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Esporte, luta e tradição: vem aí a 3ª edição da Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina

Reportagem de Rodrigo Barbosa

Dez times femininos e dezesseis masculinos. Em comum, uma luta ancestral e o sonho de se tornarem campeões daquele que é, para eles, o campeonato mais importante de todos. No dia 16 de outubro, a bola rola para a 3ª edição da Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina, unindo esporte, luta e tradição. 

A bola vai voltar a rolar! Em outubro, começa a 3ª edição da Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina. Foto: Organização da Liga

Há anos o futebol faz parte das celebrações do povo Guarani Mbya. Introduzido no Brasil pelos juruás (homens brancos), o esporte se popularizou nas aldeias de Santa Catarina ao longo dos anos. “Se não tivesse futebol, não era festa. Isso não existe. Se nós formos fazer uma festa aqui, tem que ter futebol”, comenta Elizandro Karai Antunes, morador da Terra Indígena Morro dos Cavalos, território cortado pela BR-101, na cidade de Palhoça, região metropolitana de Florianópolis. 

Via de regra, os campeonatos Guarani sempre tiveram duração de um dia. Acabada a festa, acabava também o torneio. Cada um voltava para a sua aldeia de origem e ficava no aguardo da próxima vez em que a bola iria rolar nos campos das aldeias do Estado. 

Num quarto de uma das moradias improvisadas para os estudantes indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina, o futuro do futebol Guarani Mbya começaria a mudar. O ano era 2018, e dividiam o quarto os então estudantes Irineu Xunu e Elizandro, hoje graduados pela Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC. 

“O pessoal fala muito mal das festas dos indígenas. Sempre falam que a gente só faz bebedeira, só veem o lado negativo. Nas festas dos brancos, eles fazem as mesmas coisas. Só que lá é organizado, e quando é organizado ninguém fala mal. Que nem aquela festa da cerveja lá, a Oktoberfest. A festa é organizada. Quando é organizado, a visibilidade fica mais legal, né? Então vamos fazer pra mostrar nosso futebol e mostrar que a gente também faz organizado”, relembra Elizandro. No ano seguinte, 2019, nasceria a Liga Mbya Guarani. Para juruá nenhum colocar defeito. 

A primeira edição da Liga foi anunciada em uma live no Facebook, transmitida de dentro da UFSC. Durante o sorteio dos grupos, uma caixinha de som tocava ao fundo a música da Uefa Champions League (a Liga dos Campeões da Europa, maior competição de clubes do mundo). “Pra primeira edição teve que pensar até no nome do campeonato. Aí sonhamos bem alto. Ainda sonhamos. Pensamos na Liga dos Campeões e resolvemos chamar de Liga”, relata Xunu, co-criador da Liga e morador da aldeia do Amaral, na região de Biguaçu. Ele seria interrompido pelo amigo Elizandro segundos depois: “Foi legal porque deu aquela emoção. Pra quem ia participar ficou aquela impressão de que era uma coisa importante. Fizemos o nosso marketing”. 

Mas, àquela altura, o torneio já era bem mais que uma simples jogada de marketing. Os dois amigos ficaram meses debatendo o regulamento da competição. Embora as regras dentro das quatro linhas sejam basicamente as mesmas de um torneio convencional de Futebol de 7, toda a logística da Liga é pensada para atender à realidade do povo Guarani. Os times femininos e masculinos são divididos em grupos (como na Champions League europeia), e a cada fim de mês disputam uma rodada da competição.

Todos juntos, reunidos numa mesma aldeia: “Acima de tudo, é um esporte e todo mundo está ali para se divertir, se unir. A união faz a força do povo Guarani”. Cada elenco é composto por até 18 atletas e, além dos jogadores e jogadoras, comparecem em peso também as torcidas de cada um dos times.

O amor pelo futebol (e pelo Figueirense) está estampado na pele de Elizandro, um dos criadores da Liga Mbya Guarani. Foto: Rodrigo Barbosa

A rotação de aldeias como palco dos jogos traz a primeira adaptação à Liga. Não há padronização nos tamanhos dos campos porque “cada aldeia tem o seu campinho, um é maior, o outro é menorzinho”. Atrasos e desfalques costumam ser flexibilizados por conta de dificuldades no deslocamento dos atletas. Este, inclusive, seria um problema ainda maior a partir da segunda edição da Liga. Se em 2019 os participantes se resumiram à região metropolitana da capital Florianópolis, a partir de 2020, equipes de aldeias do Norte do Estado também começaram a participar. 

Uniformes padronizados para todas as equipes também foram uma novidade que só apareceu na segunda edição. A obrigatoriedade nos equipamentos dos atletas, aliás, é outro aspecto que difere a Liga Guarani de muitos campeonatos.

“Não tem como você chegar ali e obrigar o time todo a ter caneleira, obrigar o time todo a ter meião. Porque não é todo mundo que tem condições de comprar um meião. São coisas caras, futebol é caro. Uma caneleira é R$ 40, o meião é R$ 30, uma chuteira decente é pelo menos R$ 100. Então não tem como você exigir muita coisa, a gente vai adaptando à nossa realidade. Não quer dizer que vai ficar assim para sempre, com o tempo a gente vai melhorando”, afirma Wera Jekupe, morador da Terra Indígena Pira Rupa Maciambu. 

Wera Jekupe se uniu a Xunu e Elizandro a partir de 2020 para contribuir com a organização da Liga. Hoje, a comissão organizadora é formada por sete pessoas. Jekupe, especificamente, assumiu a comissão de arbitragem. Todos os árbitros do campeonato também são indígenas Guarani. Jekupe ressalta que muitos “ainda estão aprendendo”, mas que a organização sequer cogita a hipótese de trazer um árbitro juruá porque, segundo eles, este teria ainda mais dificuldade de apitar os jogos por não compreender a cultura e o idioma Guarani. 

Xunu ainda ressalta a importância da simbologia em torno da arbitragem Guarani: “É claro que a gente tá aprendendo agora. Só que fazendo isso, a gente vai colocar uma questão de que nós indígenas somos capazes também. De organizar um campeonato aqui, de ter um juiz guarani, que tem essa capacidade”. 

A intenção é aprimorar os conhecimentos para evitar erros cruciais, que têm diminuído, mas ainda acontecem. Na última final do campeonato masculino, houve polêmicas durante o clássico entre as equipes vizinhas do Maciambu e do Morro dos Cavalos. Nos pênaltis, o Itaty FC, do Morro dos Cavalos, venceu o FC Maciambu e ficou com a taça.

O time chega à edição de 2021 procurando o bicampeonato, em um torneio que contará com VAR (árbitro de vídeo) para cobranças de pênalti. Para checar os lances, serão usadas câmeras de celular.

As comunidades do Maciambu e do Morro dos Cavalos ficam a cerca de 3 km de distância entre si e, apesar da rivalidade dentro das quatro linhas, têm uma relação muito próxima e uma série de lutas em comum. Ambas comunidades (e não apenas estas duas) sofrem constantes ameaças de invasão territorial e reivindicam, há anos, a homologação de seus territórios.

Os Guarani da região metropolitana têm sido presença constante em manifestações na capital catarinense e várias aldeias enviaram delegações a Brasília para participar das históricas mobilizações que vêm ocorrendo durante 2021, como o Levante Pela Terra, o Luta Pela Vida e a Marcha das Mulheres Indígenas.

Povo Guarani em protesto contra o Marco Temporal em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis, em 1º de setembro. Neste dia, o Marco era tema de votação no Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Rodrigo Barbosa

A Liga 2021

Se na Liga masculina haverá defesa de título, a mesma coisa não pode ser dita da competição feminina. Por questões financeiras e logísticas, o FC Maciambu será ausência em 2021. Campeãs das duas primeiras edições, as xondarias (guerreiras) do Maciambu terão que passar o cinturão adiante. Atuais vice-campeões, os xondaros da aldeia também não terão chances de revanche. O time formado por estudantes da UFSC é mais um que não participará. A suspensão das atividades presenciais, ainda em voga na universidade, afastou muitos dos atletas da região de Florianópolis (a equipe participava como convidada e conta com indígenas de outras etnias).

Ausências à parte, as chaves da Liga 2021 já foram sorteadas. Mais uma vez, durante uma live no Facebook. O evento de gala, apresentado pelo presidente da Liga, Xunu, definiu os confrontos da primeira fase. No masculino, são 16 times divididos em quatro grupos, dos quais os dois melhores se classificam para a fase de mata-mata. No feminino, os 10 times foram divididos em dois grupos, com os quatro melhores de cada passando à fase final.

 

A primeira rodada está marcada para o fim de semana dos dias 16 e 17 de outubro, pouco mais de dois meses após o término da última edição, que foi paralisada por conta da pandemia de Covid-19 e retomada meses depois. Para a primeira rodada de 2021, haverá  uma novidade: uma cerimônia de abertura com a apresentação de cada uma das equipes.

“É uma novidade. Uma cerimoniazinha vai ser novidade. Vamos soltar uns foguetes. Com uma faixa grande, ali. Soltar uns balão. Pra marcar mesmo o início. É até bom pra nossa divulgação, né? Fazer foto, pegar uma entrevista de alguém”. O evento será na Tekoa Tarumã, território Guarani localizado em Araquari, no Norte de Santa Catarina. Segundo Xunu, indígenas do Rio Grande do Sul pensam em comparecer à cerimônia pois a Liga tem feito sucesso para além das fronteiras catarinenses. 

O próximo passo para o desenvolvimento do campeonato, contam os organizadores, é conseguir patrocinadores. Transporte, alimentação e as premiações de equipes campeãs e atletas de destaque são custeados com o dinheiro da taxa de inscrição, paga pelas próprias equipes. A economia das aldeias foi especialmente afetada em 2021, por conta da crise econômica pela qual passa o Brasil e dos gastos com viagens a Brasília. 

“Se você é indígena, você tem que saber que está numa luta constante, né? Sempre vai ter movimento, é algo que nunca vai acabar. E essas coisas consomem muito, principalmente o psicológico e o espiritual da pessoa. Então para nós serve um pouco também para fugir… não é nem fugir, porque a gente nunca foge. Mas dar uma trégua, dar uma descansada. Uma das coisas que ajudam nisso é a Liga, porque todo mundo se reúne ali e esquece um pouquinho daquilo. Porque se você viver só nisso, só nisso, você vai pirar. Todo mundo é ser humano”.
Wera Jekupe
Membro da comissão organizadora

Assim como o movimento indígena, a Liga Mbya Guarani segue mais forte que nunca, e pode ser acompanhada através da página da Liga no Facebook.

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