Foto: Bárbara Schroeder
Reportagens

Morro da Mariquinha, em Florianópolis, abriga a maior galeria de arte urbana do Sul do Brasil

Tour guiado leva visitantes a conhecerem os painéis que retratam a história de uma das comunidades mais tradicionais da capital catarinense

Por Bárbara Schroeder e Gabriele Oliveira

“Sejam bem-vindos! Eu sou o Alex Correia, nascido e criado aqui no Morro da Mariquinha, e costumo falar que com o umbigo cravado aqui também”. É assim que começa um Rolê da Mariquinha, tour idealizado pelo guia de 41 anos. Logo na entrada da rua Dr. Cid Gonzaga, que dá acesso à comunidade, os visitantes podem ter um gostinho do que os espera ao longo da caminhada: muita arte e o conhecimento de várias gerações sobre o local.  

O Morro da Mariquinha é uma das comunidades mais tradicionais de Florianópolis. Localizada no Maciço do Morro da Cruz, a região recebeu um grande fluxo migratório no início do século XX, quando o local passou a ser habitado por pessoas de baixa renda, que trabalhavam no centro da cidade. Hoje, o Morro da Mariquinha é a casa de cerca de 3 mil habitantes – entre eles, Alex Correia, um dos personagens  dessa história. 

Junto a outros moradores tradicionais da Mariquinha, o rosto de Alex estampa um painel de lambe-lambes na entrada da comunidade. A obra, realizada pelos artistas Alberto Pereira e Carlos Bobb, retrata três gerações de habitantes do morro. Na primeira foto, à direita, o líder comunitário sorri em frente a pintura em homenagem a Dona Rosa, sua avó.

Ao centro, estão representadas as matriarcas da comunidade: Dona Isabel, 92, Setembrina, 96, e Dinha, 90, mulheres que trabalhavam como lavadeiras e ajudaram a construir a bica d’água que até hoje abastece as casas quando falta água encanada na região. À esquerda, representando a nova geração do Morro da Mariquinha, estão os meninos Claudinho e o Bé.

Painel de lambe-lambes instalado na entrada da rua Dr. Cid Gonzaga, que dá acesso ao Morro da Mariquinha. Foto: Bárbara Schroeder

Mas a entrada da comunidade nem sempre foi assim. Antes do projeto da Galeria de Arte do Morro da Mariquinha, as ruas do bairro eram caminhos comuns, com paredes brancas e cinzas, pintadas somente pelo tempo. O cenário começou a mudar em 2020, a partir da articulação de um antigo morador da comunidade, o comunicador Edsoul, com o projeto Cidades Invisíveis, que ajudou a colocar em prática um desejo antigo de colorir o Mariquinha.  

Segundo Preto Lauffer, produtor do Cidades Invisíveis e morador do local, a ideia de transformar a comunidade em um mural a céu aberto começou a surgir quase uma década antes da efetiva criação da galeria, com os artistas Vejam e Rodrigo Rizo, atual curador da galeria, que já movimentavam a cena do graffiti na Mariquinha desde 2008. 

“[A ideia da galeria] nasce como um sonho de ocupar primeiramente as periferias. De certo ponto, já se via que a arte urbana tava ganhando um espaço dentro das áreas televisivas, mas ainda com um certo glamour, ainda ocupada por pessoas diferentes de nós, em espaços muito diferentes dos quais nós nos sentimos pertencentes”, afirma Preto. 

O pontapé inicial para a transformação da Mariquinha aconteceu em fevereiro de 2020 e contou com cerca de 65 artistas, responsáveis pelos primeiros murais localizados no final da rua Laura Caminha Meira, ponto de encontro dos moradores. Um dos frutos dessa primeira etapa é o letreiro que virou cartão postal da comunidade e foi revitalizado em 2022. Desde então foram mais sete etapas, envolvendo cerca de 300 artistas. 

Com tanta coisa para se mostrar, a comunidade passou a ver na Galeria de Arte uma oportunidade de levar para além dos muros a história e os símbolos ali representados. Assim, o Rolê da Mariquinha começou a ser realizado em novembro de 2021 e já registra mais de 800 participantes. Para Alex, além de apresentar a comunidade e os painéis, o passeio também tem o intuito de reivindicar o lugar de fala dos moradores e quebrar preconceitos.  “Muitas pessoas dessas que vieram na comunidade, nunca tinham subido uma comunidade. E isso faz com que a gente comece a sair da invisibilidade do que a gente realmente é e do que a gente realmente quer para a comunidade, então o Rolê vem pra trazer esse embate: ‘não pera aí, a nossa história deixa que quem fala somos nós!”.

Ao longo do trajeto, Alex remonta a história da comunidade, entre eles a origem do nome, dado em homenagem a uma das primeiras moradoras da região, a Dona Mariquinha, que participou do processo de ocupação do morro, loteando os terrenos ao lado da sua residência, em 1930. O passeio também relembra episódios marcados na memória da comunidade, como as disputas do narcotráfico pelo domínio da região nos anos 1990, e passa por locais tradicionais da comunidade, como o mirante da Mariquinha, onde é possível enxergar as pontes que ligam a ilha à região continental, e a tradicional bica d’água, ponto de encontro das lavadeiras da comunidade antigamente.

Do repúdio ao aliciamento, o grafitti mudou a relação da comunidade com a arte

Em 2020, quando o projeto da Galeria de Arte da Mariquinha dava seus primeiros passos, Alex foi o responsável pela ponte entre a comunidade e o Cidades Invisíveis. Ele conta que quando souberam da iniciativa, alguns moradores se assustaram com a ideia. “A gente sabe que o graffiti é ainda um pouco criminalizado, né? Então, algumas pessoas ficaram: ‘ah, não vai riscar as paredes lá em casa’”. Mas a resistência não durou muito. Ao verem os primeiros resultados, todos foram ‘aliciados’ pelo graffiti. “Então começou a ter um aliciamento do bem em relação à arte. Tipo, onde a gente tinha resistência para pintar, começou a ser: – Nossa, se tivesse uma arte igual aqui na minha casa, eu adoraria. Então os artistas conquistaram isso com os moradores, né?!”

Um dos moradores ‘aliciados’ foi Maycon de Souza. Nascido e criado na Mariquinha, o porteiro e empreendedor conta que no começo não gostou da ideia – mas quando viu, já era tarde demais.

“O combinado era só pra pintar a parte debaixo aqui, e quando eu cheguei já tava a casa toda pintada”

Depois do susto, quando analisou com mais calma o resultado do trabalho do artista Rodrigo Rizo na  casa, Maycon mudou de ideia. “Quando eu vi que não era qualquer desenho, era um desenho bonito, aí eu não liguei mais não”, o morador ainda completa “hoje não penso em tirar”.

Entre as figuras que ilustram a casa de Maycon Souza, está o camaleão, símbolo do artista Rodrigo Rizo. Foto: Bárbara Schroeder

Além de colorir as ruas, os murais retratam cenas do dia a dia da comunidade e traços da personalidade dos moradores. Seu Vivinho que o diga. Há 70 anos vivendo na Mariquinha, o pescador de mão cheia não poderia ter outra figura estampando sua casa. Ele conta que, quando os artistas vieram grafitar a residência, eles pediram que Alex indicasse algo que representasse o morador. “Diz os caras: nós vamos fazer esse peixe que é muito bondoso, muito carinhoso, grandão, mais bonitão assim, né?” Vivinho ainda conta que a imagem do peixe pode ter diferentes interpretações, a depender do jeito que você olha.

 

Membro da velha guarda da Mariquinha, seu Vivinho nasceu - literalmente - na comunidade com a ajuda da parteira Dona Rosa, avó do Alex. Foto: Bárbara Schroeder

Além de colorir as ruas, os murais retratam cenas do dia a dia da comunidade e traços da personalidade dos moradores. Seu Vivinho que o diga. Há 70 anos vivendo na Mariquinha, o pescador de mão cheia não poderia ter outra figura estampando sua casa. Ele conta que, quando os artistas vieram grafitar a residência, eles pediram que Alex indicasse algo que representasse o morador. “Diz os caras: nós vamos fazer esse peixe que é muito bondoso, muito carinhoso, grandão, mais bonitão assim, né?” Vivinho ainda conta que a imagem do peixe pode ter diferentes interpretações, a depender do jeito que você olha.

 

A retomada do espírito comunitário da Mariquinha

Ao conversar com os moradores, não é difícil encontrar relatos de como a transformação da Mariquinha impactou no sentimento comunitário da região. Uma das testemunhas desse processo, é Luiz Henrique Mendes, o Bé. Hoje com 15 anos, o jovem comenta que antes da criação da galeria, a integração entre os moradores era menor, muitos acabavam descendo o morro para socializar. “Agora depois da galeria é tudo diferente, né? Por causa que tem gente participando do projeto ali, do bairro educador. Os moradores se falam porque foi criado um grupo, né?!”. 

A Mariquinha integrada que Bé está conhecendo hoje já fazia parte das memórias de Alex. Com 40 anos de comunidade, o guia relembra saudoso de uma época em que esse espírito comunitário era vivido dia a dia entre os moradores. Essa dinâmica foi interrompida por uma série de conflitos que marcaram a história da Mariquinha ao longo dos anos 1990 e a primeira década de 2000. Entre os episódios estão tentativas de desocupação do local, disputas pelo controle do narcotráfico na região, além do mais recente, em 2011, em que o deslizamento de uma pedra de 200 toneladas, causou a morte de uma moradora. Diante dos riscos e do abandono do poder público, muitos moradores tradicionais da comunidade optaram por deixar o local.

 

Morro da Mariquinha em 1975. Foto: Casa da Memória de Florianópolis

Anos depois, essas cicatrizes têm sido ressignificadas e dão espaço à mobilização popular. “Tá na hora de começar a ter nossa identidade de volta, resgatar o nosso momento de comunidade, aquelas festas nas casas dos moradores, festas juninas que a gente fazia, os eventos, por exemplo, mutirão para fazer uma melhoria na comunidade”, afirma Alex.

Ainda em 2015, de forma independente, o líder comunitário começou a oferecer oficinas de Jiu-Jitsu e Surf para as crianças e adolescentes da Mariquinha. Para ele, a criação da galeria de arte foi um divisor de águas nesse processo de retomada do antigo sentimento de pertencimento da comunidade.

“Então a arte ela vem com esse intuito de trazer essa reidentificação da comunidade, [que começa a pensar] assim, ‘ah não vocês estão aqui, vocês precisam ser vistos, os direitos que estão na cidade, que estão em qualquer local, tem que estar presente na comunidade”

Apesar de ainda enfrentar problemas como a violência policial e a falta de assistência do Estado, os moradores do Morro da Mariquinha vêm se fortalecendo para construir um futuro melhor para os moradores da região.

 

A Mariquinha do Futuro

Entre as ruas da Mariquinha, passado presente e futuro se encontram. A história de seu Vivinho, por exemplo, acompanha a evolução do bairro ao longo dos anos. Ele nasceu em casa em 1953, com a ajuda de uma das parteiras da comunidade, Dona Rosa – avó de Alex. Ao relembrar a juventude, o morador conta que apesar de ter aproveitado uma infância de brincadeiras com os vizinhos, a situação também exigia que os jovens deixassem os estudos muito cedo para poder trabalhar. “Do tempo que eu era guri, quando nasci, a gente foi vendendo cocada, vendendo banana, todo mundo aqui saía pra batalhar quando nós era pequeno e isso era ruim para nós porque aí nós não estudamos”.

Hoje as crianças da Mariquinha têm oportunidade de se envolver em oficinas de cultura e esporte no contraturno escolar através de projetos como o Bairro Educador, financiado pelo município, além de oficinas promovidas pelas lideranças comunitárias, incluindo surf, futsal, literatura e artes. Os demais moradores também têm oportunidade de participar de oficinas profissionalizantes tanto por meio de oficinas projeto municipal, quanto por meio do Bonsai da Mariquinha, metodologia de ensino implementada através do Cidades Invisíveis.

Essa gama de oportunidades têm revelado uma geração de novos talentos na Mariquinha. Um deles é o dançarino mirim Vitinho, de 9 anos. “Vitinho da Mariquinha”, como se nomeia nas redes sociais, frequenta as oficinas de danças urbanas pelo projeto Bairro Educador desde os 7, mas segundo o pai, Maycon – que você já conheceu nessa reportagem -,  a afinidade com a dança é ainda mais antiga. “Desde os quatro anos ele já dançava em casa por conta própria. Aí quando entrou no projeto, deslanchou. […] Hoje é o dançarino da comunidade”.

Outra vertente que vem ganhando força por meio do Rolê da Mariquinha é o empreendedorismo comunitário. Com o aumento no movimento de turistas pela região, os comerciantes podem ampliar seus negócios e fomentar a economia local. Para Preto Lauffer, nesse aspecto há ainda uma fronteira de oportunidades a serem exploradas. 

“Quero um lounge aqui no [bar do] Ju que seja a referência dos melhores drinks da cidade, eu quero que a lanchonete da Gi vire um Bistrô ou restaurante, qualquer que seja a denominação, mas que seja um lugar turístico. […] Eu acho que é essa criação de novas perspectivas de empoderamento social na qual a gente vai reforçar esses vínculos comunitários e vai apresentar a nossa sociedade de aqui de cima para o mundo lá de baixo, sabe?”. 

Para Preto, tanto o empreendedorismo comunitário quanto os projetos sociais são fundamentais para impulsionar a “fábrica de talentos” – forma como se refere às favelas e comunidades que resistem em um Brasil imerso em preconceitos.  “Esses talentos sempre estiveram aqui no morro, porém nunca com o olhar do pessoal da pista. Porque eu vejo que é muito estereotipada ainda essa visão. A gente tá nessa quebra de estigma também”

Com planos para o contínuo crescimento da comunidade que é a sua casa há 40 anos, Alex deseja que o Morro da Mariquinha seja cada vez mais reconhecido como parte integrante de Florianópolis – que as suas belezas, suas dores, sua arte e sua história sejam consideradas também constituintes da magia da ilha. 

“O que hoje me traz aqui neste momento é uma história antes da arte. Só que agora eu quero saber uma história pós arte. A gente quer também entrar no calendário turístico da cidade. Florianópolis é bela por natureza, mas não é só praia. É bela por natureza, mas também tem favela. Tem uma vista diferenciada da cidade, tem a arte dentro da comunidade, tem as suas tradições. Ela tem a sua cultura, sua gastronomia local. Então tudo isso tem que ser trazido para que as pessoas possam se empoderar disso, sabe?!”.

E aí, ficou curioso para conhecer ao vivo a maior galeria de arte do sul do Brasil? Para saber mais informações sobre os próximos Rolês da Mariquinha e poder agendar sua visita, siga o perfil @roledamariquinha.

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