Quando o amor não bate na aorta
Histórias para quem, em algum momento, não se sentiu amado
Reportagem por Erika Artmann
Fazia duas semanas que nos conhecíamos e eu já estava apaixonada. Foi numa festa, com muitos amigos e bebidas, antes de todo o caos da pandemia de Covid-19. Sem esperança de me envolver com alguém naquela tarde, me sentei em um banco do canto enquanto conversava com uma amiga. Uma terceira mulher chegou elogiando a nossa aparência e perguntando se estávamos solteiras. Na época, me considerava de uma beleza normal, quase apagada. Ao meu lado, uma das meninas mais bonitas da festa. Claro, eu me comparei enquanto pensava que o convite que se seguia era para ela. “Tenho um amigo interessado em você”.
Quando percebi que a frase se dirigia a mim, não levei a sério, mas aceitei uma conversa. Ele acabava de voltar da Argentina, depois de uma viagem longa. Era interessante e tinha um certo charme, mas mal reparei no rosto que se colocava à minha frente. Depois dessa tarde, ele investiu em conversas e demonstrou preocupação. Duas semanas se passaram e, na data que coincidia com o meu aniversário, chegou um convite para viajarmos. Um final de semana na casa da família dele. Minha família mora longe e, juntos, eu não estaria só ao fazer 20 anos.
Quando cheguei, uma festa estava posta. Churrasco, música e algumas cadeiras. Além de nós, sua mãe, padrasto e irmão mais novo completavam a bagunça. Naquele final de semana, dormimos e cozinhamos juntos e descobrimos que gostávamos dos mesmos filmes. Durante uma das conversas desinteressadas, o papo chegou em filhos. “Os meus vão ser loirinhos e ter olhos azuis, bonitos como o pai”, disse. Nem toda a paixão impediu que, como mulher negra, aquelas palavras me atravessassem como uma espada. Mesmo sem a pretensão de ser mãe, enquanto ele falava, descobri que não chegaríamos a lugar algum.
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Aos 20 anos, alguns relacionamentos já haviam passado pela minha vida. Desde os 17, nos primeiros jogos do amor, me apaixonava intensamente. A busca era por histórias instigantes na vida real, após ser alimentada pelos relacionamentos mágicos dos livros infanto juvenis. A trilogia Perdida, escrita por Carina Rissi, guardava minhas histórias de cabeceira. Na estante estavam outros romances como a saga A Escolha, escrita por Kiera Cass, e a coleção O Duque e Eu, de Julia Quinn. Romântica incurável, dramatizava quase todas as minhas relações para, no final, perceber que era um sentimento de mão única. Cada um dos meus “ficantes”, como se identificavam, pediam sigilo e diziam que ainda não estavam prontos para relacionamentos. Todos eles, em algum momento, pararam de me ver quando encontraram alguma namorada branca.
Fui amando e perdendo a habilidade de ser amada. Idealizando tudo e me colocando de lado. Em algum momento eu me senti insuficiente até para meus amigos e todo o carinho que me ofereciam parecia exagerado para alguém sem muitas qualidades. Os traumas que levaram a isso não estavam só nos quase namoros, mas também na falta de espaço para falar sobre os meus sentimentos até mesmo em casa. Chorar era tido por drama e quando conversas delicadas eram sugeridas o máximo que eu recebia era uma revirada nos olhos. “Suas músicas não”, “você não vai escolher o filme” ou “nem começa com esses papos”. Em silêncio, fui me sentindo cada vez mais inconveniente, sem acreditar no carinho, quando ele chegava.
É que amar e ser amado estão no mesmo campo amoroso. Mas, dentro dessas palavras existe um universo de histórias, vidas e definições. Autores de vários campos, da psicologia até a biologia, tentaram decifrar e ainda enfrentam os componentes desse sentimento. Em busca de desbravar o que significa o amor e entender porque algumas pessoas não se sentem amadas, me debrucei em livros. Comecei por O Banquete de Platão e fui até Tudo Sobre Amor, de bell hooks. Na terapia, que comecei logo após as crises de ansiedade desencadeadas pela pandemia, o sentimento virou a principal pauta. Insatisfeita com os insights que tive até ali, decidi ouvir outras pessoas.
O ghosting é uma palavra que tem ganhado força na internet, mas poderia ser muito bem resumida por velhas expressões como “tomar um chá de sumiço” ou mesmo “desaparecer”. Vários motivos podem levar a este ato de fuga, mas, no caso de Mickaell Jean Mello, gerente de uma floricultura em Canarana, no interior do Mato Grosso, a razão é o medo de ser amado. Quando percebe uma aproximação mais atenciosa do que o comum, o jovem de 21 anos tende a pensar que não merece aquele carinho, e se afasta.
Não é que ele não queira um relacionamento. Ao contrário, ele espera poder compartilhar a vida com alguém. As experiências negativas em uma cidade conservadora, onde a maioria dos homens gays se esconde em roupas de trabalho engraxadas e relacionamentos heterossexuais, foram determinantes para os limites criados. Adepto do sexo casual, Mickaell conta que algumas das pessoas com as quais saiu estão escondidas sob a fachada heteronormativa e reclamavam de sua rotina considerados femininos, como maquiagens ou unhas pintadas.O jovem, então, tornou as conversas cada vez mais distantes e diretas, tendo o sexo como único objetivo.
Em um acaso da vida, Mickaell conheceu, através do Tinder, alguém disposto a se relacionar. Durante cerca de um mês o casal passou a fazer visitas sempre que possível e o pretendente se esforçava para entender a distância exigida para manter um relacionamento com o gerente. Quando a relação começou a criar profundidade, Mickaell lembrou dos julgamentos duros que recebeu de outros homens. Ele passou a se sentir ruim e insuficiente para o rapaz com quem iniciava um romance, arrumou as malas e foi visitá-lo. Depois de um tempo juntos, o jovem disse que não se veriam mais. Um veredito dado sem explicações ou espaço para argumentos. Foi embora e bloqueou o recente parceiro nas redes sociais.
Aos 26 anos, Aliane Viana conta que suas reticências com o amor começaram na infância. Seu pai era ausente e a mãe trabalhava duro para sustentar os três filhos, sem sobrar tempo para demonstrações de carinho, como beijos e abraços. As dificuldades amorosas foram acentuadas na adolescência. Em busca de afeto, ela começou a se envolver em relacionamentos falidos nos quais nunca era assumida.
Os parceiros marcavam encontros em locais afastados onde não seriam reconhecidos. Mesmo sem nunca ter perguntado diretamente o motivo de ser excluída, ela acredita que o incômodo era por não ser padrão. Sem cabelos alisados, roupas femininas ou maquiagem, as pessoas do colégio particular que frequentava não queriam estar perto dela, nem mesmo as meninas, que evitavam a amizade.
Na terapia, Aliane reconheceu a dificuldade de receber amor e encontrou formas de evitá-la. As sessões ajudaram a identificar as origens da forma como entendia o sentimento e as dores presentes nas relações. Além disso, ela pode perceber que o amor estava também nas demonstrações não românticas. Sua mãe, por exemplo, aceitava a correria do trabalho para que pudesse sustentar a família, sem deixar de lado os incentivos à educação. Ela costumava dizer para a jovem estudar porque uma caneta pesa menos do que a enxada. Esta era a sua forma de demonstrar amor.
O tempo e o autoconhecimento foram grandes aliados para que Aliane se deixasse ser amada. Certa vez, ela partiu em mais uma de suas aventuras com homens. À sua frente estava João Vinícius, com o qual planejava se encontrar, transar e ir embora. O roteiro inicial reproduzia a rotina de seus antigos relacionamentos, sempre casuais e impessoais. Enquanto se vestia rapidamente para partir, fugindo de algum (des) afeto que pudesse chegar, João fez um convite: “Quer ver um filme e comer alguma coisa?”. Aliane ficou e logo se deixou ser amada por João Vinícius. Mais tarde eles tiveram um filho, o menino Vicente, fruto do carinho compartilhado pelos pais.
Pensativo com o fim do primeiro namoro, o escritor de afetos, Paulo Gonzaga, começou a falar com seu pai sobre não querer mais relacionamentos nos moldes que experienciou. Na época, ele não conseguia identificar as razões para a insatisfação, mas, a partir da provocação sobre o que realmente desejava, entendeu melhor sua forma de amar. Para ele, é insustentável encarar um amor que exige exclusividade. Por causa disso, decidiu viver relacionamentos não-monogâmicos.
O entendimento que surgiu das experiências de Gonzaga é que, acostumados com resquícios de amor, muitas pessoas não se dão ao trabalho de pensar no que querem de seus relacionamentos. No processo, o ato de pensar em si mesmo é negligenciado, além dos desejos reais serem descartados em nome de histórias romantizadas. As idealizações e imposições são típicas de uma sociedade branca e heteronormativa, que molda em caixas bem fechadas as formas de amar e impossibilitam a amplitude que há no sentimento. A partir dos sentidos e da reflexão, o amor se expande, avoluma e reconstrói, sendo transbordado das caixas.
Como homem preto, as restrições da monogamia são apenas uma questão na forma com que Paulo vive o amor. Suas histórias são atravessadas também pela raça. No Ensino Médio, enquanto seus colegas encontravam as primeiras paixões, ele escolheu deixar de viver relacionamentos românticos. Percebendo que os sentimentos amorosos daquela época e espaço não eram destinados a ele, decidiu interpretar o papel de “gordinho engraçado, amigo das pessoas”. Ele reconhece a violência presente nesta recordação. Atualmente, está em um relacionamento e insiste no resgate do amor, sobretudo entre as pessoas pretas.
Ensinadas desde o berço a servir e amar, dentro do recorte de gênero e raça, mulheres negras são negligenciadas quando se trata de receber amor. É uma mistura de opressões por cor e por gênero, como explicado por Lélia Gonzalez em seu texto, Por um feminismo afro-latino-americano. O sentimento nem sempre é destinado a elas, o que amplia a carga de violência. Em 2016, Giovanna Alencar estava apaixonada por um colega branco da escola com quem se relacionava às escondidas e decidiu se declarar. Ao assumir o afeto que sentia, ouviu de maneira franca e direta que não era branca o suficiente para ser namorada dele.
Giovanna se fechou aos relacionamentos amorosos, acreditando que os sentimentos destinados a ela não passariam de fetiche . Vinda de Brasília para viver em Florianópolis, ela buscava formas de fazer parte deste espaço, que é muito mais branco do que o seu de origem. Com uma população de mais de 2,5 milhões de habitantes, a Capital do Brasil tem 55,9% de seus habitantes se identificando como preto ou pardo, segundo cálculos feitos com base nos dados de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O mesmo levantamento mostra que na Capital catarinense, com uma população de pouco mais de 249 mil habitantes, a porcentagem de negros era de 24,7%.
Infelizmente, os comentários na família ou na escola quanto a sua aparência foram determinantes para que, naquele tempo, tentasse criar uma falsa identidade. Houve um tempo em que Giovanna – na busca pelos traços brancos – fez questão de estar sempre com o cabelo liso. A sensação de que não poderia ser amada só passou quando aceitou que era diferente das pessoas que estavam no lugar onde tentava se encaixar. Giovanna não aceita mais ser colocada em um relacionamento casual. Em suas palavras, não será mais reduzida a isso, principalmente por questão de raça. É uma escolha em aceitar apenas o que faz sentido para ela, apesar de entender que existe uma legião de pessoas quebradas pela vida. Nesses casos, elas aceitam amar pessoas que ainda não entendem ou têm clareza do que significa ter o sentimento pelo outro.
Quantas vezes você já foi amado é representado pela sigla QVVJFA no álbum do rapper Baco Exu do Blues. Na obra lançada em 2022 ele canta sobre autoestima e amor, e como esses dois sentimentos são afetados pelo racismo.”Eu sinto tanta raiva que amar parece errado” ou “tudo que eu ouvi sobre esse tal amor me assusta” são algumas das frases cantadas por ele no disco aclamado pela crítica. Conheço Baco há muito tempo, mas a primeira vez que ouvi este álbum foi quando um amigo fez no Twitter a pergunta que estampa a capa, seguido por um pedido para eu não perder a conta.
Tanto para amar quanto para ser amado é preciso ter um investimento emocional, como lembra Paulo Gonzaga que, além de escritor de afetos, é psicólogo. Para ele, amar e ser amado são afetados por estruturas sociais, relações de poder, pelo patriarcado e por instituições, como as religiosas . Além disso, as experiências sociais vividas individualmente moldam a forma como se recebe o amor. Muitas vezes, pessoas que gostariam de ser amadas estão à espera deste lugar de príncipe encantado ou princesa da Disney, dentro da perspectiva do amor romântico. “Na vida concreta a gente percebe que não é bem assim, não é só isso e o amor pode ser de uma outra forma”, completa o psicólogo.
Sentimentos já são pesquisados nas Universidades, por mais que ainda sejam trabalhos recentes e em número pouco expressivos. A professora e historiadora Cristina Scheibe Wolff se debruçou, junto ao seu grupo de estudos na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em como os afetos influenciam politicamente. Sobre o amor romântico, ela explica que até o século XVIII ele era exclusividade da arte. No casamento, o que contava mesmo era a propriedade. A ascensão da burguesia incentivou esse modelo de vida conjugal baseada nos romances. Mas era para poucos e, mesmo que tentassem se encaixar neste ideal estabelecido para os ricos e, depois, divulgado pelas revistas, parte considerável da população pobre não podia, por exemplo, comprar anéis de diamantes ou manter a mulher em casa, cuidando apenas da família.
Durante sua participação na edição 22 do Big Brother Brasil (BBB) da TV Globo, a cantora Linn da Quebrada, lembrou, em um diálogo com outros confinados: “O amor é algo super novo, gente. O amor como a gente conhece, esse romântico induzido pelas novelas. E ele vai se moldando socialmente. Se a gente não discute o amor ele continua nesse terreno do sagrado, do intocável, como se ‘gosto não se discute’”. Para ela, a falta de reflexão sobre o tema nos impede de perceber que alguns corpos acabam mais amados do que outros. “Corpos gordos, negros, trans, de pessoas com deficiência. A gente nem pensa nessas pessoas quando pensa em amar alguém”. Linn é travesti.
O amor costuma ser visto como uma coisa só, um sentimento quase místico. Mas prefiro uma visão semântica. O significado principal da palavra é sentimento. Quando tratamos de linguística percebemos que os sentidos mudam de acordo com o contexto. Não seria diferente com o amor. Paulo Gonzaga o vê também como uma ação, um lugar político. Mickaell Jean Mello foge como pode do amor romântico, mas tem bons amigos.
De qualquer forma, no amor não há castigo ou punição e, como descrito por bell hooks em Tudo Sobre Amor, está naquelas ações amparadas por cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança. Em alguns momentos, como lembra a autora, as formas de desamor que experimentamos na família de origem, entre os sinais de amor, nos confunde e machuca. Torna-se necessário aprender a amar, a deixar-se amar, com todo o afeto merecido. Como dito pelo eu lírico do poeta Carlos Drummond de Andrade, o amor é isso aí: “hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será”. Só não dá para perder a conta.
Reportagem produzida na disciplina Apuração, Redação e Edição V, sob orientação de Tattiana Teixeira, no semestre 2021.1.