Via Desinstitute (Foto: Lívia Ferreira)
Reportagens

Por trás dos muros dos manicômios: imagens do descaso com a saúde mental em Santa Catarina

Com a invisibilidade nas discussões, usuários denunciam os retrocessos nas políticas de saúde mental no Estado

Reportagem por Ísis Leites

O quadro atual de Santa Catarina no âmbito da saúde mental é alarmante. Além do Estado ter ficado cerca de 12 anos sem discutir saúde mental com a comunidade usuária, hoje ainda existem mais de 100 pessoas vivendo de maneira permanente em instituições psiquiátricas sem fiscalização. Já nacionalmente, os retrocessos nas políticas de saúde mental acontecem no financiamento, que há mais de oito anos não recebe reajuste. Esses e outros fatores demonstram o descaso denunciado pela comunidade acerca da questão.

Um espaço importante de deliberação sobre políticas públicas de saúde, são as Conferências Especiais, convocadas pelo Conselho Nacional de Saúde. A Conferência de Saúde Mental deve ocorrer a cada quatro anos. Entretanto, em Santa Catarina, sua 4° edição ocorreu em 2010 e, somente agora, em 2022, foi realizada a 5° edição. Esse evento contribui substantivamente para as políticas de Estado para a saúde mental, álcool e outras drogas. Quando a conferência não ocorre, os reajustes e novas políticas são deliberadas indiretamente por membros dos Conselhos, normalmente gestores e profissionais de saúde, sem diálogo com a comunidade externa e com quem efetivamente usufrui dessas políticas.

Usuários das políticas públicas de saúde mental, como o CAPS, denunciam esse intervalo tão grande sem discussões. Durante a Conferência Estadual de Saúde Mental de Santa Catarina (CESM), realizada na última semana de junho, usuários e apoiadores colocaram suas opiniões sobre a problemática. Um deles foi Gabriel Amado, psicólogo redutor de danos e membro do Movimento População de Rua – SC:

Outro aspecto que a gente vem garantir aqui é a presença do usuário na construção das políticas públicas. Hoje a gente vê muitas instituições ocupando espaço desses usuários, o que não deixa de ser um movimento manicomial também. Porque no momento em que as instituições ocupam o lugar dos usuários, acontece um silenciamento.

Em Santa Catarina, desde as etapas municipais da Conferência, ocorrem denúncias sobre a participação massiva de gestores, profissionais da saúde e prestadores de serviço no lugar dos usuários.

“Eu percebi, nitidamente, que muitos crachás se identificando como segmento de usuários, não eram usuários, eram amigos de gestores, de vereadores… que nem sequer participaram de etapas municipais ou macrorregionais”, afirmou um delegado da Conferência na categoria de usuário. Em complemento, outra usuária também declarou que na etapa estadual houve baixa participação de usuários, ou interferência de pessoas que não são da categoria.

O silenciamento na elaboração das políticas influencia diretamente o cotidiano de quem vivencia transtornos e sofrimentos psíquicos. Para além da representatividade, a discussão sobre saúde mental precisa de recursos. Carla, usuária das políticas de saúde mental, ex presidente e membra da Associação Alegremente faz um apelo sobre a CESM:

Mesmo em espaços como esses, a gente ainda escuta falácias, como tiveram propostas de financiar a fiscalização em comunidades terapêuticas e em serviços hospitalares. Isso vai totalmente contra o que a gente quer, a gente não tem que financiar mais nada, tem é que retirar esses serviços. O que a gente quer é a rede, é um tratamento em liberdade.

Sandra Vitorino, membro da Coordenação Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Estadual de Saúde em SC, explica que há oito anos não há reajuste no financiamento da Rede de Atenção Psicossocial. As tabelas não foram corrigidas, mesmo com a inflação. A falta de visibilidade das pautas estende mais ainda essa problemática.

Além disso, existem situações hoje em Santa Catarina que contradizem a Reforma Psiquiátrica.

A Lei 10.216, de 2001, chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, proíbe a institucionalização permanente de pessoas em hospitais, institutos, asilos e outros locais desprovidos de recursos básicos como assistência integral sendo médica, psicológica, social, ocupacional e de lazer.

Sabrina del Sarto, antropóloga, pesquisadora em institucionalização psiquiátrica e doutoranda em Antropologia Social realiza um mapeamento de pessoas moradoras de hospitais psiquiátricos em condições permanentes. Segundo sua pesquisa, no Estado de Santa Catarina existem mais de 100 pessoas institucionalizadas que vivem dessa forma.

Sabrina também comenta que em muitas de suas visitas foram presenciadas situações de violência, medicação forçada e descaso com o lazer das pessoas institucionalizadas. Um ponto que ela destaca é que em um dos hospitais, havia mais de 30 pessoas morando no mesmo pavilhão.

É muito escondido isso, as pessoas acham que isso só existe em filme, em documentário, mas existe, é muito real. Mudou muito pouco, ainda tem contenção física, ainda tem injeção…

Sabrina del Sarto

Após 12 anos sem discussões, acontece a Conferência de Saúde Mental

Conferência Estadual de Saúde Mental em Santa Catarina (Foto: Ísis Leites)

O Conselho Nacional de Saúde, em dezembro de 2020, convocou a realização da 5° Conferência Nacional de Saúde Mental, que teve sua 4° edição em 2010. Isso contradiz a recomendação federal, que delimita o intervalo máximo entre conferências especiais em quatro anos. O prazo de realização das etapas municipais e estaduais é até setembro de 2022. Em Santa Catarina, a etapa estadual ocorreu na última semana de junho, dias 29 e 30.

A Conferência Estadual de Saúde Mental em Santa Catarina foi organizada pelo Conselho Estadual de Saúde. Ela teve como tema central “A Política de Saúde Mental como Direito: Pela defesa do cuidado em liberdade, rumo a avanços e garantia dos serviços da atenção psicossocial no SUS”. Segundo o regimento, a participação na etapa foi dividida em convidados e delegados, este último composto por três segmentos: profissionais da saúde, gestores/prestadores de serviço e usuários das políticas de saúde mental.

O intervalo de 12 anos entre a 4° e a 5° edição é considerado o maior intervalo já existente entre as conferências. Sandra Vitorino, membro da Coordenação Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Estadual de Saúde de Santa Catarina e organizadora da 5° CESM, declara:

Quando você tem um tempo tão longo assim de uma conferência para outra, você fica invisível. Nós não temos a visibilidade dos nossos problemas, de todas as coisas que estão acontecendo em relação ao desmantelamento e à essa inversão de modelo de políticas de saúde mental. Então não temos nem como ouvir as pessoas que fazem parte dessa política…

A Conferência Nacional de Saúde Mental está prevista para ocorrer em novembro de 2022. As principais pautas levantadas na etapa estadual de SC foram: o financiamento 100% público para políticas de saúde mental – como as Redes de Apoio Psicossocial, a qualificação dos profissionais e especialização das equipes que trabalham com saúde mental e o redirecionamento de verbas que vão para serviços privados – comunidades terapêuticas – para os públicos.

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