O músico de duas almas
Cantor e compositor venezuelano Misael Prieto, há quatro anos no Brasil, compartilha suas experiências sobre a música que transpassa fronteiras
Reportagem por Sthefany Martins
Casa cheia, rock’n roll jorrando dos alto-falantes e uma banda que sabe bem como animar o público jovem. É neste contexto pré-pandêmico que vejo Misael pela primeira vez. Ali, no palco do evento Casa Nossa, em Boa Vista (RR), o vocalista da Paraquedas domina a cena e preenche o espaço inteiro com sua voz. A emoção de cada verso cantado somada ao calor, típico do extremo norte, e aos feixes de luz que tingem a plateia, transforma o show em um daqueles momentos dançantes que sempre serão lembrados nas rodas de conversa. É parte dessa nostálgica euforia que sinto de longe, dois anos depois, enquanto ouço Misael tocar alguns acordes na nossa entrevista virtual.
Nascido em Cumaná (Sucre), na Venezuela, Misael Prieto tem 19 anos e se envolve com a música desde que se entende por gente. Veronica Rodriguez, sua mãe, costuma dizer que ele aprendeu a cantar antes mesmo de formular as primeiras palavras. Hoje, o bebê que já foi até menino Jesus nos corais de natal, está à frente de projetos musicais e bandas. Na Paraquedas, Verô e Lé e Vértigo performa além dos covers, suas composições em mais de duas línguas.
Misael, carinhosamente chamado de Misa, dá aulas de violão à noite. Por isso, já são 22h30 em Florianópolis quando o Google meet anuncia sua chegada para a primeira entrevista. Mais de 3000km e a diferença de uma hora no fuso horário nos separam. Ele mora há quatro anos em Roraima, e lembra do dia exato em que cruzou a fronteira pela última vez. “26 de agosto [de 2017], era uma quarta-feira quando cheguei na terra Macuxi”. O músico migrou para o Brasil, juntamente com a família, com o objetivo de encontrar melhores condições de vida e saúde, principalmente para sua mãe, que é diabética. Misa explica que sua família não é considerada como refugiada, principalmente levando em consideração a forma pela qual decidiu dar início à documentação brasileira, que consta como “residente”.
O cabelo longo e encaracolado, que balança livre nas performances ao vivo, hoje está parcialmente preso. Atrás dele, uma parede com vários violões e guitarras penduradas pode ser vista. Quando questiono sobre as aulas de violão, se empolga. “Faço isso desde os meus 15 anos de idade, quando ainda morava na Venezuela. Sempre gostei e me dou muito bem com isso. Acredito que arte não é para competir, e sim para compartilhar”.
A maestria em ensinar é um reflexo da facilidade que Misa tem em lidar com pessoas. Seja em frente a uma plateia lotada ou em uma conversa por chamada de vídeo, sua confiança é notável. Esther Areia, amiga que o artista conheceu no Brasil e co-compositora do single Lar, destaca essa qualidade na sua primeira impressão sobre ele: “O que me chamou atenção, de cara, foi sua ótima interação com o público, antes mesmo dele começar a tocar. Eu até me questionei: será que ele é bom mesmo? Parece muito confiante. E quando o show começou, eu vi que ele era realmente bom!”. Parte dessa confiança é consequência da busca pelo perfeccionismo, característica marcante em sua personalidade. Quem diz isso é Benjamin Farias, ex-baterista da banda Paraquedas e uma das primeiras amizades de Misa no Brasil. “Ele é muito esforçado, sempre quer fazer o melhor. É um dos músicos mais completos que eu conheço”.
Para Misa, a música é tão natural quanto respirar. Ele é fundador e vocalista da Paraquedas, banda de alternative rock que hoje também é composta pelo irmão, Símon Romero, baterista e baixista. Enquanto compartilha comigo fotos antigas da formação da banda pelo seu Instagram, o músico conta que a Paraquedas nasceu em 2018, após sua chegada ao Brasil. A música, de certa forma, serviu como base para a criação de laços, e foi essencial para a adaptação dos irmãos no novo país. “Quando chegamos em Boa Vista, eu sabia que tinha que criar uma nova banda que cantasse músicas em português. E como eu precisava me familiarizar com o idioma, de certa forma isso ajudou. Fiz novos amigos e tive muito tempo para compor músicas em outra língua”.
O interesse pela primeira arte, como é conhecido o conjunto de expressões sonoras, não surgiu após a migração para um novo país. Pelo contrário, a música sempre se fez presente, em grande parte, graças ao apoio e incentivo da família. As memórias da infância se entrelaçam com as aulas de música e as apresentações de coral que sua mãe, Veronica, organizava. “Eu sempre participei dos corais que a minha mãe dirigia. Era muito divertido, uma espécie de brincadeira para mim”. Essa dinâmica de estímulo à musicalidade por parte da mãe foi essencial no seu processo de crescimento. Por essa razão, em 2021, juntamente com os irmãos Simon e Miranda, formou um projeto acústico que batizou de Banda Verô, em homenagem à Veronica.Violão, ukulele, carrón e vozes se juntam em um repertório que abrange covers em português, espanhol e inglês.
Seja cantando ou conversando, sua fala quase não é marcada pelo sotaque carregado do país de origem. Conversar sobre linguagem é trazer à tona uma das matérias-primas do seu trabalho artístico, é por meio das composições que Misa propaga o que sente. Ele dedilha alguns acordes de Atracción, que considera uma de suas faixas mais românticas, e explica que esta é uma das composições que começou a partir de uma simples nota no violão. Conta que seu processo criativo mudou muito desde a chegada da família ao Brasil, principalmente pela inserção de um novo idioma. “Hoje, escrevo muito mais baseado no conceito da mensagem que quero passar para quem ouve”.
Misa acredita que compor em mais de uma língua é ter a oportunidade de se comunicar de diferentes maneiras. Cada idioma tem suas expressões, entonações e até ritmos próprios. O músico confessa que a pessoa que ele é quando canta em português é muito diferente da versão que performa em espanhol. “Eu fico pensando naquela frase: se você sabe falar duas línguas, é como se você tivesse duas almas. As duas fazem parte de você, mas acabam sendo bem diferentes. Até a voz muda! Definitivamente é como ter duas almas”. Para ele, existem certos assuntos que são tratados com mais facilidade quando escritos em uma língua específica. Assim, guarda os seus desabafos mais sentimentais para músicas no seu idioma de origem. “Nos primeiros anos em Roraima, compus muito no idioma brasileiro, por questão de adaptação. Mas atualmente, eu estou escrevendo mais em espanhol, porque pretendo lançar um projeto orgânico de canções na minha língua materna”.
Independentemente do idioma, uma coisa é certa: Misa Prieto compõe não apenas pela vontade de contar histórias, mas por saber que existem pessoas que precisam ouvi-las. Acredita que a linguagem musical é, acima de tudo, o jeito mais simples de comunicar. Ela conecta, ultrapassa as barreiras geográficas, linguísticas e étnicas. E é por isso que o músico de duas almas mantém um contato constante, seja pensando, consumindo, criando ou vivendo música. “É uma das coisas mais lindas que existem no mundo. Nós não precisamos de um bem material para fazer, sentir ou entender música. Nós precisamos apenas sentir”.
Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico sob orientação da Profa. Dra Melina de la Barrera Ayres.