quis dar uma retórica para não parecer afetada”.

Ana Nasario na bateria em show da Exclusive os Cabides no Bugio, centro de Florianópolis. Ela se prepara para assumir outro instrumento no grupo: o teclado (Foto: Ana Quinto)

Essa experiência pode ser parecida para quem está nos palcos, mesmo em ambientes diferentes. Carola Werutsky, de 28 anos, tocava bateria na banda La Leuca, que atualmente não está em atividade; a banda era composta por quatro mulheres. Atualmente, faz parte da Sonho Estranho e da Exclusive os Cabides como baterista. Sua história com a música começou na adolescência, quando fez parte de um grupo feminino que tocava covers, criado pelo professor Carlos Lamarque. “A minha realidade era um pouco diferente porque era uma banda só de mulheres, não tinha homens, mas claro que tudo tem exceções, você pode estar em um ambiente que não é hostil, mas é algo que está enraizado em você. Se eu estivesse em um rolê que a gente vai tocar em outra cidade, com outra banda que é só de homens, eu sempre fico atenta, sabe? Eu não baixo a guarda mesmo que pareça ser de boa, mas é porque é algo que está enraizado, aquela desconfiança”, relata. Para a artista, a solução é que haja mais diversidade na música, seja nos palcos, na produção ou entre as bandas. “Ninguém vai perder por optar pela diversidade”, explica. “Todo mundo quer sair de casa, ir para um rolê e se divertir, sem hostilidade. Só tem a agregar”.

Carola Werutsky na bateria em show da Sonho Estranho, no Beco do Corvo; a artista começou a tocar o instrumento ainda na adolescência (Foto: Ana Quinto)
Os desafios da música autoral e independente

De acordo com as entrevistadas, se inserir em um mercado criativo é difícil, mas os desafios se tornam maiores quando se é uma artista independente, que conta apenas com os próprios recursos, sem possuir contratos com gravadora ou selos de música. Artistas mulheres desempenham diversas funções, como realizar o planejamento estratégico da sua carreira, desenvolver a produção dos shows, pensar na divulgação dos seus lançamentos, dentre outros.

Elen Cristina, 29 anos, é uma voz conhecida nas rodas de samba de Florianópolis. Ela é integrante do Geosamba, coletivo que organiza rodas de samba na Universidade Federal de Santa Catarina e em bares como o Bugio Trindade. Nos últimos anos, Elen tem consolidado sua voz e criado o seu próprio repertório. Ela lançou o projeto “Samba de Cristina”, evento que leva o seu nome e que ajuda a cantora a criar uma conexão com o seu público: “Ele foi bem estratégico. O Samba de Cristina vem para trazer a minha identidade, para que eu possa me mostrar como artista. Ele mantém o público comigo”.

A iniciativa faz parte de uma das várias que a cantora coloca em prática na gestão da sua carreira. Se dedicar apenas à parte musical não é uma opção para a maioria dessas mulheres. É necessário buscar recursos para realizar os seus projetos, como a gravação de um single ou um álbum. “É a passos lentos, que você precisa se planejar. Demanda energia”, reforça Elen Cristina.

Elen Cristina é natural de São Paulo. Sua trajetória começou nos saraus da cidade, quando recitava poesias autorais. Hoje, é criadora do evento “Samba de Cristina” (Foto: Amanda Ramos)

Elen conta com uma rede de apoio feminina: “São mulheres que confiam e acreditam no potencial do meu trabalho”, explica. Desde a produção de material fotográfico, ao styling para se apresentar em shows e eventos, até o auxílio de uma economista para que ela se organize financeiramente, e à produção artística, tudo perpassa a união com outras mulheres.

Elisa Imperial trabalhando em festival em Florianópolis. A fotógrafa já cobriu shows de bandas como Nx Zero e Fresno (Foto: Tóia Oliveira)

Esse vínculo com outras profissionais artistas é importante também para colocar mais mulheres na cena de música catarinense dentro e fora dos palcos. As fotógrafas de música também desempenham um papel importante, e em muitos momentos, colaboram com as musicistas no material de divulgação, shows e eventos. Elisa Imperial, 25 anos, se formou em fotografia na Universidade do Vale do Itajaí e trabalha na cena alternativa há alguns anos. Ela fala sobre como ter referências femininas foi importante para que se sentisse confortável em uma profissão predominantemente masculina. 

“Quem são os ícones da fotografia? São homens. Quem inventou, descobriu a fotografia, foram homens. Mas no mercado de trabalho, eu conheci a Tóia [fotógrafa da Camerata], e eu tinha outras referências mulheres. Como eu comecei a frequentar os mesmos espaços muito cedo, era mais acolhedor”, explica. “Teve momentos em que eu trabalhei que a equipe era predominantemente feminina”. 

No entanto, Elisa diz que trabalhar à noite é um desafio a mais. Os ambientes noturnos podem ser hostis. “Eu já tive momentos que eu vi que eu não estava sendo levada a sério. Você vê que as pessoas lidam diferente com homens nesses ambientes. Em alguns momentos, eu senti que homens na mesma profissão não estavam me levando a sério”.

A artista Thuanny Paes, 28 anos, carioca que cresceu em Laguna e atualmente reside em Florianópolis, conduz a sua carreira em diversas frentes, assim como Elen Cristina. Com formação em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina, ela é atriz, cantora e compositora, produzindo trabalhos em diversas plataformas, como a do audiovisual. Um dos destaques é o projeto autoral “Não precisa ser forte”, dividido em atos. O primeiro deles, “Licença pra chegar”, tem direção geral e criativa chefiada por Thuanny. Lançado em 2022, o trabalho foi selecionado para festivais, como o III Festival de Cinema Negro em Ação e o MC Mulheres. 

Thuanny Paes em “Licença pra Chegar”, trabalho audiovisual que também faz parte da sua dissertação de mestrado na Universidade do Estado de Santa Catarina (Foto: Matheus Trindade/@trindadead)

“Eu comecei a desenvolver um trabalho multimídia na pandemia, audiovisual, performático, teatral e musical”, explica. A multidisciplinaridade da artista tem origem na sua trajetória no Coletivo Nega, no qual ingressou durante a sua vida estudantil na UDESC. “Eu desenvolvi trabalhos de produtora, designer, e no coletivo a gente sempre cantou, dançou e atuou. Então sempre foi uma coisa natural, um processo bem multimídia”. Apesar da prática em exercer todas essas frentes, as artistas independentes precisam equilibrar o desenvolvimento da sua arte com outras demandas. “Isso é uma grande questão. Como a gente tem que fazer vários processos, muitas vezes não conseguimos o mesmo tempo que uma pessoa em condição melhor, tem para desenvolver [os projetos]. A gente precisa trabalhar, se sustentar, e fazer arte”.

Anis De Flor, 29 anos, é outro exemplo de artista que toma as rédeas da gestão de sua carreira. A cantora, que está no cenário da música há dez anos, trabalha com a produção do seu trabalho em diversos aspectos, além da parte artística. Ela acredita que para contratar outras pessoas, a remuneração precisa ser justa. Como Anis é uma artista independente, acaba desempenhando muitas tarefas. “Às vezes eu me sinto mais tranquila de pegar tudo no colo e fazer tudo sozinha”, explica.

Anis de Flor em ensaio fotográfico para a capa do EP “Fértil”, reconhecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte como um dos 50 melhores de 2022 (Foto: Matheus Trindade/@trindadead)

O sonho de viver de música é um verdadeiro desafio para as artistas independentes, seja para as cantoras solo ou as musicistas que tocam em bandas. Um sentimento em comum entre todas elas, é a persistência para continuar investindo nos seus projetos, contando com pouco apoio. As bandas que possuem um público fiel também encontram dificuldades: “Mesmo fazendo shows, o que mais dava dinheiro era vender camisetas, algo que ajuda bastante, mas não chega nem perto de um salário mínimo para viver e ter tempo. A questão é o tempo. A gente trabalha com outras coisas, para ter dinheiro, para ter tempo, para fazer música”, explica a baterista Carola Werutsky.

As produtoras culturais são responsáveis por construir a cena

Até um artista ou banda chegar nas playlists do público ou se apresentar nos palcos das casas e dos festivais em Florianópolis, existe um trabalho intenso de curadoria, organização e gestão cultural realizado no backstage. Na cena independente de Florianópolis, as responsáveis por realizarem os eventos e produzir as bandas são, na maioria das vezes, mulheres.

Emanueli Dalsasso, 27 anos, é produtora da banda instrumental Grillo E Os Mosquitos e começou a se interessar pela organização de eventos durante a faculdade de Moda na Universidade do Estado de Santa Catarina. Em 2018, ingressou na indústria musical. “Foi na música que eu me senti acolhida e preparada para entrar de cabeça nesse mundo”. No último semestre, se dedicou à produção da Maratona Cultural 2023, evento que reuniu mais de 150 mil pessoas nas ruas de Florianópolis em março.

Emanueli Dalsasso no Festival Saravá, em janeiro de 2023. A sua camiseta diz: “Produza como uma garota” (Foto: Ana Quinto)

Uma produtora cultural que também exerce a função de administrar a carreira de uma banda ou artista, se divide em diversas funções. “Eu sempre falo que eu tenho dois trabalhos: a produção de eventos, que é uma coisa, e o empresariamento de uma banda. É tudo produção de uma certa forma, mas é um pouquinho diferente. Hoje eu sou empresária da Grilo E Os Mosquitos, penso a médio e longo prazo a carreira de uma banda”. Nos seus primeiros passos trabalhando com música, há cinco anos, foi entendendo como funcionam os processos de gerenciar uma banda independente, desde a venda do merchandising, a divulgação dos artistas, até a realização dos shows.

Já Vitória Saiago, 26 anos, natural de Uberlândia, trabalha com a banda Exclusive os Cabides desde 2020. Ela já havia produzido o grupo catarinense La Leuca. Sua relação de trabalho com a música se iniciou quando começou a frequentar uma série de festivais independentes no sudeste do Brasil, até chegar a Florianópolis, para estudar na Universidade Federal de Santa Catarina. Além de trabalhar com produção, ela também é musicista, tocando baixo no grupo catarinense Sonho Estranho. Vitória possuía experiência organizando eventos, e a conexão com o universo da cultura foi o impulso para trabalhar no meio. Sua proximidade com artistas fazia com que participasse naturalmente de processos artísticos: “Eu dizia: [para as bandas] ‘vocês querem que isso aconteça?’, então eu vou fazer acontecer”, explica.

 

Vitória Saiago no baixo em apresentação da banda Sonho Estranho, no Beco do Corvo. Além de produtora, ela também é musicista, compondo, cantando e tocando (Foto: Ana Quinto)

Em 2018, organizou a turnê do EP “Doce de Leite”, da La Leuca, que passou por sete cidades do país. Nesta época, já exercia oficialmente as atividades de uma produtora. As profissionais que ocupam o posto na indústria cultural e da música comentam que a atividade é vista quase como algo maternal: “Eu queria desvincular um pouco disso”, comenta Vitória, “a maioria das pessoas na produção são mulheres. É quem cuida das coisas realmente”.

Para Emanueli, a produção é um trabalho visto como feminino em diversos aspectos: “A produção é o trabalho do cuidado com o outro. O cuidado com o evento, com o artista, então pelo contexto geral da sociedade e de como a gente foi criado, a produção é um trabalho em que normalmente as mulheres se dão bem, porque a gente foi criada para cuidar dos outros, né? Antes de cuidarmos de nós mesmas”. Em Florianópolis, não é apenas o cenário de música independente que conta com mulheres realizando a gestão das carreiras de bandas e artistas. Nomes muito conhecidos do público, como a banda Dazaranha, possuem lideranças femininas em suas equipes. “A gente tem uma cena em Floripa de muitas mulheres produtoras”, comenta Emanueli, “nos meus trabalhos, no geral, eu sempre tento chamar outras mulheres”, completa.

As produtoras também são responsáveis por encabeçar projetos que fomentam a música na cidade. A Guerrilha Produtora, por exemplo, criada por Ju Baratieri, 38 anos, é administrada por ela e Manuela Campagna. Elas são responsáveis por trazer grandes nomes para Florianópolis, do cenário alternativo e mainstream, de Pabllo Vittar ao Terno Rei. Formada em Cinema e Comunicação Social, Ju iniciou o trabalho na Guerrilha organizando festas. Com o caixa oriundo dos eventos, planejava os shows. Ela diz que organizar esse tipo de espetáculo é um desafio. “Só em 2019 que a gente começou a arriscar para coisas um pouco maiores, tipo mil pessoas”. No seu catálogo, a Guerrilha tem festivais como o Pop Pride Festival e o Doce Fest, que aconteceram na ilha em 2022.

Para que as mulheres tenham destaque no cenário da música em Florianópolis, segundo Ju Baratieri, as políticas públicas para a cultura devem ser uma prioridade. “Tem que ser mais acessível, em todas as funções e em todos os cargos. A mulher tem a questão de se preocupar e de ter um cuidado maior em tudo”, explica, referindo-se à produção. “Quanto mais mulheres tiverem, mais nós vamos ser visíveis em todo o Brasil”.

Muito além da questão de gênero

O cenário da música independente não apresenta desigualdade apenas quando se fala do gênero. Os problemas são ainda mais latentes quando se abordam as questões de raça. Os dados divulgados pela pesquisadora Thabata Arruda, que analisou a presença feminina em 76 festivais brasileiros, dos anos de 2016 até 2018, mostram que para cada 14,1 artistas homens, a proporção é de 1 mulher negra no line-up dos eventos.

Para Elen Cristina, ainda é necessário que muito espaço seja aberto para as mulheres negras. “As artistas pretas precisam passar por muita coisa até serem validadas”. As diferenças estão em questões de pagamento de cachê, de oportunidades para ocupar espaço nos palcos da cidade, dentre outros. A cantora cita a trajetória de artistas conhecidas de Florianópolis que construíram uma carreira de anos até serem valorizadas. “Quanto que Dandara Manoela já não recebeu de cachê nessa cidade? Se uma mulher branca artista recebe R$500,00, você tem que pagar R$1.000,00 para uma mulher negra, por reparação mesmo, por vocês entenderem que a nossa presença aqui é muito importante, e isso ainda tá longe”.

Na organização dos grandes festivais da cidade, a curadoria, que é a escolha dos artistas, costuma ficar sob a responsabilidade de homens brancos. Para Anis de Flor, isso dificulta ainda mais a inserção da diversidade nos eventos de música. “Existe essa coisa de que ‘a gente vai ter que ter um artista negro ali para dizer que é um festival moderno, descolado’, então vamos colocar um, mas não vamos colocar duas, três, porque um tá bom, né? Isso é bem estrutural do racismo, de não enxergar a pluralidade”. Segundo a artista, esses fatores aumentam também a dificuldade dos cachês circularem entre outras pessoas que não sejam as brancas. “São sempre os mesmos lugares, os mesmos eventos e empresas que estão ali circulando essa grana, entre pessoas brancas e entre homens. E essa grana raramente circula de uma maneira justa, e raramente pagam o que o nosso trabalho vale”.

Diante das dificuldades, as artistas buscam outros mecanismos para criarem os seus próprios espaços a partir de uma rede de apoio que fortalece seu trabalho. Na gravação do seu EP “Fértil”, Anis de Flor reuniu outros músicos que inspiraram a sua carreira, como Marissol Mwaba, François Muleka, Dessa Ferreira e Alegre Corrêa para trabalhar no Estúdio Ouié, na Armação. “Foi uma experiência maravilhosa, porque foi um ambiente de tentar fugir dessas dificuldades que a gente vive, em uma área que é majoritariamente masculina e branca. A gente fez esse movimento de se aquilombar, de fazer algo nosso”. Para a cantora, a criação do espaço foi fundamental para o processo de produção do disco, que conversa com os temas da sua vida particular. “Esse álbum fala de várias questões, de me reapropriar de coisas que eu perdi ao longo do tempo e não ia fazer sentido eu não gravar com pessoas que entendessem isso. Eu chamei as minhas amigas, e foi um processo incrível e bem significativo, bem pensado logo de cara. Eu queria criar um ambiente seguro”. O EP levou Anis de Flor a um dos marcos da sua carreira: entrar na lista da Associação Paulista dos Críticos de Arte dos 50 melhores discos de 2022.

A representação LGBTQIA+ na cena de Floripa

Os palcos da cidade também contam com espaço reduzido para pessoas da sigla LGBTQIA+. As dificuldades para quem não se enquadra nos padrões normativos de uma pessoa cisgênero são constantes, mas isso não impede que artistas estejam ativos no cenário da música manezinha. Sabs Becker, 18 anos, que se identifica como pessoa não-binárie, é quem assume o baixo na banda Fata Morgana, grupo de hardcore formado em 2022 e que lançou o seu primeiro EP em janeiro deste ano. A trajetória com a música iniciou cedo, com influência do irmão mais velho que tocava bateria.

Sabs Becker em show da Fata Morgana. Elu já se apresentou em casas como Bugio, Beco do Corvo e Desgosto (Foto: Isaac/@iam.utopia)

“Eu escutava muitas músicas no iPod dele, essas bandas de rock antigo. E toquei piano durante três anos”, conta. Já o baixo entrou em sua vida recentemente, quando a Fata Morgana precisou de uma pessoa para assumir o instrumento. “Eu sempre tive vontade de tocar, mas eu nunca tive um empurrãozinho. Eu aprendi o baixo na marra”. O resultado é uma série de shows em locais da cidade conhecidos pelos fãs de música, como a Bro Cave e o Beco do Corvo. Para elu, a diversidade no hardcore é fundamental. “Eu acho que todo mundo, não importa quem seja, LGBTQIA+, não-binarie, deve estar incluso. É injusto, só porque a pessoa se identifica assim, ela ser barrada de curtir o som, de se expressar”. Mesmo com desafios, também há apoio: Sabs comenta que sentiu acolhimento por parte de cenas que estão interligadas à da música em Florianópolis, como a do skate: “Foram uma das primeiras pessoas que acolheram a gente. A gente já conhecia eles antes, citamos que tínhamos vontade de lançar música e tal, e eles sempre nos apoiaram. Em um dos ensaios que fizemos, a galera do skate foi assistir a gente tocar”, comenta.

Sabs Becker em show da Fata Morgana no Desgosto. O evento reuniu bandas da cena de hardcore nacional (imagem: Yan da Silveira @visionsbyshax)

Maitê Fontalva na guitarra, tocando em parceria com a banda Sonho Estranho. Ela também realiza trabalhos de produção musical (Foto: Ana Quinto)

Já Maitê Fontalva, 27 anos, natural do Mato Grosso do Sul e criada no Maranhão, é graduanda em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Sua paixão pela arte começou ainda na infância, quando um dos seus hobbies era sentar em frente ao som de casa e ouvir CDs, enquanto lia os encartes. Aos 14 anos, começou a estudar um instrumento, iniciando pelo violão. Em pouco tempo, já estava fazendo parte de bandas com amigos da escola, ocupando o lugar de vocalista. 

Atualmente, ela canta, toca e também faz a produção das músicas do grupo Orquidália, além de ser integrante da Apocalypse Cuier, banda transcentrada que lançou o single “Terroristas de Gênero”, no final de 2022. Maitê acredita que as casas de show em Florianópolis estão criando oportunidades para pessoas da sigla, mas ainda há mais que deve ser feito. “Tem lugares que estão se abrindo bastante para a música autoral, para a música feita por mulheres, a feita por pessoas LGBT. E tem casas que são mais conservadoras e estão mais presos numa ideia de rock, especialmente o rock feito por homens”, explica. 

Para ela, a relevância de ter pessoas da comunidade LGBTQIA+ em cima dos palcos é fundamental para que outras visões sejam reconhecidas. “Apresentar outras narrativas, contar outras histórias, observar as questões por pontos de vista que são historicamente negligenciados, que são inviabilizados. Ter mulheres trans, pessoas não-binaries, LGBTs ocupando esse lugar de narração. O simples fato de você ter pessoas que não estão dentro da classe universalizante que é o homem branco, e abrir espaço de discurso para pessoas que historicamente não foram ouvidas, é um processo revolucionário”. 

Maitê está constantemente ocupando um lugar de representatividade para diversas pessoas que se enxergam nela no palco e a artista leva esse papel a sério. “Eu encaro esse trabalho com muita responsabilidade. Tanto quando eu estou trazendo um discurso mais político, explícito, ou quando estou cantando sobre outras questões sentimentais e existenciais”, aponta, “nesse lugar que eu estou, pessoas vão se espelhar no que eu que eu estou cantando, fazendo ou falando”.

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