Manifestantes carregam a bandeira LGBT durante um ato contra o presidente Jair Bolsonaro em Florianópolis, no dia 24 de julho de 2021. Créditos: Beatriz Rohde
Reportagens

Florianópolis: LGBT-friendly para quem?

A Ilha da Magia é conhecida por atrair turistas LGBT, mas sua imagem de cidade acolhedora nem sempre faz jus à realidade

Reportagem por Luiza Casali e Beatriz Rohde

Florianópolis ostenta a fama de “Capital do Turismo Gay”. As praias Mole e Galheta, o concurso Pop Gay e a Parada da Diversidade atraem os turistas e contribuem para a imagem de gay-friendly, que é valorizada pelo setor turístico da chamada Ilha da Magia. Por trás da propaganda, no entanto, a população LGBT da capital catarinense enfrenta a violência e espera por políticas públicas que não saem do papel.

Em 2020, uma jovem transexual foi assassinada a facadas no bairro dos Ingleses, no norte da Ilha. Isabelle Colstt, de 27 anos, já havia sido espancada por um grupo de homens 15 dias antes de ser assassinada. Esse não é um caso isolado. Florianópolis está em 7º lugar no ranking dos municípios mais violentos do país para a comunidade LGBT, segundo um relatório do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, com quatro assassinatos registrados apenas em 2020. O número corresponde a 80% dos casos em Santa Catarina e dobrou em relação a 2019. Outro caso de violência chocou a cidade em junho deste ano. Um jovem gay de 22 anos foi internado em estado grave após ser vítima de estupro coletivo e tortura. Os agressores inseriram objetos cortantes no ânus do rapaz e o obrigaram a escrever palavras homofóbicas no corpo com os mesmos objetos. 

“A primeira coisa que a gente pensa quando vê as notícias é: poderia ter sido eu”, diz o jornalista e ativista dos direitos LGBT, Leonel Camasão, que é bissexual e mora na cidade. Para ele, a população gay é aceita enquanto consumidora, pois é vista como um público de alto poder aquisitivo. No entanto, o lado LGBT-friendly de Florianópolis coexiste com o conservadorismo e a ascensão da extrema-direita. “A própria faceta friendly vai nos desarmando. Você vê casais de mãos dadas na rua e tem a percepção de que é totalmente naturalizado. Essa receptividade te desarma, a gente sente que está tudo bem e de repente eles pegam um garoto de 20 anos e fazem isso. É muito assustador”, relata Camasão.

Pablo Corroche, porto-alegrense que costuma visitar a cidade, conta: “Presenciei uma agressão verbal contra um amigo meu, durante o Carnaval, alguns anos atrás na região da Lagoa da Conceição, que é um lugar teoricamente mais gay-friendly. Ele deu um beijo em outro homem e um senhor passando pela rua gritou que era um absurdo, um mau exemplo para as crianças, que não deveria acontecer”. Pablo comenta que já ouviu vários relatos de situações parecidas, mas esclarece que ele nunca sofreu preconceito na Ilha. “Me considero, dentro da comunidade LGBT, de certa forma privilegiado, porque sou um homem branco cis”.

Travestis e mulheres transexuais representam 70% das mortes motivadas por LGBTfobia no Brasil em 2020, ainda segundo dados do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+. A Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH) atende transexuais e travestis desde 2000, e atualmente também ampara outras pessoas da comunidade LGBT e mulheres cis. Embora na cidade existam  dois Ambulatórios Trans, a associação é a principal referência no acolhimento de vítimas de agressão.

Infográfico com o número de mortes de pessoas LGBTQI+ em 2020 no Brasil

Desde 2013, a instituição funcionava em uma sala de propriedade do Governo do Estado na Rua Trajano, até que em 2019 foi solicitada sua retirada do espaço. “Interromperam um trabalho que atendia 70 casos de violência por mês, tanto de moradores quanto de turistas. Eu já recebi pessoas na minha própria casa”, conta a coordenadora Lirous K’yo, assistente social e travesti. “Sem suporte do poder público, dependemos de doações, e ficou pior com a pandemia, porque a população de rua e da periferia não consegue chegar até nós para pedir ajuda”. O espaço onde funcionava a ADEH está até hoje vazio e trancado. 

Lirous afirma que o número de atendimentos a vítimas de violência aumentava nas férias de verão. Foi justamente nesse período, no dia primeiro de janeiro de 2018, que o turista gaúcho Pedro Henrique, 21 anos, sofreu agressão verbal durante sua passagem pela Ilha. O estudante de psicologia estava em um deck na Barra da Lagoa comemorando com seu namorado e amigos. “Foi na virada do ano, naquele momento de esperança de que o ano vai ser bom. E nós só estávamos abraçados, no máximo de mãos dadas”. Ele lembra que uma criança do bairro se dirigiu algumas vezes ao grupo e eles conversaram de forma amigável, mas em seguida a mãe começou a gritar que eles não deveriam estar ali e que o filho dela não poderia estar vendo pessoas assim. “Fiquei com receio de vir uma coisa pior, de ter arma na casa, da pessoa vir com um pedaço de pau. Meus amigos pensaram em chamar a polícia, mas eu falei que não, porque poderia ser mais homofóbica que a própria mulher. Minutos depois o marido dela apareceu e veio se desculpar, explicando que ela tinha a cabeça muito fechada”.

A necessidade de ações para garantir a segurança e o bem-estar da comunidade LGBT esbarra na dificuldade de implementar políticas públicas efetivas, mesmo após a criação do Conselho Municipal LGBT em 2016. Atualmente, o conselho luta para colocar em prática o Segundo Plano Municipal de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, visto que o primeiro plano, aprovado em 2012, não foi executado. Com 81 páginas, o documento atual engloba ações em sete eixos: saúde; previdência social, trabalho e emprego; turismo, cultura e esportes; educação; segurança; comunicação e; assistência social. O documento “é fruto da participação popular, um conjunto de boas intenções que, se aplicadas, mostram que a gestão é participativa”, explica Camasão. O plano foi elaborado, discutido e revisado durante dois anos até dezembro de 2016. E só foi aprovado em 24 de julho de 2019, por meio do decreto n. 20.522, assinado pelo vice-prefeito João Batista Nunes, que ocupava o cargo de prefeito na ausência de Gean Loureiro.

Entretanto, a aprovação não garantiu que o plano fosse colocado em prática. Margareth Hernandes, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da OAB-SC, que participou da criação do Segundo Plano Municipal, aponta que ainda há um longo caminho para a efetivação das políticas públicas. “Faltam pessoas dentro da prefeitura com maior engajamento na causa, que queiram realmente mudar isso. Eu acho que fica na gaveta, como muitas outras coisas ficam. Infelizmente, o poder executivo se preocupa com a imagem dele na próxima eleição e acha que cuidar do cidadão LGBT não dá voto em Florianópolis. Ainda é uma cidade conservadora”, defende Hernandes.

No que diz respeito ao turismo, o plano traça linhas de ação para a Secretaria Municipal de Turismo em parceria com outros órgãos, que visam a sensibilização e formação continuada de profissionais, medidas para promover um atendimento igualitário à população LGBT e respeito à diversidade cultural, orientação sexual e identidade de gênero. De acordo com o Superintendente de Turismo, Vinicius De Luca Filho, algumas ações do plano poderiam ser implementadas; para outras, afirma que não há dinheiro e não há “braço”.

Miguel Gregório, diretor de eventos da Superintendência de Turismo de 2017 até o início de 2021, aponta mais um obstáculo para a efetivação das ações propostas no plano. “Falta diálogo entre a comunidade e a gestão”. Ele, que foi presidente do Conselho Municipal LGBT por dois anos, conta que houve períodos em que o poder público investia mais no turismo gay. Em 2015, por exemplo, a Secretaria Municipal de Turismo promoveu um workshop gratuito para empresas e profissionais do turismo, lazer e entretenimento, intitulado “Capacitando para atender o turista LGBT”. Atualmente, não há mais iniciativas deste tipo.

Lirous, coordenadora da ADEH e participante do Conselho Municipal de Direitos LGBT, critica a falta de políticas efetivas.

Florianópolis quer se passar por capital gay-friendly, mas não tem estrutura. Tive uma reunião com a equipe de marketing da prefeitura para pendurar bandeiras LGBT na cidade, mas minha expectativa de vida não aumentou por causa disso

Lirous K’yo

Lirous também é DJ e costuma realizar sensibilizações com as equipes das casas de show onde se apresenta, para evitar que o público LGBT seja vítima de discriminação nas festas. 

Muitos turistas, em busca de segurança e acolhimento, preferem frequentar locais que se declaram LGBT-friendly. É o caso do porto-alegrense Andre Pilla Villela, que em sua última viagem à capital catarinense se hospedou no The Hyperion Boutique Hotel, o primeiro estabelecimento que aparece no Google quando se pesquisa pelo termo hotel LGBT-friendly em Florianópolis. “Quando você vai a um hotel assim, o gelo já está quebrado. O atendente sabe que é um casal e não é preciso passar por constrangimento. Espero que no futuro todo casal LGBT, em qualquer hotel ou lugar do mundo, se sinta à vontade para dizer que é um casal”. 

Em estabelecimentos gay-friendly, a equipe costuma ser treinada para acolher o público LGBT e evitar situações incômodas comuns no ramo da hotelaria, como o recepcionista reservar quartos com camas separadas para casais homoafetivos, ou não chamar hóspedes transexuais pelo nome social. Jens Nielsen, dinamarquês que mora no Brasil, e seu esposo, Pedro Boeira, abriram o The Hyperion Hotel no verão de 2014, após constatarem que não havia hotéis voltados para o público gay em Florianópolis. Jens salienta que o hotel recebe qualquer tipo de público e que o selo “gay-friendly” serve para que os turistas se sintam mais seguros ao se hospedarem. “Tive experiências ruins viajando com meu namorado, daí pensei: seria bom ter uma opção em que você sabe que vai ser bem-vindo do jeito que você é”.

Ter esta opção é um bom começo, contudo, é preciso reconhecer que o turista não permanece o tempo inteiro no hotel, e da porta para fora os espaços públicos da capital catarinense representam uma incerteza, até mesmo os conhecidos por acolherem o público LGBT, como a Praia Mole. “Acho muito simbólico que os gays fiquem lá em um canto onde ninguém vai, na margem da praia”, aponta o turista Pedro Henrique. “Enquanto tu ficar na margem, tá tudo ok, mas a partir do momento em que tu vai para a cidade em si, já não é um ambiente seguro”.

Símbolo da luta por direitos, a Parada da Diversidade

Uma multidão ergue uma bandeira com as cores o arco-íris gigante
Uma multidão ergue uma bandeira com as cores o arco-íris na Parada de Diversidade de 2019 em Florianópolis. Crédito: Guia Gay Floripa

Um dos eventos que atraem o público LGBT para Florianópolis, a Parada da Diversidade já reuniu mais de 70 mil pessoas na sua última edição presencial em 2019. Embora a cidade já tivesse a fama de receber turistas gays, foi a última capital brasileira a realizar a Parada da Diversidade, em 2006. A primeira aconteceu em São Paulo, em 28 de junho de 1997, inspirada pelas marchas nos Estados Unidos e Europa. A drag queen Selma Light, mestre de cerimônia desde a primeira edição florianopolitana, conta que o evento surgiu da luta contra a discriminação e veio para desmistificar a ideia de lugar gay-friendly. “Se fosse, todos iriam apoiar”. Para ela, “a Parada é um ato de resistência, a gente dá a visibilidade que as pessoas não têm durante todo o ano”.

O evento, que chama a atenção do estado inteiro, enfrenta ano após ano dificuldades para se concretizar. Em 2017, mesmo com autorização da Operação do Sistema Viário de Florianópolis (Diope) e carta de apoio da Superintendência Municipal de Turismo, a prefeitura municipal afirmou que não autorizou a interdição da avenida faltando menos de um mês para a realização da parada. A marcha, que normalmente ocorre em setembro, foi adiada para novembro. Além disso, os patrocinadores pagam o cachê de alguns artistas, mas a maioria, como Selma, se apresenta de forma voluntária.

Nos últimos anos, a parada recebeu o patrocínio de grandes marcas, como a Amstel, cerveja do grupo Heineken, em 2019, e passou a representar um “carnaval fora de época” para o setor turístico, já que ocorre em setembro. Camasão acredita que, mesmo que seja marcado o interesse econômico, a parada não perde seu caráter político. “Para muitos de nós, sair na rua já é uma transgressão”.

A “Capital do Turismo Gay” se revela a turistas e moradores com menos brilho do que a propaganda promete. Nas palavras de Lirous, “uma cidade LGBT-friendly não faz as pessoas terem medo de andar na rua”. Apesar do cenário de repressão e LGBTfobia, Margareth Hernandes ainda acredita que Florianópolis pode se tornar acolhedora para todas as pessoas. “Desde que continuem lutando e colocando pessoas engajadas dentro da Câmara dos Vereadores e dentro do Poder Executivo, pode mudar sim”.

Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico sob orientação da Profa. Dra Melina de la Barrera Ayres, em agosto de 2021.

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