Aos 87 anos, artesã já participou de filme, escreveu livro e mudou de vida
Segundo a família, é difícil saber onde ela está durante o dia em função das inúmeras atividades das quais participa
Reportagem por Ísis Leites
Em um ensaio do grupo teatral Boca de Siri no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianópolis, um ano antes da pandemia de covid-19, jovens conduziam uma atividade de interpretação e expressão corporal na sala preta. Sentada no banco do piano, ao lado da porta, uma senhora com mais de 80 anos acompanhava os jovens com os olhos e buscava um espaço para participar. O grupo, acostumado com a imagem de Dona Adélia sentada na sala, continuava envolvido na proposta, que cada vez ficava mais acelerada. Ninguém percebeu que ela desejava participar. Sem resposta às suas tentativas, Dona Adélia encheu os olhos de lágrimas. “Vocês não sabem lidar com idoso”, afirmou e saiu. Passou algumas semanas sem ir aos encontros. Depois do ocorrido, o grupo tentou contato para se desculpar. Tempo depois ela retornou aos encontros e, até hoje, integra o Boca de Siri.
Adélia Domingues Garcia da Silva (87), nasceu em um tempo em que a Segunda Guerra Mundial nem tinha começado e o Brasil nunca tinha sido campeão mundial. Natural de Pinheiro Machado (RS), escolheu Florianópolis como seu lar há quase três décadas, quando se aposentou, aos 60. Ela sempre passava suas férias na “Ilha da Magia” eadorava, mesmo quando estava com pouco dinheiro. Mãe de onze filhos, afirma que ainda mantém contato com todos, inclusive com os que vivem longe. A quantidade de netos, já perdeu a conta. Bisnetos tem cerca de 20 e, recentemente, se tornou tataravó de duas crianças. Hoje, ela mora no Rio Vermelho com um dos netos, Kael Domingues (33). Ele assume que a vê muito pouco, somente à noite, pois normalmente quando acorda, ela já saiu. “Quando ela chega falamos sobre o dia dela e assistimos às notícias juntos.”
Dona Adélia diz que não consegue ficar em casa no seu dia a dia: “Não sei ficar parada”. Aulas de ginástica. Grupo de leitura da terceira idade. Feiras de artesanato. Hortas comunitárias. Grupo de teatro. Participa de várias atividades e, segundo a família, é difícil saber onde ela está. “Ela é super independente, quando a gente vê ela já tá lá não sei aonde passeando”, comenta Gisélida da Silva (47), uma de suas netas. Gisa, como gosta de ser chamada, pede para a avó dar atenção ao corpo e idade, que precisa desacelerar. Ela, no entanto, não gosta de ouvir isso. “A frase que mais irrita ela é dizer que não pode mais fazer alguma coisa ou que não tem condições para isso”, explica a neta.
Apesar das preocupações, recebe admiração da família. Para a neta Ginamara da Silva (42), irmã de Gisa, a avó é uma referência. Sempre que acredita não conseguir fazer algo, lembra: “A vó tá lá fazendo tudo”. Os netos possuem diferentes percepções sobre a atividade que mantêm no seu dia a dia. Para Kael, ela veio de uma criação na qual a esposa ficava sempre cuidando da casa. Ela já fazia algumas coisas, mas após a aposentadoria e o falecimento do marido, as atividades se intensificaram. “Ela tá correndo atrás do tempo perdido”, reflete Kael. Para as netas, sua participação em diversas atividades se relaciona com a solidão. Gisa reforça que “É uma questão de bem estar e saúde mental”.
Dona Adélia aos 87 anos em um dia rotineiro fora de casa. (Foto por Ísis Leites)
Em 2020, a pandemia de Covid-19 trouxe o isolamento social e estagnou suas atividades. Dona Adélia pegou covid logo no começo, quando não se sabia muito bem o que era. “Eu passei muito mal, […] perdi o hábito de comer.” Até hoje não tem mais o mesmo paladar e acredita que isso seja consequência da doença. As netas não concordam. Gisa diz que sua avó ficou muito triste durante esse período, por isso parou de comer. Elas realizavam chamadas de vídeo todos os dias, inclusive durante o almoço, para garantir que ela se alimentasse.
Mesmo com toda a ajuda, a filha Santa Antônia Domingues (68) passou um período morando no mesmo terreno, assim ajudou a mãe durante o isolamento. Para passar o tempo, recorriam à costura. Santa aprendeu tricô e crochê com a mãe, desde pequena, quando moravam em uma fazenda. Ela lembra que faziam tudo do zero, tiravam a lã das ovelhas, ferviam, estendiam, o processo para chegar na linha era longo. Naquela época utilizavam taquaras como agulhas de tricô. A costura foi passada de geração em geração. Dona Adélia também aprendeu quando criança, vendo sua mãe: “A gente aprende na marra”. Entre os feitos da pandemia, ela e sua filha deixaram uma colcha com mais de 200 fuxicos. Além disso, faziam máscaras com tecidos que tinham em casa e as penduravam no portão, deixando-as à disposição de quem precisasse. “Foi o artesanato que manteve ela em casa […], se não fosse ele, ela ia pirar”, reforça a neta, Gisa.
Dona Adélia utiliza a colcha de fuxicos feita na pandemia como fundo para sua banca de artesanatos. (Foto por ísis Leites)
O artesanato, entretanto, não foi sempre o protagonista. Seus interesses são variados, assim como os sonhos que já cumpriu. Já sonhou em participar de um filme, e foi atriz no curta-metragem Baile, produzido pela Novelo Filmes, em 2019. Sonhou em morar em Florianópolis, e mora no Rio Vermelho há mais de 20 anos. Sonhou em escrever um livro, e com a ajuda de uma estudante conseguiu. Hoje, quando questionada, demora para definir o sonho atual: “Eu já fiz todos”. Depois de um tempo, lembra. “Meu sonho é que eu chegasse ali no caderno e botasse tudo que eu pensei naquele dia, quero aprender a escrever direitinho.”
Na juventude, Dona Adélia não pôde estudar, pois cuidava da família e trabalhava. Não havia condições para sua educação. Sua assinatura ela aprendeu e nunca mais esqueceu: “Quando pequena, aprendi a escrever meu nome”. Somente após a aposentadoria, aos 60 anos, conseguiu focar nos estudos. Seu sonho era aprender a ler e escrever, pois queria fazer um livro sobre sua vida. Há 12 anos atrás, teve o primeiro contato com o Núcleo de Estudos da Terceira Idade da Universidade Federal de Santa Catarina (Neti UFSC), onde faz sua alfabetização.
Toda segunda e quarta-feira ela está nas “aulas de escrita”, como chama o EJA. (Foto por Ísis Leites)
Em uma quarta-feira qualquer em 2023, às 9h da manhã, é possível encontrá-la no Neti UFSC. Presta muita atenção na professora, mas às vezes ajuda colegas a aprenderem pontos de crochê durante a aula. Copia as palavras do quadro, sílaba por sílaba, em seu caderno. Quando escreve, não presta atenção em mais nada. Hoje sonha em escrever uma linha inteira do caderno sozinha, exemplifica: “Queria que eu chegasse no caderno e pensasse: ‘vou escrever ‘aprendizar’, aí fosse lá e escrevesse”. O sonho de escrever um livro foi concretizado um pouco antes da pandemia, com o auxílio de uma estudante da UFSC. “Ela ia todos os dias à minha casa e ficava ouvindo minhas histórias enquanto escrevia”, conta. Foram feitas poucas cópias, devido ao custo da impressão, toda a família já leu o livro. Ela quer fazer mais, mas tem que encontrar o documento original.
Além do livro, tinha o sonho de fazer teatro. Tania Meyer (65) era coordenadora do Grupo Teatral Boca de Siri há oito 8 anos, quando a conheceu Dona Adélia: “Ela apareceu e disse que o sonho dela era participar de um grupo de teatro, mas que ela não sabia se isso daria certo, porque os alunos eram todos muito jovens”. A diferença de idade não foi impeditivo. Com uma adaptação gradual, passou a integrar o grupo. Segundo Alex de Souza (38), atual coordenador do Boca de Siri, este ano ela tem participado de maneira esporádica. “Fala que tá mais preguiçosa.” Ela explica que está mais difícil participar, pois seus horários mudaram muito. “Vou ver se eu me organizo para ir. Eles gostam de mim. É tudo criançada nova”, mesmo assim, ela adora. Alex comenta que o grupo possui um fluxo de pessoas muito grande e ela sempre está lá, acolhendo os novos integrantes. “O que fez muita diferença na permanência dela no grupo após esses anos é que quem chega já tem ela como referência.” Este ano o grupo está organizando a primeira peça após a pandemia. A temática será relacionada com bruxas. Ela diz que no último ensaio que participou, lhe ofereceram um papel: “Vai ter uma parte pra mim, então vamos ver. Já dei meus pitacos lá, foi bem legal.”
Homenagem no aniversário de 25 anos do grupo teatral Boca de Siri, em março de 2020. (Acervo pessoal)
Reportagem produzida na disciplina Apuração, Redação e Edição III, sob orientação de Melina de La Barrera Ayres, no semestre 2023.1.