Reportagens

Crisálida: a série catarinense bilíngue que chegou à Netflix

Produtora executiva da primeira série brasileira em libras e português fala sobre o processo de produção da obra e de sua repercussão após chegar ao catálogo do serviço de streaming

Reportagem de Alan Christian

A série catarinense Crisálida, primeira série brasileira em português e língua brasileira de sinais (libras), chegou à Netflix Brasil e Portugal no dia 1° de maio deste ano. A obra trata de histórias de pessoas surdas que vivem em Florianópolis e precisam lidar com relacionamentos amorosos, familiares e com o mercado de trabalho.

Ao todo são quatro episódios com 30 minutos de duração cada. Além da série, o projeto também possui um curta-metragem e um longa homônimos, sobre o mesmo tema.

O projeto foi concebido pela Raça Livre Produções, produtora da capital catarinense. O casal sócio da produtora, Alessandra da Rosa Pinho e Serginho Melo, também foram responsáveis pelo roteiro e direção. Para a produção da primeira temporada da série, eles também contaram com a parceria das produtoras Arapy Produções e a TVi Televisão e Cinema.

Em entrevista, Alessandra Pinho contou curiosidades sobre o processo de produção da série e também comentou sobre a repercussão de Crisálida após sua estreia no serviço de streaming.

Confira a entrevista completa abaixo:

Por que o nome Crisálida?

É uma metáfora. Crisálida é o nome do casulo onde a lagarta se transforma em borboleta. E na minha opinião, o surdo se transforma para o mundo no momento em que ele aprende libras, rompendo sua crisálida a partir desse momento. Pois antes disso, ele vive no interior da sua alma, do seu mundo, se sentindo só, e depois da libras ele descobre o mundo.

Você já era produtora audiovisual e fazia um curso de libras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) quando pensou pela primeira vez no projeto, isso? Qual ano foi isso? Lembra em qual momento a ideia surgiu?

Isso. Trabalho com produção audiovisual desde o ano 2000. Em 2013, fiz meu primeiro curso básico de libras da UDESC, onde me apaixonei pela língua de sinais. No mesmo ano, ingressei na graduação de Letras Libras na UFSC.

E em 2014, após uma colega de curso relatar uma história pessoal dela, tive o “start” para o projeto. O engraçado disso é que nessa época eu estava querendo abandonar o audiovisual, mas a história dela me deu forças para seguir nesse caminho, contando histórias incríveis como a dela.

Poderia explicar resumidamente a linha temporal das produções do curta, da série e do longa? O material dos 3 formatos foi gravado na mesma época?

Logo após eu começar a anotar essas histórias que eu ouvia em sala de aula, abriu o edital do Fundo Municipal de cinema de Florianópolis (FUNCINE), que possuía uma categoria para piloto de série de TV, isso em 2014. Fomos aprovados e escrevemos o projeto de Crisálida pensando no piloto, que foi produzido em 2015.

Em 2016, o projeto se tornou um curta. Fizemos uma edição nova, pensando na carência de materiais bilíngues. Colocamos esse curta em alguns festivais de cinema e ele teve uma aceitação muito legal. No mesmo ano, participamos do Prêmio Catarinense de Cinema, no qual fomos contemplados com o patrocínio da produção da primeira temporada da série, que gravamos em 2018. Em 2019, ela estreou na TV Cultura. E agora está na Netflix.

Já o longa-metragem é uma nova edição do material gravado da série. É um recorte com as mesmas cenas. Ele estreou no Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM) de 2019. No momento ele está guardado, por conta do contrato de exclusividade da série com a Netflix.

Como foi produzir uma série sobre surdos não sendo surda?

Foi bem desafiador. Por mais que eu estivesse imersa na cultura surda, por conta da universidade, eu não sou surda, tenho uma visão de mundo de ouvinte. Então contratamos um consultor surdo, o João Gabriel Duarte Ferreira. Ele participou desde o roteiro até a pós-produção da série.

Cerca de quantas pessoas ao todo se envolveram na produção da série e qual foi o tempo de gravação?

Foram 33 dias de gravação. Contando desde a equipe técnica até os figurantes, foram cerca de 250 envolvidos. Nossa média diária de pessoas no set era de 60, e isso até pode ser considerado uma equipe bem pequena.

Qual foi a importância da UFSC no desenvolvimento do projeto?

Ela foi um berço para Crisálida. Primeiro motivo foi pela inspiração que veio das aulas. Segundo, pelas conexões de pessoas e participação de muitos colegas como atores (contando até com participação especial de professores). Terceiro, pelas locações de corredores, salas de aula etc. E por último, porque a UFSC é um polo de referência de língua de sinais e atrai pessoas de todo o Brasil, proporcionando uma diversidade cultural muito interessante.

Florianópolis também é um dos personagens de Crisálida, por conta das cenas que mostram diversos pontos famosos da cidade. Mas para além da ficção, como a capital catarinense se relaciona com os surdos atualmente?

Por conta do polo de língua de sinais da UFSC, Florianópolis acaba sendo uma cidade bem receptiva, proporcionando um acolhimento da cultura surda.

Qual a distância entre as cenas de preconceito presenciadas na série e a realidade vivida pelos surdos no Brasil?

As histórias de Crisálida são ficção. O preconceito na realidade é muito maior. Demos uma amenizada nas histórias da série por ser entretenimento. Ao mesmo tempo, vejo que hoje as pessoas surdas estão muito mais atuantes e menos excluídas, devido à tecnologia.

Todos os personagens surdos foram interpretados por atores surdos, correto? Apesar de eles já possuírem uma facilidade com expressão facial, conforme comentado por vocês em outras entrevistas, houve algum tipo de treinamento para as atuações?

Sim. Uma das nossas premissas era de que todo personagem surdo fosse interpretado por um ator surdo. Apesar da facilidade de expressão corporal e facial que eles possuem por serem surdos, fizemos uma preparação de elenco de 2 meses, revezando entre treinamento individual e com seus núcleos de atuação.

Qual foi o momento mais difícil das gravações da série?

Trabalhar com produção audiovisual é muito difícil, principalmente por conta dos imprevistos de gravação que sempre surgem. Mas nesse caso, o maior problema foi que poucas pessoas da equipe (ouvintes) entendiam libras e surgia uma dificuldade de comunicação com os atores. Tínhamos os intérpretes, mas às vezes não era em número suficiente. Inclusive queremos ter mais gente na equipe que saiba libras para a gravação da segunda temporada.

As principais histórias da série são permeadas pelas diferentes formas de amor. Por que esse sentimento foi escolhido para contar as histórias?

Na verdade eu nunca tinha pensado sobre essa ótica, mas acho que escolhemos o amor por ser um sentimento que permeia todo o projeto e por ser o sentimento que eu tenho pela cultura surda e pelos meus colegas surdos. Então acho que foi por isso.

Como a série conseguiu chegar à Netflix?

O desejo de levar a série para a Netflix sempre esteve presente. Era nela que estava o público que queríamos atingir com a série. Anteriormente já havíamos tentado 3 vezes levar a série para lá, mas sempre recebíamos um “não”, ainda mais por sermos uma produtora pequena de Florianópolis.

A virada veio quando a TV cultura acolheu o projeto e exibiu a série em setembro de 2019, gerando muita repercussão. Foram mais de 60 matérias sobre a série. A partir daí, eu imagino que a Netflix percebeu a valorização do projeto e então conseguimos colocar lá.

Cena da série Crisálida (Foto: Divulgação)

“A arte conecta mundos diferentes. Por isso vocês entenderam o espetáculo. Essa é a vivência que esses talentos precisam. Ter a compreensão da família e a oportunidade de construir uma ponte, entre o mundo dos sons e do silêncio”. Essa frase que aparece no terceiro episódio pode também ser uma metalinguagem sobre o papel da série?

Com certeza. Essa frase é perfeita. O papel da série é realmente esse. Mostrar para os ouvintes que o surdos existem, que precisam de oportunidades. Inclusive, inicialmente na escrita dos roteiros, o terceiro episódio seria a história para o último episódio, pois queríamos terminar a trama nessa cena do teatro. No entanto, nosso objetivo era manter uma deixa do personagem Bruno (intérprete) para a segunda temporada, então trocamos.

Para quem a série foi feita?

Foi feita para os ouvintes e surdos. Mas o público ouvinte nos interessa muito, pois queríamos que eles tivessem acesso a essas histórias, sobre como os surdos vivem no Brasil, para gerar empatia.

Os surdos amam Crisálida, e eu amo que eles amam. Mas tenho me surpreendido com os ouvintes, que estão mandando relatos e dizendo que agora estão interessados em estudar libras, por causa da série, e isso mostra que nosso objetivo está sendo atingido e isso é muito bacana.

Como está sendo a repercussão da série após chegar no catálogo da Netflix?

Muito boa. Como também faço a produção do conteúdo das redes sociais do projeto, ando recebendo por lá muito feedback. Estamos sendo contatados para muitas entrevistas e lives. Também andamos recebendo muitas mensagens de outros países, de pessoas querendo assistir a série. Espero que consigamos em breve convencer a Netflix a exibir para mais países, além de Brasil e Portugal.

Qual era seu principal objetivo com a criação da série? Pela repercussão até agora, você acredita que a série conseguiu atingi-lo?

Sim. Os principais objetivos eram divulgar a cultura surda, a língua de sinais e mostrar que os surdos são capazes. Percebo que agora os ouvintes (que assistiram à série) estão se interessando mais por libras. Já os surdos, estão se sentindo muito mais valorizados e empoderados. Entretanto ainda espero que tenham muito mais mudanças, inclusive no mercado de trabalho para surdos.

Considerando também o curta-metragem homônimo, o projeto já conquistou os prêmios Exibição do Festival Internacional de Cinema Infantil; Melhor Montagem na Mostra SESC de Cinema e Menção Honrosa do Festival de Cinema Infantil. Qual o sentimento que vem a sua mente quando percebe tudo que já conquistou até agora?

Os sentimentos de responsabilidade e gratidão. Me sinto muito grata por tudo que rendeu até agora. Estamos colhendo alguns frutos, mas temos muito trabalho pela frente ainda. E tudo isso nos faz ter uma responsabilidade maior em não deixar o projeto morrer, pois estamos falando de um tema que estava adormecido até agora e que precisa ser falado, discutido e refletido, contribuindo para uma transformação social efetiva.

A série trabalha com diversos momentos de silêncio nas cenas, sem trilha sonora, gerando maior imersão e empatia. Isso já foi pensado na hora de escrever o roteiro ou veio na hora das gravações, devido à natureza do tema?

Foi pensado desde o roteiro, pois seria uma parte da linguagem da obra. Contudo, na edição, muita coisa foi repensada e mudada. Algumas cenas que não teriam silêncio passaram a ter, já outras que tinham percebemos que não estava funcionando e então colocamos som. Precisava ter um equilíbrio. E a trilha sonora, pensada principalmente para os ouvintes, também foi elaborada num tom mais grave, para que os surdos também conseguissem sentir uma vibração, pois o surdos sentem essa vibração da música.

Pela sua experiência com audiovisual no Brasil, que já vem de anos, como você vê o papel das políticas públicas na produção cultural nacional?

Políticas públicas relacionadas ao audiovisual precisam ser constantes. O problema é que precisamos ficar lutando para que isso aconteça, para que as leis não sejam mudadas. E atualmente estamos passando por um retrocesso. Fundos de incentivo à cultura foram cortados ou estão contingenciados no momento. Inclusive o fundo municipal que utilizamos para a produção do piloto de Crisálida não promove editais há anos. Várias produtoras nacionais estão quebrando. É engraçado que até falo assim: “O glamour tá lá em cima, mas a conta bancária tá zerada”. São 300 mil empregos diretos que a indústria do audiovisual gera no Brasil, mas estamos diante de um governo que não valoriza a cultura, que declarou guerra aos artistas.

Qual o atual status da segunda temporada? Já temos alguma novidade?

Em 2019, com a nossa parceira Arapy Produções, participamos de Prêmio Catarinense de Cinema e conseguirmos recursos para a produção de mais 6 episódios. A atualização da Ancine sobre os recursos veio nesta semana e atualmente o status está em “Projeto em contratação”. No entanto, a produção só deve começar em 2021.

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