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O março que nunca acabou: como a pandemia afetou a economia nos arredores da UFSC

Reportagem de João Scheller

Como muitos outros estudantes, Gabriela Verardi se mudou do interior do Rio Grande do Sul para Florianópolis por conta da faculdade. Ela veio estudar Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina e, logo que chegou, começou a procurar um trabalho para conseguir se sustentar na capital. Ela fazia parte da equipe do bar karaokê The Church, no bairro Trindade, que há poucos meses começara suas operações nos arredores da universidade. Trabalhava de noite e estudava durante o dia. A rotina apertada, com o expediente seguindo madrugada adentro, já havia feito a estudante trancar a faculdade. Com o trabalho como única atividade que a mantinha na capital, os impactos trazidos pela pandemia, com diversos negócios tendo que encerrar suas atividades da noite para o dia, foram ainda mais significativos.

Em março de 2020, as notícias de que o novo coronavírus se alastrava pela Europa tinham feito Gabriela ligar o sinal de alerta. O The Church era o local perfeito para a propagação do vírus: ambiente fechado, utilização de microfones compartilhados, mesas próximas umas das outras. “Numa falsa esperança a gente remodelou o negócio, tentamos fazer uns hambúrgueres para vender via delivery, mas não durou muito. Assim como a gente, muitos outros estabelecimentos fizeram o mesmo e acabou não dando certo”, explica Artur Marangoni, um dos sócios do empreendimento. Quando recebeu a notícia do seu desligamento, Gabriela começou a chorar. Ligou para mãe e tentou desenhar o que poderia fazer num futuro incerto, onde a pandemia continuava descontrolada e as perspectivas econômicas do país se mostravam cada vez piores. “Quando eu vi que era uma coisa que ia se estender por muito tempo achei melhor voltar para casa”, comenta. Gabriela voltou para Guaporé, no Rio Grande do Sul, e agora tenta se recolocar no mercado de trabalho.

Marangoni diz que sete demissões foram realizadas com o fechamento do bar, o qual não tem mais previsão de retomar suas atividades. O outro empreendimento do qual é sócio, o restaurante mexicano Moochacho, conseguiu se sair melhor na transição de modelo de negócio presencial para o delivery. Nenhuma demissão teve que ser feita na unidade do estabelecimento no bairro da Trindade, com os funcionários sendo realocados para outras funções referentes ao atendimento por entregas. A receita vinda das vendas feitas nesse modelo saltou de 40% do faturamento do restaurante, para os atuais 80%.

O aumento se deu mesmo com as dificuldades enfrentadas pelos sócios coma adequação das vendas por meio de aplicativos de entrega. O jeito foi continuar nos aplicativos, mas sem a utilização dos motoboys da rede, mantendo uma parte maior dos lucros.

“Começamos a fazer delivery com entregador próprio, porque essas plataformas – iFood, Uber Eats, Rappi – cobram uma taxa absurda.”

Gabriela Verardi (camiseta cinza) e Artur Marangoni (agachado) juntos de outros funcionários e sócios do The Church na semana de inauguração do bar, em 2019. O negócio faliu por conta das consequências econômicas da pandemia. (Arquivo Pessoal)

As taxas cobradas pelos aplicativos de entrega chegam a próximo de um terço do valor de venda, de acordo com Naiane Lecheta, sócia do café Deli, também localizado nos arredores da universidade, no bairro da Trindade. “A gente tem um lucro de 5, 10%. A nossa conta não fecha”, comenta ao explicar como o café tentou se adequar às restrições da pandemia. Lecheta explica que tentou diversos tipos de ações de promoção da marca nas redes sociais, desde postagens patrocinadas até cupons de desconto, além vouchers para quando o período de quarentena passasse.

Mas nada surtiu efeito. Com as vendas em baixa e um cenário de incerteza pela frente, a opção foi fazer a fusão da empresa com uma nova sócia, a fim de manter a cafeteria aberta por mais tempo. Lecheta diz estar mais tranquila com relação ao futuro do café depois das mudanças realizadas, mas mesmo com a nova divisão societária, a pandemia continua afetando fortemente os negócios da empresa. Atualmente, o faturamento da loja é de cerca de 50% do existente antes de março.

Enquanto para alguns o setor de entregas não funcionava tão bem, para outros se mostrou como um trunfo ainda não explorado. É o caso de Nyce Maria Gomes, dona de uma papelaria que leva seu nome, no bairro da Trindade. Ela viu suas operações terem que se transplantar para o ambiente virtual. As vendas por WhatsApp e Instagram surgiram como uma opção para a receita fortemente afetada pela diminuição abrupta do número de pessoas na região.

“A gente ficou um mês fechados, sem faturar. Foi um rombo bem grande”

Com renegociação de contratos de aluguel e o investimento nas vendas via redes sociais, Gomes não precisou demitir nenhum de seus quatro funcionários e agora tenta readequar as operações ao novo modelo. “Tem semanas que tem muito faturamento via WhatsApp, tem outros que tu faz uma venda só”, explica em tom de desconfiança, como quem ainda está aprendendo a utilizar a nova ferramenta. “A tecnologia tá aí, mas temos que correr junto com ela”, completa.

Desde o dia 16 de março, as aulas presenciais na UFSC estão suspensas. O mais recente posicionamento da instituição indica que as aulas do segundo semestre de 2020 continuarão a ser realizadas de forma on-line, pelo menos até maio de 2021. (João Scheller)

Durante a pandemia, ações em diferentes esferas do governo foram implantadas para tentar diminuir os impactos econômicos sofridos pelo empresariado. O governo federal, por conta da maior flexibilidade dos gastos orçamentários, concentrou o maior número de ações neste sentido. Por meio da Medida Provisória 936/2020, foi permitido aos empregadores a suspensão temporária dos contratos de trabalho por até dois meses. Além disso, a MP também previa a possibilidade de redução de jornadas e salários proporcionalmente, em 25, 50 ou até 70%. Parte do salário dos trabalhadores afetados seria paga pelo Estado, usando como base o valor do seguro-desemprego.

As medidas apresentadas representaram um alívio para aqueles que viram, do dia para a noite, parte considerável ou até mesmo integral da sua clientela desaparecer. Relatório da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Santa Catarina (Fecomércio SC), realizado em parceria com a Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SC (Sebrae SC), aponta que até julho deste ano, cerca de 43,3% das empresas com funcionários utilizaram algum dos acordos previstos da MP 936/2020. Para Artur Marangoni, do restaurante Moochacho, a MP foi o principal meio de se evitar demissões logo após o período de restrição dos atendimentos presenciais. “A galera ficou de casa, recebendo parte do salário pelo governo, porque tínhamos a esperança de retornar as atividades em breve, o que acabou não acontecendo”, explica.

Além das possibilidades previstas na Medida Provisória, o governo permitiu ainda um prazo maior para a declaração do Simples Nacional (imposto pago por microempreendedores individuais), parcelamento do Fundo de Garantia de funcionários e mudanças na estipulação de férias e feriados. Ainda no âmbito Federal, após aprovação no Congresso, o governo disponibilizou o auxílio emergencial de 600 reais com foco nos trabalhadores informais. Com o tempo, o programa foi prorrogado e acabou atingindo cerca de 66 milhões de pessoas, segundo dados do Ministério da Cidadania, o que equivale a cerca de 31% da população do país. Ao mesmo tempo que o auxílio chegava a cada vez mais pessoas, o empresariado continuava com poucas opções de crédito, principal queixa da classe para a manutenção dos negócios.

“A gente tentou [contrair empréstimo] de todas as formas. Abrimos conta em todos os bancos”, afirma Naiane Lecheta, do café Deli.

Ela explica que a maior parte dos programas focava em empresas de porte muito menor do que o Deli, o que dificultava muito a contração de crédito. O relatório da Fecomércio SC aponta que, até meados de julho, pouco menos da metade de todas as empresas do estado tentavam contrair algum tipo de empréstimo durante a pandemia. Destas, cerca de 30% não tinham sucesso na obtenção de capital.

Em meio a esse cenário, a Prefeitura de Florianópolis investiu no incremento do programa Juro Zero. Por meio dele, microempreendedores individuais e microempresas já podiam contrair 3 mil e 5 mil reais, respectivamente, em empréstimos disponibilizados pela própria PMF. Na nova versão do programa, os beneficiários tinham até 3 meses para pagar a primeira das 12 parcelas do programa e, caso quitassem todas em dia, obtinham um abono nos dois pagamentos finais. “Então na realidade a pessoa está contraindo um crédito a juro zero”, explica o Secretário de Turismo e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico da prefeitura da capital, Juliano Pires. A ampliação do programa também passou a permitir que empreendedores que já tivessem participado do Juro Zero pudessem requerer novas rodadas de empréstimo junto à prefeitura.

Já no âmbito estadual, cerca de 44 milhões de reais do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) foram disponibilizados em recursos para cerca de 500 empresas. Houve ainda prorrogação no recolhimento de tributos e disponibilização de 50 milhões de reais em forma de linha de crédito emergencial da Agência de Fomento de Santa Catarina (BADESC). Mesmo com todo o investimento governamental, só até a metade do ano, cerca de 36,7 bilhões de reais foram perdidos pelo comércio catarinense em decorrência da pandemia, de acordo com a Fecomércio SC. O que equivale a cerca a mais de 8% do Produto Interno Bruto do estado.

Essas dificuldades observadas em Santa Catarina podem ser constatadas no próprio comércio da região da UFSC. No bar Desembargador, no bairro da Trindade, por exemplo, a queda nas vendas fez com que somente quatro, dos 16 funcionários que trabalhavam no estabelecimento, mantivessem seus postos de trabalho depois dos primeiros meses da pandemia. “Afetou muito o funcionamento, principalmente no começo”, explica Paulo Caleb, um dos sócios do bar. Ele afirma que grande parte do público frequentador vinha da universidade e, com as restrições no atendimento presencial, foi impossível não realizar demissões. Segundo dados da seccional catarinense da Associação de Bares e Restaurantes, desde março até meados de setembro, cerca de 31% dos postos de trabalho no setor foram encerrados no estado e uma em cada cinco empresas do ramo fechou as portas durante esse período.

Caminhando pelas ruas do entorno da universidade fica claro o impacto trazido pela pandemia nos negócios da região. Bairros formados nos arredores da instituição passaram, do dia para a noite, de centros que pulsavam com a presença universitária para modestos redutos comerciais. Os olhos de Rogério Marsano refletem essa realidade. Sentado em sua pequena mesa, o dono da banca Página 1 fica de frente para o movimento de uma das ruas mais agitadas da região, a então sempre cheia Deputado Antônio Edu Vieira, no bairro Pantanal. Sentar de frente para a rua talvez não seja a melhor das ideias, porque força lembranças de tempos em que a clientela ainda era presente. Se para muitos o negócio de Rogério estaria fadado ao fracasso, com o crescente número de leitores digitais e o desinteresse das novas gerações às notícias impressas, para ele isso era questão de adaptação.

Tratou de instalar três computadores dentro do pequeno espaço e oferecer, além da ampla gama de jornais e revistas, opções de impressão e fotocópia. Mesmo assim, Rogério faz questão de frisar “estudante também lê, também precisa saber das notícias”. Não só os estudantes, mas também os professores. Ele garante que seu negócio se sustentava, tinha até uma funcionária para ajudá-lo com os serviços prestados. Isso até a chegada de um vírus que há poucos meses nem a ciência conhecia.

Sem a presença dos alunos na região, a banca de Rogério Marsano corre riscos de fechar em definitivo.
Dados da Fecomércio SC apontam queda média de metade do faturamento no setor de serviços no estado. (João Scheller)

Enquanto a reportagem caminha pelo bairro, em meados de outubro, é acompanhada pelos olhares de estranhamento de muitos comerciantes. O movimento de pedestres não é mais tão volumoso quanto no início de março, muito menos de pedestres munidos de papel e caneta à mão. Alguns, mais ressabiados, fecham a cara, desviam o olhar. Mas outros, como o Rafael Augusto, fazem o oposto. O dono da Barbearia do Rafa, a primeira vista trata de acenar, como se dissesse estar disponível. No primeiro contato o olhar dele não esconde a frustração ao perceber que não procuramos um local para corte de cabelo ou de barba, apenas informações sobre a situação do comércio na região. O jovem barbeiro deixa então o ar entusiasmado de lado e com a respiração pesada aceita contar um pouco do que tem passado com a diminuição na quantidade de clientes na região.

“Começou na Itália, a gente viu o rolo que deu. A cabeça do cara já se preparou”, admite em tom de desabafo. Rafael viu a clientela de seu estabelecimento cair mais da metade, da noite para o dia. Se a todos surpreendeu a velocidade com que os decretos de fechamento do comércio ocorreram na cidade, para os próprios comerciantes a medida foi ainda mais chocante. A Prefeitura de Florianópolis não permitiu o funcionamento de estabelecimentos comerciais desde a semana do dia 16 de março de 2020 até meados de abril. Pegos de surpresa, muitos comerciantes viram sua fonte de renda evaporar sem perspectiva de retorno. Mesmo com a flexibilização das medidas sanitárias a situação ainda é muito diferente da original. Rafael lembra que atendia alunos, professores e moradores da região com frequência, mas a chegada da crise sanitária e econômica fez com que a clientela se distanciasse.

“Todo mundo começa a gastar menos. Quem vinha de quinze em quinze dias, vem uma vez por mês, por exemplo.”

Isso quem ainda vem. O barbeiro afirma que o número de clientes caiu pela metade, em comparação ao período antes da pandemia. Junto com o movimento, cai também a receita. Pelo menos metade de seu faturamento evaporou, assim como a presença dos alunos e professores na região. A realidade vivida por ele é a mesma da maioria dos empresários do setor. Dados da Fecomércio SC apontam queda de cerca de 50% da receita em vendas do setor de serviços, até pouco depois da metade do ano. No caso de Rafael, ele até conseguiu renegociar o aluguel do ponto, o que aliviou um pouco a situação financeira do estabelecimento. Mesmo assim, não foi o suficiente para acertar as contas da barbearia, que ainda sofre com a diminuição da clientela.

Enquanto nos conta sobre a situação enfrentada, ele alterna olhares. Com ar de cansaço, conversa enquanto observa as cadeiras, espelhos e decoração moderna do salão vazio. Quando fala sobre as perspectivas futuras, tenta não desanimar. Logo emenda uma informação positiva, sem se deixar abater. “A gente toma todos os cuidados, passo álcool em gel, uso máscara”, justifica ao dizer que está de volta à ativa e atendendo. Em modo multitarefa, Rafael continua a observar os pedestres enquanto conversa com a reportagem, para não perder nenhum cliente em potencial. Ao fim, entrega um de seus cartões de visita e nos convida a vir à barbearia se precisarmos. “Temos WhatsApp, Instagram…”.

O comércio numa das principais vias nos arredores da UFSC, no bairro Pantanal, sofre com o baixo número de clientes. (João Scheller)

Os olhos de Rafael contrastam com os de Rogério, da Página 1. O olhar cansado e a respiração pesada parecem indicar que ele estava cheio de tudo aquilo. Rogério abre seu estabelecimento todos dias sem ganhar um centavo de lucro. Ele tem pago para trabalhar desde março, mantendo a banca aberta pela manhã somente para não se dar por vencido. Na fachada pode-se ler, “Revistaria Página 1, desde 1997”. Rogério começou a atender ali, ao lado da rótula de carros em frente à Eletrosul, com a fachada de cara para movimentada Edu Vieira, antes mesmo que a maioria dos estudantes que atende tivesse ao menos nascido. “Desânimo”, ele afirma com ar de pesar.

Além do desânimo, outro sentimento que parece fazer parte da rotina dos comerciantes da região é a impotência. Na tarde de novembro em que a reportagem conversava com Naiane Lacheta, do café Deli, a UFSC anunciava que as atividades presenciais na instituição seriam prorrogadas, pelo menos, até maio de 2021. Ao comentar a notícia, Lacheta respondeu sem muita surpresa, como se já esperasse que pouco iria mudar no decorrer dos próximos meses. Já a situação de Rogério é mais crítica. Alternando entre respostas monossilábicas e mais densas, ele deixa claro o seu cansaço. Tenta de tudo para continuar, suspendeu o contrato de sua única funcionária e já a deixou ciente que provavelmente terá que reduzir o salário pelo tempo permitido pelo governo e, por fim, demiti-la. De acordo com ele, se as aulas não voltarem no próximo semestre, a Página 1 será fechada. Pelo que tudo indica, será o fim de um extenso capítulo, de mais de 22 anos.

Reportagem produzida para a disciplina Apuração, Redação e Edição IV, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profa. Dra. Maria Terezinha da Silva

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