A nova cara da Praça XV
Reportagem e fotografia por Rodrigo Barbosa
Cartão-postal de Florianópolis, a Praça XV de Novembro abriga ícones da cidade, como a famosa figueira, a Catedral Metropolitana e o Museu Histórico do Palácio Cruz e Sousa. Beleza à parte, a paisagem acaba se tornando rotineira para os habitantes da capital catarinense. Junho, porém, foi um mês atípico, pois foi o mês de produção do mais novo desses ícones: um mural de 650 metros quadrados do escritor catarinense Cruz e Sousa, estampado ao lado do museu que o leva o nome do poeta. No meio do frenético vaievém da praça, era impossível não parar para contemplar a grandiosidade da pintura que ali tomava forma.
A obra
Os camaleões espalhados por Florianópolis fizeram de Rodrigo Rizo a figura mais proeminente do grafitti da capital. São mais de cem murais pela cidade com a marca registrada do artista. Rizo afirma que sempre quis pintar um mural da magnitude do que foi concluído na última semana na Praça XV, mas teria que mudar o estilo: o camaleão teria que dar lugar a alguma figura que fosse representativa não só para ele e para as pessoas próximas, mas para uma porção significativa da população. A solução encontrada foi realizar uma série de murais que retratassem ícones culturais da cidade. “A gente traz uma possibilidade de a arte urbana se conectar com a cultura local, com coisas que são mais profundas”, afirma.
Um primeiro mural, feito pelo artista Thiago Valdi, teve como homenageado o antropólogo catarinense Franklin Cascaes, no Edifício Atlas. A ideia para o segundo nasceu ainda no começo de 2017, quando Rizo percebeu que havia um mural em branco ao lado do Museu Cruz e Sousa. Ele teve seu projeto aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Florianópolis e contou com o patrocínio da Floripa Airport para colocá-lo em prática, mais de dois anos após sua concepção. Para fazer o mural, o artista contou com o auxílio de um elevador externo que o alçava a uma altura de 30 metros.
Ambas as obras são parte do Street Art Tour, projeto do próprio Rizo que tem como objetivo movimentar a cena da arte urbana de Florianópolis. A primeira iniciativa do projeto foi a criação de um aplicativo que realiza um tour pelas obras de arte das ruas da cidade. O aplicativo contém informações sobre as obras, como o autor, data de realização e material utilizado. Os murais são parte da segunda etapa do Street Art Tour, que, além de outras obras, ainda pretende realizar oficinas, exposições e debates.
Rizo diz que a street art ainda sofre preconceito da parte mais conservadora da população. Por outro lado, ações como a dele e de outros artistas da capital têm contribuído para melhorar a visão desse tipo de arte frente à opinião pública. “Era uma parede branca que só refletia sol, aumentava o calor do local, e tudo mais. E agora abriga uma obra de arte, que vai ficar por muito tempo e que traz um novo olhar”, afirma.
Representatividade negra
Além de romper com o preconceito ainda existente em relação à arte urbana, outro fator influenciou na produção da obra. O homenageado, Cruz e Sousa, foi um poeta negro que viveu no século XIX e é considerado um dos pais do movimento simbolista brasileiro. Filho de escravos alforriados, não teve o devido reconhecimento em vida, morrendo sem alcançar estabilidade financeira por sua obra. Ainda hoje, é desconhecido por muitos.
“Pela falta do debate e da conscientização, a gente praticamente ainda vive dentro de um regime escravocrata disfarçado. O negro não é tratado com igualdade, deixaram esse ideal para trás”, afirma Rizo. O artista deixa claro que considera utopia almejar que as pessoas deixem o preconceito de lado apenas por conta de sua obra, mas acha importante ajudar na construção do debate em torno do racismo.
Rizo diz que optou por representar o poeta de maneira altiva, para exaltar a postura de Cruz e Sousa diante da elite majoritariamente branca de sua época. Acima de sua cabeça, voa uma revoada de cisnes que, segundo o artista, “é uma referência de que com o pensamento você pode se libertar, porque as ideias nunca ficam presas, nunca são escravizadas” – vale lembrar que Cruz e Sousa viveu em um período onde a escravidão ainda era permitida. Ainda há um cisne maior, ao lado da imagem do escritor, para ilustrar a alcunha pela qual ele ficou conhecido: “Cisne Negro”.
As cores do mural também foram escolhidas pensando na história do autor. Cruz e Sousa foi criticado por muitos por supostamente não combater o regime escravocrata. Um dos argumentos era o de que ele não fazia críticas diretas em seus poemas, que apresentavam uma obsessão pela cor branca. Posteriormente, foram descobertos diversos jornais nos quais Cruz e Sousa fazia duras críticas à escravidão, e o uso da cor branca seria justamente uma forma de endossar isso, de uma maneira poética. Rizo se apoderou dessa ideia e resolveu fazer o mural usando apenas tonalidades de cinza, o branco e o preto.
A decisão de limitar o uso das cores, porém, foi um desafio a mais para o artista dos camaleões multicoloridos. “Eu tenho como característica de trabalho explorar bastante o uso da cor. É um desafio porque a gente tem que ter um equilíbrio na composição. Mas foi feito todo um estudo, antes de ir para a parede as cores já estão bem definidas.”
O desenho do mural levou dois meses para ser elaborado e a pintura ocorreu durante todo o mês de junho, sendo finalizada na última semana. A inauguração oficial do mural está marcada para o dia 10 de julho. Apenas uma formalidade, para uma obra de arte que com certeza já mudou a cara da Praça XV.