Reportagens

A luta camponesa feminina na universidade

Do meio rural ao universitário, mulheres tomam para si o desafio de pensar e agir sobre as relações que se estabelecem entre esses ambientes

Reportagem por Erika Artmann

Para quem cresce no campo, estudar na cidade grande pode ser a realização de um sonho. Estar na Universidade Pública, ver a academia de perto, conviver com a liberdade que os grandes centros oferecem não é para todos, além disso quem chega precisa lidar com as estranhezas do ambiente urbano. Muitos dos que migram do campo são mulheres e, em casos como o de Fabiana Cordeiro dos Santos de Souza, Patrícia Klock e Kelli Bus, encontram dentro da Capital os espaços que permitem refletir sobre o meio rural e as relações que se estabelecem dentro e fora do lugar de onde vieram.

A menor parte dos brasileiros está no campo, que conta com 15,8% da população total, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) de 2015. Ainda assim, é uma minoria diversa. No interior há modos de cultivo, sustento e formações sociais variadas. Além dos latifúndios, existem os pequenos agricultores, indígenas, negros, descendentes de europeus, artesãos, pescadores e tantos outros.

Além de serem do campo, Fabiana, Patricia e Kelli têm mais uma coisa em comum: todas participam do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Conforme exposto na apresentação do site oficial, as participantes do coletivo reafirmam na trajetória do grupo “a luta das mulheres pela igualdade de direitos e pelo fim de qualquer forma de violência, opressão e exploração praticada contra a mulher e a classe trabalhadora”. As pessoas que compõem o movimento se identificam com a produção de alimentos saudáveis, a construção de um projeto de agricultura ecológica e com a luta pela libertação da mulher.

A organização de mulheres camponesas nasceu e se fortaleceu dentro das igrejas católicas, em meados dos anos 1980. Com o tempo, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) espalhou-se e chegou às universidades, tornando-se um espaço de encontro e reconhecimento para estudantes que vêm do ambiente rural. Patrícia nasceu em Ibirama, no interior de Santa Catarina, e se reconhece como camponesa. O processo para entender as suas idas e vindas entre o campo e a cidade está se transformando em um Trabalho de Conclusão de Curso na faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. A proposta da acadêmica é conversar sobre o acesso à educação de qualidade e à universidade.

Patrícia durante sua fala no JURA (Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária), na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Foto: Arquivo Pessoal

Para descrever sua relação primeira com a cidade, a estudante fala em estranhamento. As dimensões de Florianópolis, onde ela foi morar durante a faculdade, eram bem maiores do que o município de onde veio. As centenas de pessoas diferentes circulando nas ruas do centro e a linguagem foram outros desafios que precisou enfrentar. “Quando tem um coletivo como o MMC dentro de uma sociedade urbana eu, que estava sozinha e não encontrava meus pares, pude conhecer outras jovens rurais. [O movimento] abre essa possibilidade de encontrar essas pessoas e trocar ideias, experiências”.

Cidades grandes também são sedes de espaços públicos com debates relevantes, como as Assembleias Legislativas. Patrícia lembra que estar na Capital permite que representantes do campo estejam em votações que, algumas vezes, podem ser chamadas de forma repentina. Nas universidades, essas mulheres também encontram caminhos para produzir estudos sobre a sociedade, educação, arte e outras ciências campesinas. “Eu já ouvi coisas no sentido de não ter relevância estudar o rural, o campo. Apagando a existência e a importância por ter a maior porcentagem urbana”, diz Patrícia, que reforça a permanência na universidade como forma de demarcar que os camponeses estão naquele espaço.

As reflexões produzidas nos estudos e no MMC voltam para o campo, como explica a professora Kelli Bus. Na casa de seus pais, a ideia de que o homem é o provedor da casa, por mais que sua mãe trabalhe tanto quanto ele, ainda é forte por questões culturais. “Depois que eu entrei no movimento, acabei refletindo e tendo outras visões sobre a questão do trabalho e do papel da mulher na sociedade, a inserção na força de trabalho. Hoje eu acabo tendo outro pensamento e tento conversar com a minha mãe, apesar de ser difícil por toda esta questão cultural que ainda está presente”.

Agroecologia feminina

Camponesas são ensinadas a ser boas esposas: lavar, passar e cozinhar. Inclusive, as terras costumam ficar em nome dos pais, filhos e maridos. “Eu tinha uma aluna que possuía a terra, mas não podia ter uma plantação agroecológica por causa do marido, que queria fumo”, conta a professora Fabiana Cordeiro. Formada em Educação do Campo, ela explica que os homens querem produzir o que dá lucro e usam a terra para este fim. Quando as mulheres trazem propostas de plantação agroecológica, voltada para a subsistência, costumam ser vistas como loucas.

Antes de trabalhar no campo e estar no movimento social, Fabiana explica que percebia a agroecologia como uma nova forma de agricultura. Com os debates, trocas com os povos originários e as experiências rurais, a professora começou a entendê-la de forma diferente. “A perspectiva muda completamente, como se [a agroecologia] fosse um modo de vida das mulheres. Porque elas não estão produzindo no viés do lucro, não produzem para lucrar. Até o MMC tem o projeto popular de agricultura e faz isso para que tenha alimentos saudáveis para alimentar a família e os vizinhos. Primeiro para o próprio sustento e depois para as outras pessoas”.

Fabiana em uma das aulas práticas de Educação do Campo, oferecida pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) (Foto: Arquivo pessoal)

Fabiana cresceu no centro de uma cidade rural chamada Itaiópolis, com cerca de 20 mil habitantes. “A gente tem um terreno bem grande e a minha avó sempre estava plantando. Nas vezes em que eu ficava doente, ela fazia um chá específico”. O sustento da região é voltado essencialmente para a agricultura. A professora cresceu tendo contato direto com o mundo rural, seus remédios naturais, as hortas e os passeios de fim de semana no interior. Desde pequena, a avó conta que Fabiana falava em trabalhar nas escolas e, com a família de professores, decidiu cursar Educação do Campo.

O lugar pequeno onde Fabiana cresceu foi cenário de batalhas importantes na história do Brasil. Ali, por volta do ano de 1912, no Oeste de Santa Catarina, foi travada a Guerra do Contestado. Homens e meninos da região eram enviados para a briga enquanto as mulheres ficavam em casa, cuidando das crianças e dos serviços domésticos. As marcas daquele tempo não foram apagadas nas gerações posteriores e, quando Fabiana precisou buscar grupos de mulheres em Itaiópolis, deparou- se com a história de Dona Marilda.

Anciã da cidade rural, a mulher aceitou conversar com a professora, que na época era universitária e estudava a teoria das Falas Significativas, de Paulo Freire. A entrevista chegou à agroecologia quando Dona Marilda disse: “Eu não vejo a agroecologia com outros olhos a não ser o feminino, porque ela sobreviveu a uma guerra por causa das mulheres”. Na época do Contestado, eram as mulheres que coletavam as sementes crioulas – mais diversas, naturais e adaptadas à região. Quase todas as camponesas usavam aventais de cozinha com vários bolsos, assim como a avó da anciã que contou a história. Os grãos eram plantados, cultivados e trocados entre as mulheres da região. Fabiana conta que atualmente o MMC faz o resgate e cultivos dessas sementes crioulas.

“Eu não vejo a agroecologia com outros olhos a não ser o feminino, porque ela sobreviveu a uma guerra por causa das mulheres”

Dona Marilda

Educação do Campo e o estereótipo do Jeca Tatu

Um dos professores que Fabiana teve durante a graduação pediu para que ela e a turma desenhassem o que imaginaram sobre o campo e a cidade. As cidades foram retratadas com prédios e o campo com “monte de mato, vaca, bicho e coisarada”. Existe um estereótipo, um tanto pejorativo, alimentado sobre o rural e seus habitantes. “É bem aquela visão que a gente têm do Jeca Tatu, que foi pregado e a gente só se toca dessas coisas depois que sai e começa a olhar para o campo de um jeito bem diferente”, reflete Fabiana.

No campo há bichos, vacas, galinhas, botinas e galpões, mas também têm pessoas, luz elétrica, tecnologia e educação. A camponesa Kelli Bus exerce a profissão de professora na cidade e diz que as universidades e escolas têm o poder de auxiliar na desconstrução desta teoria. “O campo não é este estereótipo que foi criado, como são os exemplos das festas juninas, que você tem a caracterização do jeca. Como professora, eu entendo que este papel da educação é fundamental para quebrar esse estereótipo”.

Kelli toma para si a missão de educar seus alunos da cidade sobre a diversidade do campo. Materiais e cartilhas que tratam de agroecologia, vídeos e visitas de estudo, além de outras ações. A desconstrução sobre o campo não chega pronta aos ouvidos dos alunos. A professora prefere estimular questionamentos: O campo é realmente assim? Já esteve naquele espaço? Conhece os seus processos? Na última aula da disciplina, o orientador de Fabiana devolveu os desenhos feitos pelos alunos da graduação e perguntou se eles ainda concordavam com o retrato. “Pelo amor de deus! eu não desenhei um poste de luz, uma internet”, comenta.

Ivanete faleceu em 8 de novembro de 2021 e seu legado permanece com o MMC de Santa Catarina. Arte: Divulgação/ MMC.

Leia a íntegra da nota de homenagem do MMC à militante Ivanete Zambon

Ivanete Zambon, militante do movimento das mulheres camponesas de SC, essa é uma simples homenagem para registrar seu legado de companherismo, consciência, luta.
Guerreira, comprometida com a vida, solidária, presente em todas as lutas do MMC, guardiã de sementes crioulas, produtora de alimentos saudáveis, grande lutadora.
Você permanece conosco companheira, em cada uma de nós, em cada luta e conquista! Companheira Ivanete presente, presente, presente, hoje e sempre! MMC/SC

Conheça mais a história do MMC em Santa Catarina no documentário Semeadoras, realizado pelas jornalistas Eliza Barcelos Della Barba e Luiza de Almeida Monteiro como trabalho de conclusão do Curso de Jornalismo da UFSC.

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