Indígenas Kaingang em frente à Justiça Federal de Santa Catarina
Reportagens

Audiência termina sem definição sobre construção da Casa de Passagem Indígena em Florianópolis

Após duas horas de discussão, nova reunião foi marcada para o próximo mês

Reportagem e fotografia por Rodrigo Barbosa

Segue a batalha do povo Kaingang pela construção de uma Casa de Passagem Indígena em Florianópolis. A audiência de conciliação que visava dar continuidade à discussão que se arrasta desde 2016 terminou sem uma definição sobre a obra. A reunião ocorreu na quarta-feira (16), na 6ª Vara da Justiça Federal de Santa Catarina, e contou com uma grande mobilização dos Kaingang e de apoiadores da causa em frente ao prédio da Justiça Federal.

Casa de Passagem é reivindicação antiga da comunidade Kaingang

Pauta do movimento indígena desde 2016, a Casa de Passagem é uma construção que servirá para abrigar os indígenas Kaingang que migram à capital catarinense todos os verões negociar seus artesanatos. A prefeitura de Florianópolis assinou um termo de compromisso em outubro de 2018, se comprometendo a realizar a obra. Àquela altura, ficou definido que a Casa seria ao lado do Tisac, o abandonado terminal rodoviário do Saco dos Limões, que é atualmente ocupado pela comunidade Kaingang em condições precárias. 

Na audiência da última quarta, porém, o vice-prefeito Topázio Silveira Neto rechaçou a ideia, quase três anos depois do prazo inicialmente previsto para a conclusão da obra. De acordo com o município, o zoneamento do local não permitiria este tipo de construção. O argumento, no entanto, não foi levado à reunião que apresentou aquele que seria o projeto final da Casa de Passagem no dia 10 de maio de 2019, à qual o Cotidiano UFSC também esteve presente. Na época, contamos a longa história de descaso do poder público municipal com os Kaingang.

Uma segunda alternativa levantada pela comunidade seria a transformação da própria área do Tisac em Casa de Passagem. Mais uma vez, o município indicou que o tipo de zoneamento – neste caso, Ocupação Urbana Consorciada – não comporta uma construção como a Casa de Passagem que seria, “de pronto”, irregular. É importante pontuar que o Tisac nunca foi usado para a finalidade pela qual ele foi cedido pela União à prefeitura, sendo abandonado logo após sua construção. Ou seja, sua (não) utilização é feita de maneira irregular pelo Poder Público desde o início, segundo a procuradora Analúcia Hartmann, do Ministério Público Federal.

Abandonado desde a sua construção, o Tisac é atualmente Casa de Passagem provisória para os indígenas

A procuradora também esteve presente na audiência e questionou o vice-prefeito, bem como o procurador-Geral do município, Rafael Poletto, por quê não houve proposta de alteração de zoneamento da área na anteproposta do Plano Diretor de Florianópolis. Ela lembrou, inclusive, que um terreno próximo teve seu zoneamento alterado anos atrás para a construção de uma escola sob a justificativa de ser utilidade pública. Em resposta, a Prefeitura se limitou a dizer que o anteprojeto do Plano apresentado à Câmara de Vereadores não tem como objetivo mudar o zoneamento de áreas da capital. 

Como solução para o imbróglio judicial, o Executivo municipal afirma ter disponibilizado sete outros lotes como possíveis locais para abrigar a Casa de Passagem. Na versão do município, os terrenos já teriam sido apresentados aos indígenas, que negam a alegação. “Fomos só para olhar, mas não teve proposta, nem nada”, lembrou Sadraque Lopes, presidente da Comissão Indígena pela Casa de Passagem.

De acordo com a Prefeitura, a Funai teria dado o aval para que a Casa saísse do Saco Limões para alguma das outras áreas indicadas. Entretanto, nenhum membro do corpo técnico da Funai participou das tratativas com a Prefeitura, que teriam sido conduzidas por Eduardo Cidreira, Coordenador da Funai Litoral Sul, sem a presença dos Kaingang do Tisac. A atuação da Funai no imbróglio do povo Kaingang é questionada pela comunidade, que sequer reconhece a instituição como sua representante.

“Há muitos anos a Funai não chega ali naquele espaço [Tisac] para ver como é que está o andamento sobre a Casa de Passagem. E hoje, a Funai vai dizer que está representando os índios? Isso está muito estranho para mim, porque a gente está ali sofrendo”, disse Sadraque.

O líder lembra que as melhorias na atual ocupação Kaingang, como a instalação de energia elétrica e a construção da cozinha, não tiveram qualquer participação da Funai ou da Prefeitura. A permanência dos Kaingang em Florianópolis, hoje, é garantida pelo trabalho dos próprios Kaingang e do grupo de apoiadores à causa da Casa de Passagem. Em suma, a sociedade civil. O Ministério Público Federal é hoje a única instituição reconhecida como sua representante pelos Kaingang, além da própria Comissão Indígena, estabelecida anos atrás para debater questões relacionadas à Casa de Passagem com a esfera pública. 


Casa de Passagem no Monte Verde?

Durante a audiência, o terreno mais mencionado como supostamente propício à construção da Casa de Passagem está localizado no bairro Monte Verde. Trata-se de um terreno de 22 mil metros quadrados próximo ao Floripa Shopping. O local está a cerca de dez quilômetros de onde os Kaingang se estabeleceram há seis anos, no Saco dos Limões, e a sete quilômetros do Centro de Florianópolis. Para se chegar ao Centro vindo do Tisac é necessário, basicamente, apenas atravessar o túnel Antonieta de Barros.

Permanecer próximos ao Centro é uma das principais exigências do movimento indígena. Isto porque o comércio do artesanato Kaingang é feito, sobretudo, na região central da cidade. Se você transita pelo Centro no verão, certamente já viu os balaios de cipó dos Kaingang sendo vendidos por ali. Além disso, a proximidade ao Ticen (Terminal Integrado do Centro) é fundamental àqueles que vão mais além para vender sua arte nas praias da Ilha. No pico do verão, até 400 indígenas vêm à capital.

Além do próprio terminal, indígenas também vendem seu artesanato nas ruas de Centro e praias de Floripa

A dificuldade de locomoção é a principal queixa inicial dos indígenas em relação ao bairro Monte Verde: “Para a gente pegar ônibus para o Centro, fica mais fácil para a gente ir trabalhar. O Uber que a gente pega, fica mais barato para nós. As pessoas quando chegam na rodoviária para vir negociar suas artes, ali fica mais fácil e mais barato”. A sujeira do local e a falta de um projeto para o lote do Monte Verde também são apontados como empecilhos. 

Ainda assim, a comunidade indígena concordou em visitar este e os demais locais oferecidos pela Prefeitura na próxima semana, “sem compromisso”. As visitas devem contar com a presença de Ministério Público Federal e Prefeitura. Funcionários da Funai de Brasília também devem comparecer, embora sua presença não seja tida pelo movimento indígena como fundamental no processo: “Se a Funai quiser participar, tudo bem, mas para nós não muda muita coisa”, comentou um dos indígenas presentes na audiência. 

Embora dispostos a conhecer melhor as possibilidades para além do Saco dos Limões, os Kaingang seguem tendo como prioridade a construção de uma Casa de Passagem no local originalmente acordado, desde 2016, mesmo que a Associação de Moradores do bairro se posicione sistematicamente contra a permanência da comunidade. De acordo com eles, o pensamento da Associação não é, de fato, a opinião dos moradores do Saco dos Limões. O diálogo “do dia-a-dia” com a população local é consideravelmente mais amistoso.


Vistoria Judicial no terminal e nova audiência

Para além das visitas, o juiz Marcelo Krás Borges, anfitrião da audiência de conciliação, também ordenou que fosse feita uma inspeção judicial no Tisac. A inspeção foi pedido da Procuradora da República, Analúcia Hartmann, e tem como objetivo averiguar as atuais condições da ocupação. Melhorias no antigo terminal são reivindicações antigas da comunidade e já foram garantidas em outras ocasiões por decisões judiciais, descumpridas pela Prefeitura. 

A comunidade denuncia que as supostas melhorias de responsabilidade pelo município foram insuficientes ou sequer aconteceram, como constatado pela reportagem do Cotidiano UFSC em julho do ano passado

Vice-prefeito Topázio Silveira Neto (à direita), se pronunciando durante a audiência

O vice-prefeito se comprometeu a comparecer à inspeção, marcada para o dia 3 de março, e afirmou que a Prefeitura realizaria as melhorias eventuais na estrutura. Ainda segundo ele, o município estaria demonstrando “boa vontade” e teria “todo o interesse em resolver a situação”. Topázio pode se tornar prefeito de Florianópolis nos próximos meses, quando possivelmente o atual ocupante do cargo, Gean Loureiro, deve se afastar para concorrer ao Governo do Estado.

Uma nova audiência está marcada para o dia 16 de março, novamente na 6ª Vara da Justiça Federal, para avaliar se a discussão teve avanços. Será o próximo capítulo da luta dos Kaingang, que afirmam que não deixarão o terminal até que a Casa de Passagem seja construída. No momento, cerca de vinte famílias se encontram na ocupação.

Veja mais fotos da mobilização Kaingang em frente à Justiça Federal durante a tarde da última quarta-feira:

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