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Reportagens

Flexibilização do distanciamento social contribuiu para alta nos casos de covid-19 em SC

Estudante de Medicina da UFSC realizou pesquisa que relaciona os decretos de abertura em Santa Catarina com o agravamento da pandemia no Estado

Reportagem de Fernanda Biasoli

Santa Catarina ultrapassou a marca de 1 milhão de casos de covid-19 na primeira quinzena deste mês de junho. O total de mortos pela pandemia já passa de 16 mil no Estado, que ocupa o 2º lugar no ranking nacional em registros da doença a cada 100 mil habitantes, segundo dados do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (Necat) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Também segundo o Necat, SC é o 6º Estado com o maior número de casos da doença e o 10º Estado com maior número de óbitos no Brasil.

Os números da doença crescem desde o primeiro registro em 2020 e uma das causas dessa alta está na flexibilização e na retomada de serviços liberadas pelo governo. Esta conclusão faz parte do trabalho “Evolução da Covid-19 no Sul do Brasil: Decretos e Indicadores no Estado de Santa Catarina” produzido pela acadêmica do curso de Medicina da UFSC Helena Hughes, sob orientação da professora Dra. Ana Luiza Curi Hallal.

O período analisado compreende a primeira e a trigésima quinta semana epidemiológica de 2020. Helena cruzou os dados epidemiológicos do Estado e os comparou com decretos assinados pelo governo durante esse tempo. Entre as descobertas, alguns pontos chamam a atenção: 

  • entre 11 de abril e 1 de junho de 2020, três decretos de flexibilização foram emitidos concomitantemente a um crescimento de 1.804,8% no número absoluto de novos casos em SC;
  • apenas três meses após o início da pandemia no Estado, em junho de 2020, praticamente todos os serviços já tinham sido retomados; 
  • no período analisado, percebe-se uma curva acentuada de mortes por covid-19, ao mesmo tempo em que atividades como ensino presencial, comércio não essencial e cultos estavam liberadas.

Catarinense, natural de Barra Velha, Helena Hughes iniciou sua trajetória na universidade no curso de Direito na UFSC. Após três anos, percebeu que sua verdadeira vontade era estudar Medicina e assim o fez. Ingressou em 2018 no curso da área da Saúde, no qual segue firme até hoje. O Cotidiano conversou com Helena sobre sua pesquisa, os resultados e os impactos do trabalho para Santa Catarina e para o Brasil.  

Helena, como foi o processo de definição do tema da pesquisa?

Eu queria fazer uma pesquisa que falasse sobre covid e eu queria fazer algo que trouxesse algum impacto, porque eu acredito que não adianta nada a pesquisa ficar na gaveta. Eu sempre tentei trabalhar com pesquisas que tivessem algum impacto na sociedade, entende? Sugeri que poderíamos tentar um ofício e então a Ana falou para aproveitarmos o meu curso de Direito. Para mim seria ótimo, porque foram três anos da minha vida que me agregaram muito e foi daí que surgiu a ideia! Resolvemos que iríamos ver sobre a legislação de Santa Catarina e como isso se comportou com a epidemiologia do covid. A partir disso, iniciei minhas buscas e acabei definindo que seria melhor trabalharmos somente com decretos. Chegamos a pegar toda a legislação, leis federais e estaduais, mas como a gente tinha que ter a mesma legislação para todo o Estado, os únicos que poderíamos utilizar eram os decretos estaduais e foi daí que surgiu. Foi muito conversado, foram muitas sugestões. O trabalho todo foi muito coletivo. 


Dados coletados na pesquisa
Foto: Reprodução do estudo “Evolução da Covid-19 no Sul do Brasil: Decretos e Indicadores no Estado de Santa Catarina”

Como você chegou no resultado de relacionar a falta de isolamento com o crescimento de casos?

Em primeiro lugar, vou explicar o porquê de escolhermos o distanciamento social: porque existem vários estudos e vários outros vírus que também se comportam de maneira semelhante ao coronavírus. Por exemplo, com a H1N1 não chegou a ser decretada uma pandemia, mas na Ásia foi muito grande. Existem ainda a gripe aviária e a gripe suína.  Para todos esses vírus  existem estudos que comprovam que o comportamento do distanciamento social funciona quando você tem um vírus assim, que se transmite pelo ar por gotículas. Então a gente tinha muitos estudos para embasar o porquê que a gente utilizaria e estudaria o distanciamento social. A partir daí, resolvemos que iríamos ver como se comportaram os dados epidemiológicos que a gente tinha no Estado de Santa Catarina com os decretos que impunham o distanciamento social ou que liberavam. 

Então pegamos todos os decretos e fomos analisar cada categoria. Nós criamos as categorias porque não existiam (Ensino Presencial, Comércio de Bebidas e Alimentos não Essenciais, Transporte de Pessoas, Rede Hoteleira, Comércio de Produtos, Comércio de Alimentos Essenciais, Permanência em Praças e Locais Públicos, Cultos Religiosos e Aglomeração de Pessoas). Tudo que tangenciava o distanciamento social a gente tentou abarcar porque queríamos falar como se comportava com tudo. Quando você olha no gráfico você vai ver que os primeiros decretos foram antes de ter algum óbito e você vê que isso se mantém. Para mim, o resultado mais chocante foi a gente esperar tanto tempo pra agir. Quando você vê os números crescendo, a gente esperou demais pra fechar de novo e mesmo quando fechamos, fechamos poucas categorias. No final, somente duas categorias foram fechadas e ainda assim tem uma reação enorme. A reação de novos casos ao dia, reage na hora! Assim que você coloca o decreto, reage na hora porque a transmissão para. Agora, nas pessoas que já tinham pegado Covid você vê como demora mais para a mortalidade cair. Quando a gente relacionou esses dados, a gente esperava que houvesse essa relação de aumento, mas não esperávamos o resultado que tivemos. É revoltante, sinceramente. E foi muito difícil escrever isso de uma forma fria e científica porque é uma coisa revoltante.


Cruzamento entre os números de óbitos e os decretos de distanciamento social em Santa Catarina
Foto: Reprodução do estudo “Evolução da Covid-19 no Sul do Brasil: Decretos e Indicadores no Estado de Santa Catarina”

Qual a relevância deste estudo para Santa Catarina?

Eu acho que sua relevância não é só para Santa Catarina, porque se a gente pensa em Saúde Pública a gente pensa em diversas áreas de estudo: Direito, Administração Pública, Medicina, Enfermagem, Odontologia. Têm tantas áreas que compõem a Saúde Pública que não conseguem ser separadas, mas hoje temos um problema sério. Falando em Direito e Medicina, por exemplo, a gente tem o juridiquês que é difícil de ser traduzido porque o Direito é escrito de uma forma que somente as pessoas da área entendem – e existe literatura sobre isso, existe muita discussão sobre o porquê que a gente faz o Direito tão difícil de ser entendido se deveria ser acessível para toda a população – e com a Medicina é a mesma coisa. Tanto em Medicina quanto em Direito, você coloca palavras em latim que têm que ser traduzidas, então é trabalho do advogado traduzir, é trabalho do médico traduzir. Essas são duas áreas imprescindíveis para a Saúde Pública, mas que são muito difíceis de conversarem, porque o médico não entende o Direito e o jurista não entende o médico. Então um dos trabalhos mais difíceis que a gente teve foi realmente traduzir os decretos. Por exemplo, eles colocam alíneas, parágrafos, colocam uma seção B sem existir uma seção A. Foi muito difícil. Então, eu acho que o melhor que a gente pode deixar para a sociedade com essa publicação, é que a gente consiga conversar. O epidemiologista precisa conversar com o administrador público e com o legislador e da forma como fizemos a gente tenta deixar isso claro. Nós nos preocupamos muito na nossa escrita em tentar deixar as coisas de uma forma fácil de ler, porque justamente o que a gente queria era traduzir todos esses dados, porque nós temos dados! 

A relevância, então, é realmente deixar o conhecimento mais acessível, tanto para juristas e administradores públicos quanto para a população geral que tem o direito de saber. Existem pesquisas dizendo que funciona mais se você tem uma autoridade falando que você tem que ficar em casa, que dessa forma é mais eficaz do que você ter que fazer sozinho. Mas ao mesmo tempo, as pessoas têm que ter acesso ao porquê que estão te pedindo para ficar em casa, porque estão te pedindo para usar máscara, entende? Esses dados não são sempre acessíveis e um dos cuidados que a gente teve foi mandar o artigo para uma revista que tivesse acesso aberto, para que as pessoas pudessem acessar. A nossa diferença é a acessibilidade e conectar o que o administrador público está fazendo com a epidemiologia. Conectar áreas tão importantes para a Saúde Pública e que não se conversam.

Vocês chegaram a alguma estimativa de quantas mortes poderiam ter sido evitadas com a realização correta do isolamento social?

Não existe estimativa, não tem como fazer esse cálculo e obviamente não podemos falar de opinião, temos que falar de ciência e não temos como chegar nesse número. O que a gente consegue ver nos gráficos e dados é que os óbitos somente começaram depois das liberações e isso é algo que os gráficos trazem, não sou eu Helena que estou dizendo. Isso não é opinião, isso é leitura de gráficos e dados. A gente vê nitidamente no gráfico quando houve e quando não houve o aumento. Ao ler o gráfico, é nítido que a gente tem um decréscimo dos óbitos que acompanha o distanciamento social e um aumento do número de casos e óbitos quando temos a liberação, um decreto que autoriza que as pessoas parem de fazer isolamento social.

Você chegou a alguma conclusão de qual seria o tipo de restrição ideal?

A gente não teve a intenção de chegar nessa conclusão. A intenção do trabalho foi realmente observacional, de analisar como foi o comportamento. E claro, é muito difícil estar no papel do gestor público, não é um trabalho fácil. Mas o que os números nos trazem: a gente demorou muito para reagir. A gente não fez um trabalho condizente com o que a gente tinha de números e indicadores epidemiológicos, a gente não observou esses dados. O que eu espero que a gente consiga, a partir desse trabalho, e isso é uma esperança minha: é que os gestores públicos reflitam e que a gente preste mais atenção no que os dados estão nos falando. Que a gente pense mais em como os dados reagem do que na política por si só, porque essa é uma questão de Saúde Pública, de salvar vidas! Isso é uma das coisas que eu espero que as pessoas consigam perceber ao ler o trabalho: que a Saúde Pública também depende do gestor público, não espere que só epidemiologistas, médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas cuidem da saúde. Depende também do gestor público, do administrador público, do legislador, do jurista e depende de cada pessoa. Existe a responsabilidade coletiva e a individual. 

O que podemos falar a partir da pesquisa é: isolamento social funciona. E talvez a gente possa aplicar isso para outras situações, porque isso vai acontecer de novo. As pandemias vão ficar cada vez mais comuns e dessa vez o Brasil estava despreparado. A  China, ao contrário de nós, estava preparada porque já tinha protocolos para isso. Nós aqui não temos. Então o que esperamos é que a gente consiga desenvolver protocolos em que não fique somente no gestor público a decisão. Um protocolo emergencial para doenças altamente transmissíveis, doenças respiratórias. A gente tem que desenvolver um protocolo que possamos seguir com base em evidências e em dados, porque isso tira essa discussão de política. Porque quando a gente discute saúde e isso vira política, as pessoas morrem. Vamos passar muito tempo debatendo quem está certo, qual partido propôs e isso não interessa, o que interessa é que as pessoas fiquem vivas e isso se perde quando precisamos tomar uma decisão sozinhos. O que a gente espera, então, é que esse trabalho venha a fomentar essa discussão de desenvolver um protocolo. Poxa, a gente teve que criar categorias! Não existe nenhum trabalho publicado no Brasil com categorias. Esperamos que esse seja o pontapé para começarmos a discutir um trabalho nacional. Precisamos aprender a utilizar a ciência e a evidência para seguir qualquer caminho em qualquer profissão. 

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