No Brasil, quase três milhões de pessoas dos 18 aos 25 anos já fumaram cigarros eletrônicos pelo menos uma vez (Foto: Victor Lebarbenchon)
Reportagens

Cigarro eletrônico: antigo hábito, novo protagonista

O tabagismo volta à vida dos jovens brasileiros por meio de vapes e pods que, apesar de proibidos pela ANVISA, têm quase três milhões de usuários no país

Por Matheus Vargas e Victor Lebarbenchon

Eram oito horas da noite. O DJ já havia iniciado a playlist, permitindo que o som alto passasse para além das paredes. O fim de semana estava animado, como de costume. A primeira festa foi na quinta-feira e já era sábado, terceira noite sem parar. O grupo de amigos sempre foi assim, frenético, e eles gostavam de deixar o “rolê” cada vez melhor, nunca recusavam uma novidade. Álcool e cigarro eram padrão, até que algo novo apareceu. “O que é?”, perguntaram. Nunca tinham visto um “cigarro” com aquela aparência.

O vape, termo que deriva de vaporizador, é diferente: tecnológico, com botões e design similar a um pen-drive. E o principal: “não tem cheiro ruim”. Para Pedro* , 21, usuário do cigarro convencional há quatro anos, aquilo era difícil de acreditar. “Quando fumo, odeio o cheiro que fica em mim, esse aparelho é muito melhor!”. Com Leonardo*, de 20 anos, a experiência foi outra: para quem nunca “curtiu” o cigarro, o dispositivo parecia ideal. Nada do “odor insuportável”, que ele tanto criticava quando alguém fumava por perto. Leonardo foi quem deu a primeira tragada e o sabor era “doce e seco”. Não sabia como descrever melhor. Yago*, de 24 anos, foi quem levou o dispositivo para a festa, logo afirmou: “é até mais saudável do que cigarro, acredita?”.

Cheiro e gosto de frutas, sobremesas, café e até mesmo pepino são alguns dos sabores que o cigarro eletrônico oferece. Além de sua aparência moderna e sofisticada, promete “menos malefícios” em relação ao cigarro convencional. Os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs), popularmente chamados de vape ou pod, foram vendidos como “mais limpos”, desde o surgimento do primeiro produto de tabaco aquecido, vendido pela empresa americana R.J. Reynolds Tobacco, no final da década de 1980.

Desde 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe a comercialização dos DEFs no Brasil. A decisão foi reforçada em junho de 2022, com um relatório completo. O parecer reuniu mais de 300 documentos e pesquisas de todo o mundo e justificou detalhadamente a proibição da venda dos cigarros eletrônicos no país. Segundo o órgão regulador, há evidências científicas que comprovam os malefícios destes dispositivos ao corpo humano, além de serem ineficazes contra o abandono do uso do cigarro convencional.

– Escuta, Yago, você não sente nada ruim no corpo por fumar isso aí? – perguntou Pedro, ainda pensando nos cigarros convencionais e o quanto ele sabe que fazem mal.

– Que nada, só senti falta de apetite, mas acho que é porque estou no mês de entregas da faculdade. A melhor coisa do vape é que é só um vaporzinho com melancia, com um pouco de nicotina pra fazer a gente ficar tranquilo – disse Yago, incentivando que os amigos experimentassem.

O que Yago não sabia ou escolheu ignorar, Laura Queiroz, pneumologista da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), explica. “Os cigarros eletrônicos não são apenas vapor de água. Têm metais pesados, partículas ultrafinas e agentes cancerígenos”. Segundo a médica, “são cerca de 2.000 produtos químicos inalados nesses sistemas eletrônicos de liberação da nicotina”.

Ianca Brun, uma jovem de 26 anos, percebeu alguns efeitos que o vape trouxe ao seu corpo. “O estômago foi o primeiro que eu reparei”. Dores, enjôo, falta de apetite, abstinência. Esses foram alguns dos sintomas quando ela fumava, ou parava de fumar. Quando foi ao médico, o diagnóstico era o esperado, a causa foi o vape.

Laura Queiroz destaca algumas consequências de longo prazo. Segundo a pneumologista, “o uso do cigarro eletrônico está diretamente relacionado com o surgimento de várias doenças respiratórias, gastrointestinais, orais, além da dependência estimular o uso de cigarros tradicionais”. Ou seja, a utilização contínua do pod ou vape pode gerar o uso dual, que é o consumo simultâneo do cigarro convencional e o eletrônico.

Ianca fumou cigarros convencionais esporadicamente desde seus 16 anos. Em 2021, conheceu os e-cigarettes, termo em inglês que significa electronic cigarettes, ou cigarros eletrônicos. A primeira experiência foi com amigos, em uma festa. “Todo mundo fuma [vape] nas casas noturnas”, diz.

Para ela, o fator social foi um dos maiores influenciadores que a levaram ao uso dos cigarros eletrônicos: “em rolê e festa, todo mundo está fumando o tempo todo. É automático, é natural”. Nos locais que ela frequentava, os DEFs eram permitidos em ambientes internos, o que facilitava o uso. “Não tem como sair do lugar para fumar um cigarro, então eu acabava usando o pod“.

Os cantores Lenine (primeira foto) e Tunai (segunda foto) no lançamento do livro Bom dia, Alegria!, em 1985

Quando faltavam “puxas”, ou seja, tragadas, ela precisava procurar alguém que pudesse emprestar o aparelho. “Se eu não tivesse, chegava no rolê que estavam todos fumando e dizia ‘pelo amor de Deus me dêem um pega’”. Às vezes, o desejo era tanto que era necessário a compra de um novo. “Já comprei até mesmo um sabor de pepino, porque todos os outros estavam em falta, e eu precisava fumar”.

Ianca relata que a dependência do vape foi tanta, que além do estômago, começou a afetar sua boca. “Eu ficava cheia de ferida. A gengiva, sensível e machucada”. Bárbara Finardi, cirurgiã dentista, alerta que a xerostomia, ou baixa produção de saliva, é a consequência mais comum do uso dos DEFs. Esta baixa lubrificação pode causar lesões, além de aumentar a chance de cáries e doenças fúngicas, como a candidíase. Machucados no céu da boca também são comuns, por conta das temperaturas do vapor. A profissional destaca que há, ainda, “problemas comuns do cigarro convencional que se repetem com os cigarros eletrônicos”.

Bárbara se dedicou ao estudo dos cigarros eletrônicos em seu Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na pesquisa intitulada “Nível de conhecimento dos estudantes de graduação da área da saúde sobre cigarros eletrônicos”, analisou  especificamente acadêmicos próximos do fim de suas graduações em cinco cursos diferentes: Nutrição, Enfermagem, Farmácia, Odontologia e Fonoaudiologia. O resultado foi preocupante. Dos 139 alunos consultados, a grande maioria classificou seu conhecimento sobre DEFs como “baixo”. Na conclusão da pesquisa, ela afirma que “ainda há uma grande lacuna no conhecimento de profissionais da saúde quanto ao uso de cigarros eletrônicos”. Além disso, destes acadêmicos, 12,2% se declaram ser usuários dos dispositivos.

Esses números se assemelham às taxas nacionais. Apesar da proibição da Anvisa existir há 13 anos, o Brasil mostra números preocupantes. Segundo relatório do Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel) do primeiro trimestre de 2022, 7,3% dos brasileiros usaram, pelo menos uma vez, o cigarro eletrônico. Isso representa 15 milhões de pessoas. Dessas, quase 20% está entre os jovens. A faixa etária de 18 a 24 anos tem a maior taxa em relação às outras idades.

Este cenário não é exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, em 2019, 5,3 milhões de estudantes usavam cigarros eletrônicos. Essa realidade pode ser explicada, em parte, pela publicidade do produto. De 2015 a 2018, os jovens foram alvos certeiros para as empresas de cigarros eletrônicos. A Juul, fabricante dos e-cigarettes, fez circular anúncios que foram estudados pela pesquisa do Impacto da Publicidade do Tabaco, da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, publicada em 2019. O estudo concluiu que as estratégias de marketing da empresa utilizavam modelos com roupas “tendência” e com “poses e movimentos mais evocativos para menores de idade do que para adultos”. Além disso, os embaixadores da marca eram influenciadores digitais. O produto foi até mesmo nomeado pela mídia americana como o “iPhone dos vapes”.

Comparar o iPhone com o Juul não é muito distante. O diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha de São Paulo, Ronaldo Lemos, escreve em uma de suas colunas que o dispositivo é o casamento entre o Vale do Silício e a indústria do cigarro. Em publicação do dia 14 de maio de 2018, afirma que “as empresas de tecnologia vêm desenhando produtos que são cada vez mais compulsivos para seus usuários”, e que elas descobriram como “unir nicotina com tecnologia”. O Juul se popularizou tanto que até mesmo virou verbo, como o conhecido “dar um Google”: jovens americanos falam “let´s Juul”, ou seja, “vamos juular?” ou “vamos dar um Juul?”. 

Embora no Brasil a venda do aparelho seja proibida, a compra muitas vezes é feita no exterior e contrabandeada. Não é muito difícil encontrar pontos de venda irregulares na internet ou até mesmo em tabacarias com espaço físico. Em março de 2022, foram recolhidas dezenas de cigarros eletrônicos em Florianópolis, após mães denunciarem ao Procon e à Polícia Civil, a venda dos itens próxima a escolas. A operação apreendeu dezenas de produtos em três tabacarias da capital catarinense. Essências líquidas e outros acessórios também foram encontrados.

Ao visitar uma tabacaria no centro de Florianópolis, foi possível entender melhor o processo de compra dos vapes e pods na cidade. O comerciante foi direto, “não vendemos mais”, disse e continuou, “paramos de vender porque a fiscalização aumentou”. Depois de alguns minutos de conversa, ao ser questionado sobre uma previsão do retorno das vendas dos vapes no estabelecimento, a postura do comerciante mudou. Ele entregou um cartão com seu contato e em tom de voz baixo, disse: “Vou ser sincero contigo, a gente vende, mas não dá para ser com qualquer um, sabe? Me chama nesse número que te encaminho o catálogo”.

Se nas lojas a venda continua acontecendo de forma velada, na internet, as barreiras são poucas. Basta uma pesquisa para encontrar sites que comercializam os DEFs e seus acessórios sem dificuldade alguma. Os preços são para todos os públicos. Os aparelhos podem ser adquiridos por valores que variam de R$ 30 a R$130 para os descartáveis. Já os recarregáveis, custam a partir de R$ 200, segundo o comerciante.

Infográfico comparando os tipos de cigarros eletrônicos comumente utilizados no Brasil. Os valores apontados se referem ao que existe em sites de venda. Arte: Victor Lebarbenchon

Questionada sobre estas situações, a Anvisa afirma que faz a fiscalização das redes e já sugeriu em seu último relatório um plano de ação em conjunto com órgãos responsáveis pela vigilância. Entre eles, Receita Federal, Polícia Civil, Procon e Polícia Federal já começaram alguns treinamentos pelo país com a finalidade de melhorar o combate ao contrabando dos dispositivos.

Apesar do retardamento do uso pelas regulamentações brasileiras, o acesso ao produto ainda é fácil no país. Nos Estados Unidos, onde a venda é legalizada, mais de 50 mortes foram registradas com ligação ao cigarro eletrônico em 2019. O que acontece no exterior pode ser um alerta ao Brasil, onde o uso dos cigarros convencionais decresce. Em 1989, a taxa de fumantes com 18 anos ou mais era equivalente a 34,8%. Em 2019, o número era 12,6%, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). A SBPT ressalta que o cigarro eletrônico pode reverter este avanço. “O uso desses dispositivos replica características comportamentais e sociais, perpetua a dependência da nicotina e renormaliza o tabagismo. São um retrocesso nas políticas antitabágicas, desenvolvidas ao longo dos anos no nosso país”, diz Laura Queiroz. Já a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia é taxativa: “[os cigarros eletrônicos] são um risco à nossa saúde pública”.

*Pedro, Leonardo e Yago são personagens ficcionais criados a partir de experiências reais.

**Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico III, ministrada pela Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres, no segundo semestre de 2022.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.