O partido antes do partido

Reportagem de Gabriel Iwood

No início de outubro de 2019, diversos projetos da UFSC foram exibidos na frente da Catedral Metropolitana de Florianópolis e eu estava lá fazendo a cobertura do evento. Em várias mesinhas, de baixo de uma estrutura de lona, divulgava-se o que é feito na universidade. O objetivo era legitimar a greve estudantil que protestava contra os cortes do Governo Federal na Educação. Em um momento de descanso, sentei-me na escadaria para assistir ao movimento dos expositores. Foi quando uma moça animada se aproximou com um jornal. “Oi, posso apresentar o ‘A Verdade’”?

Já havia visto outras pessoas do grupo abordando pedestres naquele dia e fiquei curioso. Não pelo jornal, senão que pela razão que os fazia estar ali. A moça animada se chamava Laís. Ela me contou que a publicação estava ligada a um novo partido, chamado União Popular pelo Socialismo.

Fiquei mais interessado ainda por aquela história: no tempo do apartidarismo e repulsa popular a essa forma de organização, tem gente se esforçando para criar um movimento nesse modelo! Conversamos um pouco a respeito e ela pegou o meu número. Dias mais tarde, começou a divulgar eventos desse novo partido pelo WhatsApp. 

Quando comecei a escrever essa reportagem, fui atrás dela para tentar uma entrevista. Laís, então, me indicou a presidenta do partido aqui no estado: Júlia Andrade Ew, 22.  

Gaúcha de Porto Alegre, Júlia veio a Florianópolis quando passou no vestibular para cursar Psicologia na UFSC. No entanto, seu interesse pela polítca veio bem antes. Criada em uma família evangélica, desde bem nova era questionadora. A igreja foi seu primeiro objeto de crítica. 

Já afastada da religião, aos 16 anos, ganhou de presente o “Manifesto do Partido Comunista”, de Friedrich Engels e Karl Marx. Esse livro foi a fagulha que faltava para que explodisse dentro dela a vontade de fazer política. A fim de colocar em prática todo esse interesse de fazer a diferença, Júlia foi conhecer a Ocupação Lanceiros Negros.

Mostrando a contradição em sua essência, a ocupação ficava num prédio histórico de um antigo hotel no centro da capital do Rio Grande do Sul, muito próxima ao palácio do governo. Júlia conta que aquele lugar destoava completamente de seu redor. “Era uma verdadeira comuna!”, diz com um ar de nostalgia. O espaço era formado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), uma das organizações que compõem a Unidade Popular pelo Socialismo. “Conheci o partido pela sua prática, não pela sua retórica”, o que ela afirma ter sido decisivo para uma escolha que viria mais tarde.

Sem fazer parte de movimento político algum e já vivendo na capital catarinense, Júlia decidiu que parte de sua graduação, que já estava na metade, seria feita em um intercâmbio no exterior. O lugar não poderia ser outro: Cuba. Após um semestre em Pinhar do Rio, no oeste da ilha, a porto-alegrense voltou impactada. “Fiquei 6 meses sem ver gente morando na rua. Quando voltei, a primeira coisa que vi na rodoviária foi um monte de gente no chão. Uma coisa insuportável!”, conta inconformada.

Ela estava convicta a fazer algo para mudar aquela situação, e a maneira mais correta, a partir do que havia aprendido no país caribenho, era dentro de um partido político. Na hora de escolher qual seria essa organização, ela lembrou da Lanceiros Negros, em Porto Alegre. A Unidade Popular pelo Socialismo era o lugar certo. Só havia um problema: a UP ainda não estava regularizada enquanto partido político. Era necessário fazer isso do zero. 

Além da MLB, a união de diversos outros movimentos sociais do país todo integram o partido muito antes que ele pudesse usar esse título regularmente. Durante as eleições, essas pessoas sentiam que tinham de votar naquele candidato que mais se aproximasse (ou que menos se distanciasse) dos seus ideais. Por isso, o desafio de conseguir 100 mil assinaturas, conforme exigia a lei eleitoral para um regularizar partido, era grande mas valia a pena. 

Em mutirões que eles chamam de “brigadas”, centenas de militantes foram às ruas, entre 2014 e 2015, para convencer as pessoas de que valia a pena a criação de um novo partido no período de ápice do anti-partidarismo no Brasil. Muitos “nãos’ e 100 mil assinaturas depois, era momento de aplicá-las no Tribunal Superior Eleitoral para, finalmente regularizar o partido. Porém, a UP teve seu primeiro grande revés de sua jovem história.

A lei eleitoral mudou naquele período e todas as assinaturas conquistadas foram invalidadas. “A gente tinha um ano do início da construção da UP e a gente levou esse golpe”, relembra Júlia.

Ver o trabalho descer pelo ralo não foi fácil, mas serviu de motivação para continuar tentando. A nova lei ainda obrigava a conquista de assinaturas, mas agora era necessário conseguir 500 mil delas em um período de 2 anos. “E não  é um abaixo assinado. É um formulário, onde a pessoa coloca seu nome, nome da mãe, título de eleitor…”, explica a estudante sobre a complexidade daquele documento.

Os militantes da UP seguiram em frente no novo desafio. “Muita gente indo 5 da manhã nas fábricas para convencer os trabalhadores que eles têm de ter o seu próprio partido”, recorda. Entre setembro de 2016 e setembro de 2018, eles conseguiram juntar mais de 1,2 milhões de assinaturas, mais do que superando a meta.

No dia da nossa conversa, o processo de regularização ainda estava tramitando no TSE, onde já estava tudo certo para que eles pudessem finalmente comemorar. Entretanto, um dos ministros que analisa o processo pediu vista e atrasou mais um pouco a realização do sonho de ter a UP regularizada. “Essas coisas têm o seu tempo. A qualquer momento, podem chamar a sessão que eles aprovam a legalização”, diz com toda tranquilidade. 

A paciência com que Júlia relata essa espera me passa a sensação de que, de fato, a UP não precisa ser oficializada para viver. Ela existe bem mais nos movimentos que a compõem do que num documento. “A política institucional é mais uma das trincheiras onde a gente pretende travar nossas lutas”, esclarece.

A mesma paz de espírito aparece quando ela fala do momento atual e das perspectivas de futuro. “Vejo, em muitos partidos de esquerda, gente dizendo que estamos vivendo uma depressão coletiva, que o povo decepcionou… A gente tem a serenidade de entender que não é assim que funciona a política”, comenta esperançosa. 

Para ter candidatos nas próximas eleições municipais, a UP deve estar legalizada até abril de 2020*. Júlia pode ser estar entre as candidatas, se assim decidir o partido decidir. No entanto, como vimos com outros entrevistados, a nova geração da política entende que a política não se resume à busca por mandatos.

*[No dia 10 de Dezembro de 2019, a Unidade Popular pelo Socialismo, partido de Júlia, teve seu registro aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral]