Comunidade da Serrinha em Florianópolis

Mãe busca atendimento para o filho deficiente auditivo e diagnosticado com depressão há cinco meses em Florianópolis

Criança de 13 anos sofre com descaso do Estado na saúde e na educação; caso da família da Serrinha explicita a deficiência das políticas públicas para famílias vulnerabilizadas em Florianópolis

Reportagem por Rodrigo Barbosa

“Na casa onde a Bia mora só tem uma janela. Essa criança fica num quarto onde não tem janela”, relata uma amiga de Beatriz Alves da Silveira, 36. A criança é V. A., de 13 anos, filho de Bia. Ambos fazem hoje parte de um grupo composto por mais de 27 milhões de brasileiros. Com renda mensal média de R$ 200 para cada, encontram-se abaixo da linha da pobreza. Mãe e filho moram na Serrinha, comunidade localizada na região da UFSC, em Florianópolis – a Ilha da Magia, capital com maior renda per capita do país. Mãe solteira e desempregada há pelo menos quatro anos, Beatriz não tem tido condições financeiras de bancar todo o apoio necessário a V., que é deficiente auditivo e vem sofrendo com a depressão. Quando recorre ao Estado, costuma não ter retorno: V. ficou cinco meses sem atendimento psicológico, e sua história explicita a deficiência das políticas públicas para famílias vulnerabilizadas.

Beatriz e seu filho precisam de apoio.

Foi no CAPSi (Centro de Assistência Psicossocial para Crianças e Adolescentes, localizado na Agronômica) onde V. teve sua saúde mental avaliada pela última vez. Foram quatro visitas ao centro vinculado à prefeitura: uma por mês, de setembro a dezembro de 2020, sendo que a primeira aconteceu dias após uma tentativa de suicídio. Duas semanas antes do Natal, V. foi liberado. O relatório de 10 de dezembro de 2020 indicava remissão dos sintomas depressivos da criança, e a família foi aconselhada a dar continuidade no acompanhamento em nível ambulatorial. Neste caso, o Centro de Saúde da Trindade, que atende os moradores da Serrinha, já que não existem unidades básicas de saúde dentro da comunidade.

Mas o acompanhamento psicológico de V. se estagnou neste momento. Nas tentativas de contato com o posto de saúde, Beatriz ouviu que o local não oferecia serviços de psicologia ou psiquiatria. Sem atendimento, Beatriz tentou retornar ao CAPSi, que igualmente não atendeu mais o menino. “Boa tarde! Os atendimentos serão no centro de saúde mais próximo da sua residência”, diz a última mensagem recebida pela mãe no WhatsApp. 

Segundo a mãe, o CAPSi alega não ter profissionais aptos a darem conta da deficiência auditiva da criança. Embora isto não conste literalmente no documento de dezembro de 2020, de fato existem menções a dificuldades na comunicação. V. não é alfabetizado em libras ou português, o que também dificulta seu desempenho escolar.

O período sem acompanhamento coincidiu com uma recente piora no quadro de saúde mental de V., afirma Beatriz. Ela relata que hoje o filho só sai do quarto para ir ao banheiro, demonstrando desinteresse por atividades escolares e oficinas da Associação de Surdos da Grande Florianópolis. A rotina de V. A. tem se passado dentro de um cômodo sem janela.

“É um caso bem grave. Uma pessoa com deficiência não pode ter a sua saúde negada. Pela condição da saúde mental dele, o quadro de depressão com histórico de tentativa de suicídio, precisaria estar sendo ofertado urgentemente um acolhimento e um acompanhamento em saúde mental que desse conta de atender a particularidade dele”, afirma a psicóloga Gabriela Amorim. Ela é mestre na área de Psicologia Social e Cultura pela UFSC, e atualmente servidora do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) em Forquilhinha, na cidade de São José.

A fala da psicóloga encontra amparo na Política Nacional de Saúde Mental, de 2001, que determina como direito da pessoa portadora de transtorno mental, dentre outras coisas, “ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades”. A lei ainda menciona que o processo ocorra com participação de comunidade e família. 

Gabriela concorda e atenta à necessidade de acompanhamento também para Beatriz, como uma possível inserção em grupos de mulheres no CRAS ou encaminhamento jurídico para que pudesse obter auxílios diversos devido à situação socioeconômica em que se encontra. Além dos CRAS e da Política Nacional de Saúde Mental, ela ainda mencionou a Rede Substitutiva e a PNAS (Política Nacional de Assistência Social) como mecanismos do Estado que poderiam (ou deveriam) fornecer amparo a famílias como a de Beatriz. 

A preocupação mais imediata da mãe, entretanto, é um pouco menos abrangente que o que a legislação tem a oferecê-la. Os primeiros passos para ela são a reavaliação da saúde mental do filho, cinco meses após o último atendimento, e dos remédios que V. toma. Seu diagnóstico no CAPSi aponta para outros problemas de saúde que também demandariam acompanhamento periódico: hipertensão e diabetes mellitus tipo 2, ambos fatores de risco para a covid-19. Além disso, menciona obesidade agravada pela “alimentação inadequada dificultada por vulnerabilidade social”. 

Os impactos da vulnerabilidade social

Beatriz está desempregada há pelo menos quatro anos. A falta de escolaridade somada à crise econômica e a necessidade de cuidar do filho fazem com que Beatriz dependa de bicos como faxineira e babá para os sustentar nos últimos anos. Durante a pandemia, a vizinhança também foi economicamente impactada, e o trabalho diminuiu. 

Os R$ 400 que recebem por mês são insuficientes para garantir a segurança alimentar da família. Com o aluguel atrasado há quatro meses e recorrentes gastos com medicamentos, as cestas básicas doadas por amigos e algumas poucas instituições têm sido fundamentais para a alimentação da família. Da prefeitura de Florianópolis, até o momento, receberam duas cestas através da Escola José Jacinto Cardoso, da qual V. A. é aluno do quinto ano do Ensino Fundamental.

O auxílio emergencial, fornecido pelo governo federal no ano passado a pessoas em situação de vulnerabilidade, não contemplou a família. Isto porque os R$ 400 que recebem mensalmente também têm como origem o governo federal, e não foi possível acumular ambos. O valor do auxílio emergencial em 2020 para famílias chefiadas por mulheres solteiras era de R$ 1.200. Seria o caso de Beatriz.

Beatriz Alves da Silveira (36), mãe de V. A. (Foto: arquivo pessoal)

“A minha família é do Rio Grande do Sul, São José do Ouro. Só estou eu em Florianópolis”.

– Tem muito tempo que estão aqui?

“Eu casei e vim pra cá. Daí separei e fiquei aqui sozinha com o guri”.

– E o pai dele?

“Não assumiu. O guri nasceu e vimos que tinha esses problemas de saúde, aí ele simplesmente sumiu. Ele não registrou o filho e a gente não sabe mais onde ele está”.

A mãe lamenta não ter tido acesso ao benefício, que seria de extrema importância para a economia e a saúde da família. De acordo com ela, os R$ 400 são pagos pelo BPC (Benefício de Prestação Continuada), auxílio fornecido a pessoas em situação de vulnerabilidade com deficiência. Por lei, V. teria direito a receber um salário mínimo. A defasagem nos valores, de acordo com a mãe, se dá pela não aprovação de documentos por parte do governo. Beatriz não tem atualmente nenhum apoio jurídico para reivindicar legalmente o valor integral. Ela perdeu contato com o advogado que acompanhava os trâmites quando começou a faltar dinheiro para pagar seus honorários.

Em relação às necessidades básicas, estas têm sido de ainda mais difícil acesso desde março do ano passado, com a eclosão da pandemia e uma série de políticas que falharam em garantir a saúde e a economia dos brasileiros, sobretudo na periferia. O quarto sem janelas se transformou no mundo inteiro e as interações sociais diminuíram, bem como as possibilidades de lazer e a renda da comunidade como um todo. O chip que dá a V. acesso à internet para assistir às aulas só chegou em 2021, quando seu quadro depressivo já estava agravado. Naturalmente, a família tem dificuldades de acesso a tratamento psicológico remoto.

Para Gabriela Amorim, a vulnerabilidade socioeconômica pode ter influência na saúde mental de mãe e filho, para além da simples falta de estrutura física de atendimento médico: “Quando as necessidades básicas (moradia, saúde, alimentação, lazer, cultura, acesso à educação) são precarizadas, tu te constitui sobre este laço precarizado. Então isso faz parte da sua constituição. Em contrapartida, se tu desenvolves um sofrimento psíquico mais agravado (que a gente chama numa linguagem mais biomédica de transtorno) esse transtorno também é afetado por esse espaço social onde tu tá inserido”. Ela ainda ressalta que a situação de vulnerabilidade tende a criar o que define como “desamparo discursivo”: mãe e filho não encontram lugares de escuta. O sofrimento de ambos é silenciado.

Com instrumentos como os CRAS, a Política Nacional de Saúde Mental e o PNAS previstos na estrutura de atendimento público, fica evidente que o real problema se encontra no sistema que operacionaliza estes instrumentos. “É um sistema de falhas, montado para falhar. Montado para dar errado e para que a gente sempre possa culpabilizar alguém: ou o usuário que não compareceu ao atendimento no dia que tinha que comparecer, o trabalhador que não ofereceu a escuta ideal que tinha que ser ofertada. A gente acaba escamoteando a raiz do problema, que é o próprio sistema. É a própria ordem que estabelece tanto as formas com que a gente se subjetiva e com que a gente sofre, que produz sofrimento e vulnerabilidade. Produz vínculos comunitários, familiares e territoriais escassos, precários. E produz uma péssima condição de dar conta disso, que é a péssima organização das políticas públicas. É uma série de problemas, não são de fácil solução”, afirma Gabriela. 

A psicóloga ainda aponta para a precarização das condições dos profissionais das políticas públicas (de uma maneira geral, não apenas no contexto de Florianópolis), com sobrecarga de horários, falta de reajustes salariais e a não realização de concursos públicos. Ainda segundo ela, é comum que poucos profissionais fiquem responsáveis pelo atendimento a grandes territórios e populações. É o caso do CAPSi, que atende a toda a cidade de Florianópolis em apenas uma unidade, no bairro Agronômica. 

Agora vai?

“Até que enfim, né? Porque tava difícil!” Na última sexta (28), após uma série de tentativas de obter uma recusa por escrito do Centro de Saúde da Trindade, Beatriz enfim recebeu retorno da unidade. No lugar da recusa, uma consulta foi marcada para a manhã de segunda (31), e quase não aconteceu porque Beatriz estava com suspeita de covid-19. Felizmente, o exame deu negativo. 

V. foi atendido por uma médica da família e saiu de lá com uma bateria de exames por fazer. Também foi prometido à mãe uma próxima consulta, desta vez com um neurologista, embora ainda não haja data marcada. Não há, por enquanto, indicativo de acompanhamento por parte de um(a) psicólogo(a) ou psiquiatra. A pressão alta foi um dos principais motivos de preocupação durante a consulta e demandou a compra de remédios e vitaminas, pagos pela própria Beatriz – R$ 150 apenas uma das medicações. 

A consulta no fim de maio traz um alento à família, mas os próximos capítulos do atendimento de V. A. ainda são incertos. O valor dos medicamentos comprados este mês é parte considerável da renda da família, portanto estamos disponibilizando os dados bancários de Beatriz caso nosso leitor possa e queira contribuir. Também nos disponibilizamos a intermediar o contato em caso de ajuda técnica, como auxílio jurídico e pedagógico, ou doações. Entre em contato conosco pelas nossas redes sociais. Seguiremos acompanhando o atendimento fornecido à família.

Caixa Econômica Federal

Agência 0408

Conta: 00052890-0 (CONTA POUPANÇA, OPERAÇÃO 013)

Beatriz Alves da Silveira