“Protagonistas invisíveis”: mulheres são a “espinha dorsal” da pesca em Florianópolis
Embarcadas ou não, mulheres desempenham funções cruciais na atividade pesqueira brasileira, e seguem em busca de visibilidade e direitos.
Reportagem por Brenda Gasparetto e Luiza Vianna
Antes mesmo dos primeiros raios de sol aparecerem na costa de Florianópolis, o silêncio do amanhecer é quebrado pelo ronco dos motores no mar. Entre o cardume de embarcações, uma tripulação se distingue das demais. Na condução do barco “Novo Horizonte”, Josiani Wisniewski, 54 anos, enfrenta com o marido Henrique Miara, 55 anos, as águas incertas da praia da Ponta das Canas, no norte da ilha.
A rotina dos pescadores se estende até à noite, e o cansaço é companhia constante. Puxar as redes com os pescados geralmente leva até três horas, exige resistência física e emocional. Com a instabilidade das marés, Josi persiste, e enfrenta os desafios do mar aberto, provando que as águas da pesca não têm gênero.
“Por mais que a vista seja bonita, o trabalho é pesado”, afirma a guerreira, como é apelidada pelos pescadores da região. Para ela, as atividades desgastantes, atreladas aos acidentes em alto mar, são fatores determinantes na dificuldade da profissão. “O pescador passa por muitos desafios. É tempestade, maresia, frio e exposição diária ao sol. Exige força”, conta enquanto mostra a cicatriz no braço causada pelo anzol.
Há dois anos, Josi escorregou no convés do barco e lesionou a perna direita. Em três dias, um hematoma se formou da virilha até o tornozelo. “A pesca é perigosa, tem risco o tempo todo”. Apesar da recomendação médica de repouso e de afastamento da atividade, Josi não conseguiu o direito como assegurada, através do INSS, e lamenta: “Não tem o que fazer, o sustento da família depende do mar”. Com encaminhamento pelo SUS, ela espera até hoje pela cirurgia de remoção do cisto de sangue em sua perna, que inflama quando faz esforço, algo constante em sua rotina.
Enfrentando diariamente as dificuldades, Josi é apaixonada pela pesca, e afirma que se conseguir a aposentadoria, não vai deixar de ir para o mar. “É sofrido, porém amo o que faço”. Há mais de 37 anos realiza o árduo, e ao mesmo tempo, recompensante, trabalho. Josi não é exceção entre os pescadores, que consideram essa ser “uma tarefa gratificante”, a ponto da pescadora dizer que jamais vai deixar de dirigir o barco.
Até a década de 1950, pela legislação, Josi e nenhuma outra mulher poderiam ser pescadoras. A pesca artesanal foi classificada como atividade comercial em 1967, com o Código da Pesca, entretanto, o trabalho das pescadoras não foi reconhecido, pois era considerado extensão do trabalho doméstico. Neste percurso, Salete Iaczinski, pescadora há mais de 27 anos na praia de João Paulo, relata: “Quando comecei era só eu, sofria preconceito das próprias mulheres que não aceitavam uma entre os homens no mar”. O processo para que ela tirasse o registro de pesca foi longo. Conseguiu apenas há 16 anos, em 2007. Hoje, a pescadora avalia “o preconceito diminuiu, e nossa presença nas embarcações aumentou”.
Conhecida como Sal, Salete se mudou para a capital de Santa Catarina para estudar. A paranaense casou-se e passou a trabalhar num salão de beleza. Quando o marido Joarez Padilha precisou de ajuda na pesca, ela logo se prontificou. Com a necessidade de uma segunda pessoa na embarcação, ela considera que “mais vale ter alguém da família, do que pagar alguém de fora”.
Hoje, a filha de agricultores afirma viver “sossegada”, mas a rotina nem sempre foi assim. Com duas filhas pequenas em casa, ela saía junto com o marido às sete da manhã e voltava às sete da noite. “Trabalhar no mar é pesado”. No retorno, havia ainda a casa para limpar. Mesmo após o dia atarefado, lavava as roupas, conferia as tarefas da escola das crianças, fazia o jantar e preparava o almoço para o dia seguinte. A rotina de Sal não é incomum, a tripla jornada é relatada entre diversas mulheres envolvidas na produção pesqueira. Elas equilibram uma lista de responsabilidades que duram o dia todo, e mesmo sobrecarregadas, dão conta de todas as exigências.
O trabalho da mulher sendo subestimado em setores tradicionalmente masculinos não é recente. Em O Peso do Trabalho Leve, artigo acadêmico de 1987 de Maria Ignez Paulilo, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Sociologia Rural, a autora considera as histórias das mulheres na agricultura e na pesca como semelhantes. Categorizadas nesses espaços como ajudantes, Maria Ignez avalia que, enquanto o homem é visto como “provedor da família”, a mulher ocupa um papel secundário. Contribuindo para a afirmação de que os homens fazem o trabalho pesado, sendo que, na maioria das vezes, são elas que o realizam.
A presença feminina na pesca, em Florianópolis, é significativamente menor em comparação com o restante do Brasil. A Secretaria Municipal da Pesca registrou 250 mulheres como pescadoras, o que corresponde a apenas 19% do total. Em contraste, a Organização das Nações Unidas (ONU) para a Alimentação e a Agricultura (FAO) indica que no Brasil, das quase um milhão de pescadores artesanais – autônomos que pescam em menor escala – 45% são mulheres. Nas etapas pós-captura, classificadas como atividades secundárias, elas são a maioria, com 90% das atribuições. Encarregadas por esses processos, são, muitas vezes, esposas, filhas ou irmãs de pescadores.
A pesquisadora e antropóloga Rose Mary Gerber, autora do livro Mulheres e o Mar, publicado em 2015, destaca que a participação desde a infância no meio, naturaliza o processo de auxiliar na casa e beneficiar o pescado como obrigação das mulheres dentro da estrutura familiar. Elas são protagonistas invisíveis. Enquanto os homens vão ao mar em busca de sustento, as mulheres são as mãos por trás de toda a cadeia produtiva. Atuam no preparo das redes, na descarga, na filetagem e no gerenciamento do produto final. Uma atividade depende da outra para que o pescado chegue à mesa do consumidor.
A pesca artesanal é uma das principais tradições açorianas mantidas pelas famílias que tiram o sustento do mar, e movimentam a economia estadual. Só em Florianópolis, a prática resultou em uma produção de cerca de 10 mil toneladas (9.920,17 T) de pescado em 2022. Mesmo com números expressivos, a pesca não tinha um Ministério até 2008. A representação era feita através da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Em 2009, foi criado o Ministério da Pesca e Aquicultura, que durou seis anos. Em 2016, passou a ser incorporado novamente como Secretaria, mas dessa vez, no Ministério da Agricultura. Depois, a secretaria foi transferida para a Presidência.
Neste ano, o Ministério da Pesca e Aquicultura foi reativado. “A gente ficou jogado sem ter nada que regulamentasse. A pesca realmente não tem uma representação federal consistente”, afirma Amanda Nunes, titular da Colônia de Pescadores Z-11, entidade que, por lei, defende os pescadores artesanais em Florianópolis. Quando se casou com um pescador, o ex-marido, foi introduzida ao meio e assumiu todas as responsabilidades dentro da pré e pós captura.
“A pesca não tem políticas públicas diretas. Quando tem, são vinculadas à agricultura”, aponta Amanda. O programa Mulheres em Ação Flor-e-ser, oferecido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), capacita jovens e mulheres rurais e da pesca no estado. Em cidades como Joinville e Itajaí, o treinamento é realizado separadamente, mas em Florianópolis é feito em conjunto. Amanda enfatiza que “a agricultura não é tão presente na ilha. Em todas as ações, o foco deveria ser muito maior na pesca”. Salete participou da primeira turma do curso, junto com outras 21 mulheres da região da Grande Florianópolis, apenas cinco eram pescadoras. Mesmo que vinculadas, ações pensadas para os pescadores são necessárias. “O curso é bem interessante, a gente aprende muita coisa. São experiências novas, compartilhamos nossas vivências e nos unimos”, Sal argumenta.
Muitas mulheres dedicam suas vidas à pesca e não se dão conta do valor e da importância que têm dentro desses espaços. Sustentam suas famílias e tradições há gerações. Não recebem, nem mesmo se atribuem, o devido mérito dentro do universo da pesca catarinense. “Esse apoio direto é essencial para a atividade. Sem as mulheres, não acontece a pesca. E mesmo assim, a maioria não se reconhece”, ressalta Amanda.
“A própria legislação brasileira é confusa e desatualizada”, analisa a titular da Z-11. A Lei 11.959/2009 da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e Pesca, difere a pesca da atividade pesqueira. A primeira, é estabelecida como toda operação que tende a capturar recursos pesqueiros. Enquanto a atividade pesqueira é compreendida como um termo mais abrangente, que define todos os processos da pesca, desde a captura à comercialização. Considera até mesmo trabalhos como a confecção de petrechos de pesca e reparos em embarcações de pequeno porte. Salete conclui: “Uma lei contradiz a outra”.
O decreto de lei nº 8.967 de 2017, concede o direito ao Registro Geral das Atividades Pesqueiras (RGP) apenas para quem tira o peixe da água. Com isso, deixa de oferecer proteção legal às atividades de apoio à pesca, justamente o setor em que as mulheres têm presença mais significativa. Muitas, assim como Salete, receberam seu registro após anos de atuação. Com limitação dos próprios direitos, elas enfrentam desafios na regularização para se provarem pescadoras. Sal precisou de relatos, como os de pescadores registrados, para ser reconhecida como profissional em meio aos processos burocráticos. A pesquisadora Rose Mary Gerber sintetiza: “Como é possível que ainda continuem invisíveis aos olhos de órgãos públicos, estando em praticamente todos os lugares em que a pesca se dá?”.
Outra dificuldade para obter reconhecimento enquanto pescadoras é o acesso à informação. A ausência de clareza e segurança para as interessadas em saber sobre seus direitos, dá margem a interpretações equivocadas até mesmo para quem possui a licença. Amanda explica que “vem de um jeito tão complicado que é preciso buscar consultoria jurídica para entender. Se a gente não entende nada, como é que vai melhorar a lei?”. Dessa forma, ocorre a violação de um direito fundamental, que é dever do Estado: o acesso à informação.
Apoiadas pela ONG Oceana, pescadoras das regiões costeiras do Brasil se uniram e promoveram oficinas em diferentes cidades, como Florianópolis, para debater e defender a melhoria e atualização das leis da pesca. Elas levantaram 20 demandas comuns, como a simplificação do registro, oferta de cuidados de saúde especializados, e a ampliação do seguro defeso – benefício pago ao pescador artesanal durante o período em que a atividade é proibida. Ainda, exigem a garantia de direitos sem a necessidade de documentos dos maridos ou irmãos.
A presença feminina nesse cenário é mais significativa do que se costuma reconhecer. Amanda, Josi e Sal fazem parte de um contingente de mulheres que permanece praticamente invisível aos órgãos públicos. Elas são a espinha dorsal da atividade pesqueira. Tecem, assim como as redes, uma longa narrativa, reivindicando seus lugares como protagonistas em uma atividade que, por muito tempo, foi considerada exclusivamente masculina. Moldam suas vidas de acordo com o que o mar dá e tira. São elas que conduzem os rumos das comunidades. Agora, também no leme dos barcos, elas navegam em águas incertas, e traçam seus destinos no mar e na sociedade.
Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico III, ministrada pela Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres e pela Profa. Dra. Janaíne Kronbauer dos Santos, no semestre 2023.2.