Reportagens

Em tempos de fast fashion, os desafios da moda sem gênero

A  industrialização dificulta o acesso a  roupas que se adaptem a diferentes formas de ser e de pensar

 

– Oi, onde que é o banheiro? – pergunta Fernanda.

A pessoa a sua frente coça a cabeça e parece hesitar, em dúvida.

– O masculino é aqui e o feminino é ali – aponta.

Situações como essa são comuns para Fernanda. Hoje, ela consegue levar numa boa. Diz que até gosta de gerar uma certa confusão. No entanto, compreende que isso só é assim, de certa forma mais simples, porque ela se identifica com o gênero com o qual nasceu. Define-se como “uma mulher sapatão”. Por isso, as camisas de botões, os sapatos comprados nas seções masculinas das lojas, as calças mais largas e o cabelo curto costumam causar o que, segundo ela, seria um certo “transtorno de gênero”.

Além desta experiência vivencial, Fernanda Nascimento da Silva é Mestra em Comunicação Social e Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) e sua linha de estudos se aplica à perspectiva do Jornalismo Cultural. Em 2015, ela lançou o livro Bichá (nem tão) má – LGBTS em telenovelas e atualmente é professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisadora explica que o gênero é uma das formas de organizar as relações de poder do mundo. Por isso, atribuem-se características aos gêneros, e é esperado que as pessoas se ajustem a essas características, mesmo que, segundo Fernanda, ninguém consiga suprir todas as expectativas do gênero. Além disso, a professora esclarece que a realidade é organizada  em masculino e feminino, inclusive as roupas.

“Eu passei toda a minha infância tendo que me vestir de uma determinada maneira, porque os meus pais entendiam que meninas se vestiam assim”, lembrando quanto tempo levou até que conseguisse se vestir como queria. Mesmo considerando ter sorte de calçar 38, um número que os sapatos masculinos abrangem, ela só encontrou seu item preferido – as camisas -, no estilo que desejava e por um preço acessível, depois de muita procura.

O item preferido do guarda-roupa de Fernanda são as camisas, peças que encontrou como queria depois de muita procura. Foto: Maria Clara Flores
O item preferido do guarda-roupa de Fernanda são as camisas, peças que encontrou como queria depois de muita procura. Foto: Maria Clara Flores

Ao contrário de Fernanda, Nicolas não tem a mesma sorte com sapatos – seus pés 42 raramente cabem nos calçados femininos. Mas, assim como Fernanda, ele encontra desafios para se vestir como quer. Nico é o apelido de Nicolas Rodrigues. O estudante de Letras na UFSC, gosta de misturar os gêneros das roupas que usa. Há pouco tempo foi até uma loja e comprou uma saia, um item que tinha muita vontade de usar, mas sempre hesitou antes de tomar a decisão, principalmente porque considera ser muito difícil “cruzar a linha” do masculino e feminino: “Eu acho que eu fico muito bonito numa saia, mas eu sempre sinto olhares. Não tanto aqui na faculdade, mas no curto caminho que eu faço até a minha casa”.

O “cruzar a linha” para Nicolas, além de ser um desafio no campo dos costumes é, ainda, um desafio material. Em visita a uma loja de departamento em um shopping de Florianópolis, pôde transitar entre as seções masculina e feminina, tendo cada uma seus inconvenientes. Caminhando pelos corredores da seção feminina, macaquinhos e macacões, calças pantacourt e croppeds chamam sua atenção. Entretanto, antes de levar as peças para provar, se preocupa em escolher o tamanho certo, pois considera as roupas da seção feminina muito pequenas e com corte difícil de encaixar num corpo masculino. Por esse motivo, sempre opta pelas maiores numerações. Já com as roupas no braço, chega o segundo momento de aflição. Para experimentar as peças, ele se questiona qual provador é o mais adequado: o feminino ou o masculino. Optando, desta vez, pelo masculino, prova um macaquinho amarelo florido que o agrada muito, mesmo sendo uma numeração maior do que escolheria na parte masculina da loja.

Nicolas se espanta ao passar da seção feminina para a masculina. “É tudo tão monocromático”, indicando as roupas em tons de azul, preto e marrom.  Ao andar pela loja, encontra somente algumas camisas masculinas com estampas que usaria, mas o macaquinho que provou continua sendo a escolha preferida do dia. Nicolas percebe a importância que a escolha da vestimenta representa na sua comunicação com a sociedade. “Quando eu uso a roupa que eu quero porque eu quero é muito bom, já que é uma parte minha, da minha identidade que está ali”.

Hoje, Nicolas se sente mais confortável em usar saia, sobretudo no ambiente universitário. Foto: Maria Clara Flores
Hoje, Nicolas se sente mais confortável em usar saia, sobretudo no ambiente universitário. Foto: Maria Clara Flores

“Moda é comunicação, porque é a forma de cada pessoa expressar sua subjetividade e suas maneiras de estar no mundo” destaca Daniela Novelli, professora de Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC. Nesse sentido, explica que a mídia possui diversos agentes difusores de moda, como as revistas de moda, modelos, atores e atrizes. “O mundo das celebridades, da televisão e da música contam enormemente”.

Rafael Losso está inserido nesse mundo. O ator representou um personagem na novela O Outro Lado do Paraíso, exibida até maio de 2018 na Rede Globo. Na ficção, ele representava um garimpeiro que seguia o estereótipo de masculinidade, entretanto, na vida real, sua personalidade é distinta. Com essa convicção, já fez diversas aparições na mídia usando uma peça difícil de ser encontrada no guarda-roupa tradicionalmente masculino: a saia. Rafael acredita que cada pessoa deve ser autêntica, sem mudar a si mesma por receio de ser avaliada e criticada.

Rafael Losso na festa de lançamento da novela O Outro Lado do Paraíso. Foto: Reprodução Instagram @lossorafael
Rafael Losso na festa de lançamento da novela O Outro Lado do Paraíso. Foto: Reprodução Instagram @lossorafael

“Nunca liguei muito para o que os outros iriam achar”,  explica Rafael  que faz uso da saia há dez anos por questão de conforto e estilo. Ele vê uma mudança nos padrões sociais e essa transformação se reflete, também, nas roupas. “Mais homens estão tomando coragem e saindo com saias por aí”. Ele lembra das vezes em que usou a peça publicamente, como no programa Encontro com Fátima Bernardes e no lançamento da telenovela.

Nem sempre as roupas exerceram um papel tão crucial na distinção de gênero. Durante a Idade Média, no período do século XIV, as vestimentas eram semelhantes para homens e mulheres e consistiam em duas ou três túnicas ou togas. A diferença se encontrava no comprimento. Para os homens, poderiam ter comprimentos variados, para as mulheres, eram sempre longas. Com o tempo, as roupas começaram a refletir uma crescente divergência entre a aparência feminina e masculina, e esse processo se acentuou com a primeira Revolução Industrial, no século XVIII, que acelerou e intensificou quantitativamente a produção.

O comércio de moda pronta em tamanho padrão já existia desde o século XVI para acessórios mas, durante a Revolução Industrial, passou a incluir trajes completos. Assim, houve a massificação da produção de itens populares, acelerando os ciclos de moda. Neste período surgiu  outra diferenciação. Antes, tanto as roupas femininas quanto as masculinas eram feitas por alfaiates, no entanto, a partir de 1670, as costureiras passaram a produzir para as mulheres. Nos séculos seguintes, as transformações sociais e culturais que ocorreram no mundo tiveram forte impacto no estilo das roupas, e na maneira como elas passaram a ser produzidas. A crescente indústria da moda passou a valorizar a subjetividade dos consumidores. De acordo com Daniela, “a indústria buscou atender a necessidade de auto-expressão da era pós-moderna, bem como a demanda de consumidores ávidos por novidades, tornando-se portanto cada vez mais acelerada”.

Essa moda acelerada é o que hoje se conhece como fast fashion em português, moda rápida, que teve início na década de 1970, nos Estados Unidos e na Europa. Quando os países capitalistas passaram pela Crise do Petróleo, a indústria da moda precisou escoar a produção e o fast fashion surgiu como uma alternativa, transformando a moda contemporânea em um sistema que Daniela classifica como “global, circular e em espiral”. O funcionamento se baseia na demanda. As roupas mais procuradas pelo público são produzidas em larga escala e em qualidade inferior, de peças semelhantes às lançadas por grandes marcas. Além dessa característica, a professora destaca outros elementos da moda rápida, como a produção baseada em ciclos de vida mais curtos, a forte segmentação de público-alvo, a grande variabilidade de produtos, a maior lucratividade e a informação de tendências de moda.

Em oposição à indústria fast fashion, surgem no mercado nichos que procuram abranger uma maior diversidade de corpos e identidades, com a produção de roupas sem gênero. Daniela, que possui especialização em Criação e Produção de Moda, exemplifica algumas características dessa proposta de “desgenerificação”, que tendem à neutralidade: os cortes retos e fechados, a atmosfera conceitual, futurista, minimalista, o uso de preto, branco e cinza, e a ressignificação das silhuetas.

No Brasil, a marca Pangea Brand desponta neste nicho. Produzindo roupas consideradas sem gênero, busca criar um território livre de significados, com modelagens que se adaptam aos corpos masculinos e femininos. “A partir do momento em que não trabalhamos com uma moda engessada, com padrões, abre-se um horizonte para a livre experimentação e expressão e isso aumenta mais ainda a possibilidade de inclusão daqueles que antes não se encaixavam”, destacam seus criadores, Yagdà Hissa e Nilo Lima Barreto.

A nova coleção de roupas sem gênero da Pangea. Foto: Reprodução Instagram @pangea_brand
A nova coleção de roupas sem gênero da Pangea. Foto: Reprodução Instagram @pangea_brand

A ideia de criar a Pangea Brand surgiu no Trabalho de Conclusão de Curso de Design de Moda da Universidade Federal do Ceará (UFC) de Yagdà e Nilo. Eles perceberam a dificuldade de uma parcela da sociedade em comprar as roupas desejadas, e o desconforto que buscar por peças em outras seções pode causar em algumas pessoas. A marca se propõe a repensar as questões de gênero em sua produção. “Atualmente com debates sobre expressão e identidade de gênero fervendo por todo mundo, a moda agênero se posiciona não como uma tendência que passa, mas sim como um discurso político de liberdade, diversidade e respeito a todos”.

Inovar também é a proposta da marca brasileira Trendt, idealizada por Renan Serrano. Seu trabalho ganhou destaque na mídia por aliar moda e tecnologia de maneira inusitada, produzindo, ainda, peças agênero. Desde 2011, investe anualmente 35% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento, inserindo, pela primeira vez, o Brasil no ranking de inovação na área de têxtil e moda. As roupas desenvolvidas são tanto masculinas quanto femininas. Para ele, essa estética é “neutra e não utiliza signos presentes em nosso repertório, permitindo que o usuário se expresse conforme seu gênero, idade e classe social”.

O designer relata que nunca conseguiu escolher um tema ou tendência para trabalhar, pois sentia que todos eram efêmeros e ecologicamente incorretos.  “Percebi que eu tinha que ter algo a mais além do design”, assim surgiu a ideia de fazer de sua marca uma plataforma de solução dos problemas da indústria têxtil. Por esse motivo, é apelidado de hacker da moda. “Eu entro no sistema da moda, jogo o jogo como ele é, e, uma vez dentro do fluxo, eu observo as falhas. Nas falhas existem novas oportunidades”.

Para Renan, a Trendt é esse estudo de contra-forma, de como a roupa influencia no ambiente, nas opiniões e como pode prototipar soluções. De maneira oposta à Fast Fashion, suas coleções levam cerca de três anos para entrar no mercado. “Estou construindo uma história baseada em consistência, razão e propósito”. Dessa forma, ele conseguiu reduzir seu volume de produção, proporcionando maior qualidade de vida para todos os colaboradores e mais tempo para aprimorar técnicas. Ele declara que, nesse modo de produzir, “a questão gira em torno do nosso potencial transformador e não de resultado financeiro”.

Peças da Trendt. A marca tem uma forma diferente de produção. Foto: Nicole Auge e Renata Correa.
Peças da Trendt. A marca tem uma forma diferente de produção. Foto: Nicole Auge e Renata Correa.

Este mercado ainda tem muito potencial para crescer. Nicolas, por exemplo, é um possível cliente, mas, quando questionado sobre seu conhecimento acerca de roupas sem gênero e de marcas com propostas diferentes, ele, com os cotovelos apoiados na mesa, pensa um pouco e responde:

  • Nunca vi, e também nunca ouvi falar sobre isso.

Ainda assim, se mantém otimista, acreditando que, com o passar do tempo, as roupas não serão mais critério de distinção de gênero, e que as dificuldades enfrentadas hoje nas seções femininas serão resolvidas. Dessa forma, quem sabe – ele supõe -, estará comprando não um padrão ou dois, mas uma roupa que o represente.

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