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Reportagens

As cicatrizes da pandemia de covid-19

Quase três anos e meio após a declaração de pandemia mundial pela OMS, que transformações ficaram na população? 

Por Júlia Matos

“OMS declara pandemia de coronavírus”. Essa foi a manchete que dominou os portais de notícia em março de 2020 e oficializou o começo da maior tragédia sanitária do século XXI. Os últimos três anos totalizaram milhões de mortes no mundo todo. Foi só recentemente, em 5 de maio de 2023, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o fim do estado de emergência da covid-19, considerando a diminuição da taxa de mortes pela doença e a alta imunização. 

“Mas isso não significa que a doença não esteja mais por aí, ela continua circulando”, diz Lauro Mattei, professor de Economia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que realizou relatórios semanais durante a pandemia, onde analisava a situação do vírus no Estado. Ele explica que a OMS continua incentivando os cuidados e a vacinação, na medida em que as pessoas continuam se infectando e lidando com as sequelas de covid longa. “A vacina foi crucial no processo de colocar um freio na contaminação”, afirma. 

Além das milhões de mortes, o coronavírus também deixou outros impactos. O professor Mattei diz que “a pandemia reconfigurou a lógica do funcionamento do mercado de trabalho”. Esvaziamento de locais de trabalho, valorização do home office, diferenças na interação entre colegas de trabalho, a pandemia afetou aspectos sociais, políticos e econômicos na vida de todos, ainda que de maneira diferente para cada um.

Profissionais de saúde

“No início parecia algo muito distante que não ia chegar até nós. Então quando começou aquela correria no hospital foi bem assustador”, conta Alessandra Araújo, enfermeira há seis anos no Hospital Universitário da UFSC. Ela explica que, logo após as primeiras contaminações por coronavírus em Florianópolis, a dinâmica do trabalho no Hospital mudou: a equipe de saúde foi dividida em clínica geral e em cuidados com os pacientes positivos para covid. “Nosso trabalho triplicou. O pessoal da farmácia e da copa não podia mais entrar na emergência, então virou uma ‘bolha’ bem isolada”.

A enfermeira diz que o maior medo que teve durante a pandemia era o de levar o vírus para casa e contaminar sua mãe, já idosa. O psicológico de sua família ficou bastante sensibilizado nesse período. 

"Eu estava na linha de frente e ainda tinha que segurar o emocional dos familiares”

No HU, Alessandra e os colegas de trabalho apoiavam uns aos outros mesmo quando “todo mundo já estava esgotado”. 

Segunda ela, atualmente, o ritmo frenético da pandemia vem desacelerando aos poucos, mas a demanda geral do hospital permanece alta. As consultas e os atendimentos eletivos voltaram a se intensificar, pois ficaram retidos por muito tempo em que a prioridade era a covid-19. “A pandemia acabou, mas nossa rotina continua muito pesada”. Alessandra reforça, ainda, a necessidade de maior valorização dos profissionais de enfermagem, que “estavam – e estão – todos os dias trabalhando pela vida das pessoas”.

 

Profissionais da arte

Fazer passagem de som, tirar foto com o público e trocar ideias. É assim que Dandara Manoela descreve parte de sua rotina como cantora. Isso mudou de maneira abrupta quando, logo depois do retorno de uma turnê no início de 2020, os shows presenciais precisaram parar.

“Consegui realizar muita coisa pré-pandemia que me sustentou naquele início, então me senti de certa forma sortuda nesse quesito. Muita gente não teve essa sorte”

Durante a pandemia, ela obteve dinheiro de diferentes meios: fez lives, deu aulas online de canto e recebeu retorno financeiro por streamings de suas músicas. A artista também faz parte do grupo de musicistas Cores de Aidê, que teve a oportunidade de fazer algumas apresentações internacionais com os devidos cuidados, como em Dubai. Dandara também conta da vez em que viajaram até a Angola, na África, e lá descobriu que estava com covid-19. “Foi de sonho a pesadelo”. Ela e a outra cantora do grupo ficaram isoladas e não puderam realizar o show. 

Hoje, Dandara agradece por poder cantar presencialmente com mais tranquilidade, pois sente que as pessoas, assim como ela, já enjoaram de lives. A procura pelas aulas de canto diminuiu. “Sinto que agora é um novo momento, novas adaptações”. Ela confessa que só depois do decreto da OMS é que está “caindo a ficha” de que estamos chegando ao fim dessa fase: “mas não sei se a gente já vive completamente sem medo do vírus”.

Profissionais da educação

Adriana da Costa é professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental e hoje percebe visivelmente o déficit que os alunos tiveram por causa da pandemia. Linguagem, habilidade motora e até mesmo o tamanho das crianças sofreram defasagens, segundo ela. “Também percebo elas muito mais ansiosas, impacientes e individualistas”. A professora explica que estes são aspectos que estão tentando ser reparados desde que a escola onde trabalha voltou ao ensino presencial.

"Logo no começo da pandemia, nós já sabíamos que qualquer tentativa de aula remota existiria para garantir um vínculo e não de fato um aprendizado completo”

Na época, Adriana era coordenadora dos anos iniciais e conta que, junto aos professores, algumas decisões foram tomadas para otimizar a educação online. Decidiram dividir as turmas em grupos menores e priorizar algumas partes do currículo de cada série. Ela recorda que a sobrecarga de trabalho foi muito significativa nesse período. “Eu ligava o computador sete horas da manhã e fechava só meia-noite. Tinha ‘um milhão’ de e-mails para responder, cursos para fazer e pendências para resolver”.

A professora notou, também, que a pandemia reforçou as desigualdades sociais no ambiente escolar. “Tivemos doação e empréstimo de computadores para garantir que ninguém ficasse para trás, mas não foi o que aconteceu. Infelizmente muitos ficaram para trás”. Segundo ela, as crianças com maior poder aquisitivo tiveram mais desenvolvimento no retorno. “A gente sabe que vai levar um bom tempo até suprir todas as defasagens”, adiciona.

Serviços essenciais

Gerente de farmácia e estudante de Enfermagem, Débora Lima lembra que, logo no início da pandemia, os clientes do estabelecimento onde trabalha passaram a entrar apavorados no local. “Levavam vários frascos de álcool e pegavam quantidades absurdas de remédios porque tinham medo que as farmácias fechassem”. Vários aspectos da rotina de trabalho mudaram. Toda vez que atendiam alguém, os funcionários precisavam trocar as luvas e higienizar todos os equipamentos utilizados. 

Ainda no começo da pandemia, Débora ficou grávida de sua segunda filha. Por se tratar de um período de incertezas, o momento de felicidade veio acompanhado também de medo. As preocupações dobraram quando Débora contraiu o coronavírus nos primeiros meses da gravidez. “Eu tenho uma imunidade muito boa, sou difícil de ficar doente, mas foi a pior doença que eu já peguei, mal consigo descrever a sensação”. Para ela, o alívio só veio quando a vacina chegou. Entretanto, percebe que muitos clientes da farmácia ainda se recusam a se vacinar, “principalmente pessoas mais idosas, que costumam acreditar mais em fake news”.

“Quando eu pude tirar a máscara também foi um alívio. Comecei a valorizar pequenas coisas como sair com os amigos para tomar um café”

Débora olha para trás no tempo com certa decepção e acredita que se todos tivessem sido mais responsáveis, muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Segundo ela, ainda são vendidos muitos testes de covid-19 por dia: “A gente não pode achar que está 100% imune”.

Pandemia e saúde mental

Apesar do coronavírus ter impactado a vida das pessoas de diferentes formas, algo que se mostrou comum foi a percepção de mudanças na saúde mental – tanto durante, quanto após a pandemia. Erikson Kaszubowski, psicólogo do Serviço de Atenção Psicológica (SAPSI) da UFSC, explica que o isolamento social empobreceu as relações interpessoais. “Em alguns casos, isso causou agravamento de quadros depressivos e ansiosos”.

Além do distanciamento social, as inúmeras incertezas e o luto em relação às perdas de pessoas próximas foram os principais motivos de procura por ajuda no SAPSI nesse período. Segundo Kaszubowski, atualmente, é comum a chegada de pacientes que apresentam luto estendido, efeitos da ansiedade e dificuldade na readaptação do contato social. 

O psicólogo explica que ainda é difícil definir com exatidão todas as consequências cognitivas da covid. De acordo com estudo realizado pela OMS, transtornos de ansiedade e depressão cresceram 25% no primeiro ano da pandemia. 

A pesquisa “Pandemia e saúde mental”, publicada na Revista Gestão & Políticas Públicas da USP, aponta que, em países com maior desigualdade social, os efeitos podem ser maiores, uma vez que a população vulnerável tem menos acesso a políticas públicas de promoção da saúde mental. 

Outro estudo publicado na revista Lancet aponta “altas taxas de depressão e ansiedade, entre outros sintomas psicológicos, principalmente entre mulheres, jovens, pessoas com problemas de saúde mental pré-existentes, profissionais de saúde e pessoas que vivem em condições vulneráveis”. Segundo os autores, “os países devem fortalecer urgentemente suas respostas de saúde mental ao covid-19, adotando ações para ampliar os serviços de saúde mental e apoio psicossocial para todos, alcançar populações marginalizadas e em risco e reconstruir melhores sistemas e serviços de saúde mental para o futuro”.

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