Colagem por Giuliano Bianco
Reportagens

A “profissão mais antiga do mundo” penetra o século XXI

Plataformas digitais mudam as relações de trabalho no mercado de sexo. Trabalhadoras ainda lutam por regulamentação no Brasil

Por Ísis Leites, Jéssica Schmitt e Vitórya Navegantes

Prostituta, profissional do sexo, garota de programa, meretriz, messalina, mulher da vida, puta, rapariga, trabalhadora sexual, camgirl (produtora de conteúdo). São diferentes as retratações do trabalho sexual ao longo dos anos e em diferentes classes sociais. Hoje, essa profissão assume uma posição semi-legal na sociedade. Esse status se dá principalmente pelos estigmas impostos sobre as profissionais do sexo e dificuldades de atuar na legalidade.

Apesar de o Ministério do Trabalho ter reconhecido a prática como trabalho em 2002, e inserido a expressão “profissional do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), existem diversas contradições legais. A profissão ainda depende de regulamentação pelo Congresso Nacional. Enquanto isso, o governo não tem como garantir os direitos trabalhistas das profissionais do sexo nem como fiscalizar locais de trabalho. Houve projetos de leis que propuseram a regulamentação do trabalho sexual, como o PL 4211/2012, conhecido por PL Gabriela Leite, em 2012, que foi engavetado. O projeto foi batizado em homenagem à luta de Gabriela Leite, trabalhadora sexual na década de 70.

A oficialização pela CBO, entretanto, traz algumas melhorias para as condições  das trabalhadoras sexuais. Elas podem contribuir com a previdência social, receber aposentadorias, auxílio-doença e qualquer outro direito trabalhista comum a outras profissões. Para Frida Carla, advogada criminalista que é também profissional do sexo e ativista, os direitos das trabalhadoras sexuais são os de todas as mulheres. “Não existem direitos só das trabalhadoras sexuais. Na verdade,  se parar para pensar, não existe nenhum direito específico.”

Nesse cenário de incertezas, com dificuldades em encontrar condições adequadas de trabalho, lidar com pressões de clientes e patrões, manter a saúde sexual em dia e receber o que se é prometido, o cotidiano das profissionais do sexo possui diversos impecilhos para o acesso aos seus direitos, que vão além das limitações legais.

“O fato é que, sendo ou não a profissão mais antiga do mundo, a prostituição está posta, e um número incrivelmente grande de pessoas a exerce — em sua maioria, mulheres – cisgêneras e transgêneras – e em sua maioria, mulheres pobres.”

Da boate aos sites

 

“Eu tava me fodendo ganhando R$ 1,2 mil por mês em um trabalho que odiava. Larguei meu trabalho e três dias depois estava em Balneário Camboriú.” É assim que Bruna, 24 anos, relata como foi o começo da sua carreira como trabalhadora sexual. Segundo ela, o primeiro contato com a agência de prostituição pareceu um sonho, que pouco tempo depois tornou-se um pesadelo. “Era tudo perfeito, maravilhoso. E aí pensei: é essa a vida que quero pra mim.” Quando chegou na agência, porém, tudo era diferente do prometido. “Eu tinha que ficar o dia inteiro disponível e ele ainda ficava com 40% do valor que eu cobrava dos clientes.”

Bruna tem um padrão de vida elevado com o trabalho sexual como fonte de renda única. “Meu estilo de vida hoje em dia é alto. Meu aluguel é caro, minhas contas mensais são caras e também meus looks. Meu amigo sempre fala: amiga, você é muito mimada, só que é você que se mima.” Mas a realidade de Bruna nem sempre foi assim. Após sair da agência, com a ajuda de uma vizinha e de amigos, foi trabalhar em uma boate no centro de Florianópolis, a Bokarra. Lá, começou a ter problemas com drogas ilícitas. “Comecei a usar muita cocaína, porque à noite, principalmente em boates, os clientes e as meninas usam para ficar acordadas e lidar com os problemas.” E acrescenta: “Eu me sentia muito fora do padrão [das trabalhadoras da boate], e emagreci muito. Em dois meses, perdi 15 quilos de uma forma nada saudável. Fiquei doente, super mal”.

O uso de drogas não ficou restrito ao ambiente de trabalho, tornou-se um hábito do dia a dia. “Além de cheirar no trabalho, eu cheirava no rolê. Comecei a cheirar três, quatro dias na semana, às vezes até cinco. Precisei pegar na minha mão e falar ‘gata, isso não é vida’.” Quando a boate fechou por conta da pandemia, Bruna investiu no trabalho online, como camgirl, e foi um momento difícil. “Tinha que me sujeitar a muita coisa porque precisava de grana. Passava a noite toda por um valor que eu cobraria por duas horas na boate.” A vida só melhorou depois que ingressou em outras plataformas de serviços sexuais.

Uma vida confortável não é a realidade das pessoas quando iniciam no sexo pago. A advogada Frida Carla, por exemplo, conta que entrou por necessidade. “Eu tinha 18 anos, um filho com um ano de idade, morava em São Paulo e não tinha o ensino médio completo. O que me apareceu foi o trabalho sexual.” Ela acredita que é uma profissão como qualquer outra.

 

 

Diferente de Frida Carla, Andressa entrou no trabalho sexual por outro motivo: marcar encontros casuais. Ela utiliza um portal de serviços para colocar anúncios e, de quebra, ganhar algum dinheiro. “Não busquei plataforma de relacionamentos, procurei por acompanhantes de luxo, porque não estou buscando um relacionamento”. E acrescenta: “Eu me cadastrei na plataforma pois estou estudando para um concurso e faço faculdade”.

O uso de aplicativos e portais para venda de serviços sexuais tornou-se comum nos últimos anos. Segundo dados da CNN Brasil, o OnlyFans possui cerca de 150 milhões de usuários e mais de 5 milhões de criadores de conteúdo. Já o portal usado por Bruna e Andressa possui mais de 25 mil anúncios, segundo dados da própria empresa. Elas escolheram a plataforma por considerá-la mais segura. “Quando você faz uma chamada ou uma reclamação, fala diretamente com pessoas, não com robôs”, afirma Andressa. Bruna, que encontrou a plataforma através de uma amiga, conta que tinha preconceito com sites, não os achava  seguros. “Mas pensei: eu preciso, então vou fazer.” Ela está há quase três anos na plataforma. “Me encontrei no site, é bem melhor que a boate. Lá era muito puxado, abria às nove da noite e fechava às cinco da manhã.”

As relações de trabalho no contexto relatado por Bruna mudaram completamente com as opções digitais. Apesar de não ter as pressões impostas por patrões, horários rígidos de entrada e salários menores, a responsabilidade da trabalhadora sexual em plataformas é maior. Bruna desenvolveu uma série de requisitos para aceitar clientes e garantir sua própria segurança, como pedir a localização da pessoa e ver se é seguro. “Consigo perceber se estão com intenções ruins.” O risco, mesmo assim, existe, porque não há fiscalização.

 

À própria sorte

Sem preocupação por parte do  Poder Legislativo, as trabalhadoras sexuais continuam em situação de vulnerabilidade e encontram auxílio em associações independentes, como a Associação Nacional de Profissionais do Sexo (Anprosex). Em Florianópolis, a Estrela Guia faz o papel de auxiliar essas pessoas. Patrícia Alves, presidenta da organização, afirma que possui projetos para profissionais do sexo, cis e trans, em situação de vulnerabilidade. “Elas têm que preencher um questionário elaborado por nós para construir dados relacionados à etnia, classe social e gênero, com diversos marcadores sociais”. 

Enquanto a regulamentação da profissão não sai da gaveta, personagens como Bruna Surfistinha, Christiane F e Maria Madalena continuam sendo julgadas, perseguidas, mortas e sem seus direitos garantidos. Famosas ou anônimas, dependem umas das outras.


* Os nomes Bruna e Andressa são fictícios para preservar a identidade das fontes.


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