Karine rodeada por algumas das suas produções. Foto: Isabelle Fudal
Reportagens

Uma [micro]empreendedora apaixonada pelo upcycling

Karine Matos, também estudante de moda na UDESC, é responsável por trazer peças obsoletas de volta ao ciclo de consumo

Reportagem por Isabelle Fudal e Willian Fabiano

Durante uma manhã de sexta-feira, no meio da primavera, com a temperatura de 24 graus, um sol de rachar e uma leve brisa marítima, uma mulher de estatura média, cabelos curtos, presos em um rabo de cavalo, e olhos pretos conserta um tecido ao som de Tell Me, da dupla BROS. Propagada por meio de uma caixa de música, a canção toca uma, duas, três vezes, no mínimo, e ecoa pela loja feita de madeira. Localizado no bairro Campeche, no sul da ilha de Florianópolis, o local é uma oficina, que repara pipas de esportes aquáticos, como kitesurf, wingsurf e windsurf. Quem está ocupada em trazer uma peça de kitesurf de volta à vida ou, do modo como gosta de chamar, ao ciclo de consumo é Karine Matos de Farias, de 39 anos.


Cortar, colar, higienizar, secar, costurar e conferir se o trabalho está bem feito são ações comuns para ela. Tanto no ambiente de trabalho quanto com sua marca de vestuário sustentável, Karine tem um olhar especial para os objetos que, em tese, não são considerados mais “úteis” pela sociedade. Reutilizar itens e colocá-los de volta ao ciclo da vida é como se nomeia a técnica de upcycling, uma das linhas de pensamento (e ação) da empreendedora.

Para consertar o kitesurf, Karine seca a cola com secador de cabelo. Foto: Isabelle Fudal 

Com um gosto musical eclético, de Dona Onete até Rolling Stones, e um espírito de jovem aventureira, Karine é apaixonada por café e pela série Friends. Ainda que em uma primeira conversa diga “Ai, não sei. Não me defino”, ela se considera um mix das personagens Monica e Phoebe. “Apesar de ter a parte criativa e mais artística da Phoebe, eu também tenho um pouco da Mônica, que é mais cri-cri com limpeza e organização”.


Nascida em 10 de setembro de 1984, na cidade de Carapicuíba, a paulista passou boa parte da sua vida no Rio Grande do Sul. As cidades de Porto Alegre, Esteio e Gravataí foram sua morada por quase duas décadas. Ka, Kaka e Kari são alguns apelidos carinhosos para a segunda das quatro descendentes de Marineide de Freitas, quem a descreve, com orgulho, como “uma filha que nunca me deu trabalho, sempre na dela e sempre estudiosa”. Seu sonho de infância era cuidar dos gatos e dos cachorros, por isso pensou em ser médica veterinária. A vida, porém, tomou outros rumos.


Há 12 anos, Kaka vive em Florianópolis. “Para mim, Floripa seria o ideal de estabelecer minha vida num lugar que eu considero, assim, tão bom em questão de qualidade de vida. Minha amiga morava aqui e eu sempre vinha para cá visitar. Então, fui me afeiçoando com a cidade cada vez mais nas minhas vindas”, conta. Quem morava na ilha da magia na época era Samantha Prass, a Samy para os íntimos. Elas se conheceram na escola com 13 anos e são melhores amigas desde aquele tempo. “A gente foi muito parceira a vida toda”, enfatiza Samy. E, para Dona Marineide, o companheirismo das duas se transformou em uma “amizade bem bonita, são duas irmãs”. Ao longo dos anos morando na capital catarinense, Ka desenvolveu a paixão pelas trilhas e uma das suas favoritas é a da Costa da Lagoa, que tem como paisagem o entorno da Lagoa da Conceição.


No ano de 2016, iniciou a graduação em Design de Produto no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Ela relembra como a formação “estava me dando muitas dúvidas do que eu iria trabalhar no design, daí tranquei” e, em 2019, migrou para o curso de Bacharelado em Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Hoje, está no sexto semestre de um total de oito.


O interesse por costurar roupas não nasceu há quatro anos, desde sempre a empreendedora gostou de inovar nos looks. Na época em que as calças boca de sino estavam em alta, Ka reformava peças para ela e Samy entrarem na tendência. “A gente era adolescente e ela fazia tudo na mão, tudo, tudo, tudo, tudo. A gente nunca tinha dinheiro para comprar coisa nova.”, relembra a amiga. O serviço era puxado. “Eu fazia desde nova, a gente abria o lado assim [indica a lateral próxima da panturrilha que cortava] para aumentar”, explica Karine.


Outra peripécia de Kari para estilizar roupas, e que foi um sucesso, aconteceu em 2007 quando sua mãe adquiriu uma máquina de fazer tricô. No mesmo período, Ka comprou uma jaqueta de tecido sintético, no estilo das puffers de hoje em dia. O modelo é definido por dona Marineide como “a coisa mais linda”. Um detalhe, no entanto, incomodava a fashionista: a extremidade das mangas. “Eu não gostei do punho. Então, falei ‘mãe, quem sabe a gente faz esse punho de tricô e aplica na jaqueta, vai ficar bem legal!’ e ela [Marineide] ‘não vai dar certo’”, recorda nostálgica. Depois de insistir muito, a mãe fez as vontades da filha e relembra entre risadas “não é que deu certo [risos] e usou [por] tempo aquela jaqueta”. Para Kaka, a peça ficou maravilhosa e todo mundo gostou.


A determinação, um de seus pontos fortes, não nasceu com a história da jaqueta com os punhos de tricô. No verão de 1986-87, a mini Kari de dois anos ganhou de sua madrinha uma saia e uma blusa de botões feita com uma malha rosa. Ela, determinada, se negava a tirar o conjunto. “Não deixava colocar outra roupa nela, era aquela. Quando dormia, eu tirava a roupa dela, lavava, botava para secar para colocar nela de novo”, recorda dona Marineide do inesquecível look. Foi essa coragem que fez Ka idealizar uma marca. “Desde quando iniciei o design, pensei ‘eu vou pelo menos aprender a criar algo, projetar algo, para depois trabalhar em um produto e em uma marca’”.


Em 2020, nasceu o seu sonho: a In Core Ecodesign. Voltada para o vestuário sustentável, o empreendimento transforma as pipas de esportes aquáticos, principalmente as do kitesurf, que não têm mais conserto, em estilosas mochilas, pochetes, bolsas e corta-ventos. “Sempre foi um desejo. Mas na pandemia que eu comecei a pensar como marca e, de fato, foi ano passado [2022] que eu oficializei criando o meu MEI.”, explica Karine. Hoje, ela faz parte das estatísticas do mundo dos negócios.


Até abril de 2023, segundo dados do Mapa de Empresas elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), existiam mais de 21 milhões de empresas com o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJs) ativo. Desse percentual, 14.519.408 cadastros são na categoria Empresários Individuais, que inclui os Microempreendedores Individuais (MEIs). Tal número representa 69,07% das empresas formais no Brasil e pode ser comparado com quase duas vezes a população de Santa Catarina, a qual é de aproximadamente 7,6 milhões de pessoas, conforme consta no censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


A iniciativa de reutilizar os tecidos e aplicar o upcycling, no entanto, começou a martelar na cabeça da estilista há mais de quatro anos. Desde 2015, Karine trabalha em uma oficina de reparos das peças de kitesurf, wingsurf e windsurf. Ela entrou sem saber como consertar o tecido desses produtos, porém seu empregador, Marcelo Torero, a ensinou as técnicas e percebeu como a então aprendiz aprimorou alguns métodos para facilitar o serviço. “Alguma coisa ela desenvolveu e criou uma técnica diferente. Teve algumas saídas criativas, sabe, e até hoje a gente usa.”, afirma ele.


Ao longo do tempo, Ka se deu conta da grande quantidade de peças sem uso que eram descartadas ou amontoadas em um “quartinho” da loja e teve um insight: tudo aquilo poderia voltar ao ciclo de consumo – o foco de sua empresa. “Vai acumulando e é poliéster, né. O poliéster vai ficar aí quantos anos e sem aproveitamento? Já tem muitas marcas que reaproveitam, mas eu notei que aqui nessa região não tinha.”, relembra Kaka. Essa ação vai ao encontro da iniciativa de Environmental, Social and Governance (ESG), uma prática empresarial responsável por priorizar atividades sustentáveis, a responsabilidade social e a transparência do negócio. Quem pensava a mesma coisa era Marcelo, que decidiu doar as peças para os testes do projeto em nascimento. Hoje, ele continua com as doações e relembra a primeira vez que viu uma criação da funcionária: “Ela apresentou um produto bem legal, bem acabado”.


A expressão “às cegas” resume o primeiro corta-vento costurado pela empreendedora. Em 2019, quando a In Core Ecodesign era uma sementinha e Karine nem sabia fazer modelagem básica, a fashionista se desafiou e criou, na cara e na coragem, a peça do zero. Ela tinha um sonho, uma tesoura e um tecido de kite branco com detalhes cinza e salmão. “Eu fiz, assim, aprendendo mesmo na prática”, relembra. Kari logo percebeu que “as pessoas começaram a gostar” e pensou “Hum, eu acho que isso pode virar um negócio”. Foi assim o start da marca. Curiosamente, o molde produzido para uma jaqueta, por exemplo, é sempre do mesmo formato, porém, o padrão estético dos tecidos é diferente, o que confere originalidade a cada novo artefato desenvolvido.

Karine vestida com seu primeiro corta-vento. Foto: Isabelle Fudal

Hoje, devido à falta de tempo, a escala de produção é pequena, mas não restrita ao ateliê. Os produtos são de Floripa para o mundo e podem ser encontrados tanto em duas lojas físicas parceiras, que ficam localizadas na Lagoa da Conceição, como também há a possibilidade de pedidos sob encomenda através das redes sociais da marca.  

Apesar de criar suas peças com kitesurf e trabalhar em uma oficina que os repara, Karine não pratica o esporte, uma controvérsia da vida. “Me interessei no início, mas depois me desinteressei, é que exige a ocasião certa. Tem que ter uma boa condição de vento, de direção e da velocidade para você velejar e isso é no meio de uma tarde, tem que ter disponibilidade para praticar, sabe?”.

A ação de reutilizar coisas não ocorre só em sua marca. Ao longo da jornada de estudante na UDESC, Ka não limitou seu conhecimento à sala de aula. A estudante abraçou a oportunidade de aplicar seus estudos de maneira prática e significativa através de projetos de extensão. Em 2020, entrou no Ecomoda e, hoje, é bolsista do Floripa Eco Festival, ambas as iniciativas são coordenadas pela professora Neide Schulte. “A Karine é uma pessoa que vai conseguir se formar em algo, que é a moda, e trabalhar com um propósito, que é a moda com sustentabilidade.”, conta a professora.

O trabalho esforçado da estudante para suas criações já teve reconhecimento internacional. Ano passado, Kaka participou do Tum Festival e algo inesperado aconteceu. Ela, como bolsista do Floripa Eco Festival, precisou desenvolver com tecidos descartados um look all jeans para o evento. Foram alguns meses cortando, modelando e costurando. O resultado da criação foi um vestido feito com retalhos quadriculados e retangulares de tecidos jeans em várias cores. O modelo ficou tanto bonito quanto bem feito e chamou a atenção da estilista Claudia Smith. A fashionista britânica ficou apaixonada pela roupa. “Eu falei leva, é um presente para você”, relembra emocionada a empreendedora. Já faz um ano desse acontecimento e Ka ainda não acredita que isso foi real.

Karine (à esquerda) com a estilista britânica Claudia Smith (à direita), que usa o vestido all jeans produzido pela estudante. Foto: arquivo pessoal da Karine

O lar de Karine também é palco para suas criações sustentáveis. Uma antiga rede transformada em cortina da sala, um porta xícaras feito de estrado de cama e um sofá com base de palete, um colchão antigo de assento e uma manta de retalhos por cima são objetos que compõem o apartamento. Suas trajetórias no trabalho, nos projetos da faculdade, na sua marca e na criação de móveis para o “apê” mostram seu compromisso com uma existência sustentável. Cada ponto feito com agulha e linha são testemunhas do seu acordo com a sustentabilidade. Ao compartilhar seu estilo de vida, ela enfatiza, “Para mim, o upcycle começou e vai continuar, não tem como não reutilizar materiais”.


Reportagem perfil produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico III, ministrada pela Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres e pela Profa. Dra. Janaíne Kronbauer dos Santos, no semestre 2023.2.

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