Reportagens

O cotidiano das mulheres que pedalam

Reportagem por Bruno Rosa Ramos e Jade Kalfeltz

Queridinha de muitos, a bicicleta ocupa espaço fundamental na vida de algumas mulheres. A lazer ou a trabalho, é pedalando que elas redescobrem o mundo.

Foto: Ana Lúcia

No disputado metro e meio direito da Madre Benvenuta, avenida principal do bairro Trindade, em Florianópolis, pedala uma moça de mochila nas costas e calça jeans. Seus cabelos castanhos dançam no vento. Presa ao bagageiro uma caixa branca faz a vez de cesta. Nela vai uma pasta A3, daquelas que estudantes de arquitetura usam para guardar seus projetos, e um casaco cinza, com uma das mangas do lado de fora, transbordando a caixa. Há uma faixa de pedestres logo a frente e ela quer cruzar exatamente ali, onde do outro lado inicia a ciclovia da avenida. Olha para trás esperando que algum carro lhe dê passagem e de pronto surge uma oportunidade. Suas mãos manejam o guidão. Gentilmente, a roda perde sua verticalidade; o corpo – os corpos – acompanham o movimento. A bicicleta está pronta e encara a travessia.

Naquele instante toda a rua é cruzada por uma única mulher de bicicleta. Talvez de cara não se faça perceber, mas são vários os motivos que levam uma mulher a atravessar a rua de bicicleta. Para Aline, é libertador que seja simples o ir e vir, não se tornar refém do tempo e da rotina de um ônibus. No caso da Nátali, se ela tivesse que fazer de ônibus o trajeto da faculdade para o estágio, todos os dias chegaria atrasada em ambos. Fora o dinheiro que iria gastar com passagens. “Tem lugares e horários que sinto medo de ir a pé e sozinha, me sinto vulnerável a algum ataque ou assalto. Na bicicleta eu vou mais rápido, creio que não sou vista como um alvo tão fácil pra alguém mal intencionado”, conta Aline.

Ambas usam a bicicleta para se locomover pela cidade, ir a casa amigos, bares, compromissos de trabalho e estudo, para o lazer em geral. Como elas, diversas mulheres passaram a pedalar e assim refizeram seu cotidiano. Não somente porque o ir e vir se tornou mais simples, mas porque na bicicleta um sentimento de independência foi criado. Sentimento este que perpassa o tempo, cativando mulheres novas e também mais velhas, já mães e avós.

“Ao socialismo se vai de bicicleta”

Frase de autor desconhecido, conquistou fama na Europa graças aos curiosos vínculos da bicicleta com os movimentos sociais. A popularização do veículo data do final do século XIX — época da Revolução Industrial — e se estende ao século XX, se tornando comum entre a classe operária. Sua popularização também facilitou o engajamento de mulheres nos movimentos feministas: com uma uma bicicleta, elas não dependiam mais de seus maridos para se locomover, além de poder se reunir com outras mulheres sem a presença deles.

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As roupas femininas também passaram por alterações, o que facilitou o ato de pedalar. Espartilhos, saias e vestidos volumosos foram substituídas por calças e roupas mais confortáveis, mudança que incomodou a sociedade tradicional da época. Essas transformações que a bicicleta proporcionou foi percebida pela feminista americana Susan Anthony, ao dizer que a bicicleta “tem feito mais para emancipar as mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”. Na mesma época, fim do século XIX, sua amiga e também feminista Elizabeth Stanton afirmou que “a mulher está pedalando em direção ao sufrágio”.

Atualmente as demandas sociais são outras. As mulheres conquistaram o direito ao voto, de saírem desacompanhadas e suas roupas já não precisam ser desconfortáveis. Os motivos pelos quais uma mulher ocupa as ruas numa bicicleta também já não são os mesmos. Mas o âmago comum parece ainda ser a busca por liberdade. Em conversas, muitas mulheres falaram de saúde mental, sem citar o termo, e de poder de escolha sem chamar de empoderamento. Se perceber segura, não precisar de companhia para voltar para casa mesmo estando tarde e escuro; abrir mão dos looks mais feminilizados, aderindo calças e sapatos confortáveis; aceitar que o pedal causará cansaço e suor é se ver livre e independente para conquistar os espaços urbanos e sociais.

Além de se permitir apreciar melhor as paisagens ao longo do caminho, pedalando também é possível enxergar melhor o quanto o poder público ainda precisa investir para melhorar a mobilidade urbana. “Andar de bicicleta permite sentir mais empatia pelos pedestres e pessoas com dificuldade de locomoção, pois faz ver de perto os obstáculos e dificuldades para andar pelas ruas e calçadas deterioradas”, afirma Bianca Escrich, de 29 anos. “É difícil enxergar esses obstáculos de dentro do carro ou do gabinete da prefeitura”, completa. Na cidade com o pior índice de mobilidade urbana do Brasil e um dos piores do mundo, a falta de infraestrutura e os perigo constante de acidentes acabam desencorajando mulheres a adotarem a bike como meio de transporte ou lazer. “A capital não é amigável com as pessoas que utilizam meios alternativos de transporte. Existem poucas ciclovias e elas não estão interligadas, por isso em muitos trajetos temos que disputar espaço com os carros e ônibus. Muitos motoristas não respeitam a lei que obriga a respeitar a distância de 1,5m de uma bicicleta para realizar a ultrapassagem. Isso acaba colocando em risco a vida dos ciclistas”.

 

Pedalar é manter-se no eixo

Na bicicleta, Sueli Balbinot, 58 anos, encontrou oportunidade para superações pessoais. Com um grupo de ciclistas conheceu lugares em sua própria cidade que ainda não conhecia e fez viagens por Santa Catarina, subindo serras e percorrendo longas distâncias. Quando começou a pedalar, ficou quase uma semana inteira com as pernas doloridas, “tipo engessadas”. No começo não subia morros. Descia da bike e a ia empurrando. Agora, com orgulho conta que já não encontra tanta dificuldade. Para responder o que mais lhe incentiva a pedalar ela foi poética: “o que mais me motiva é sentir o rosto. Sentir o vento no rosto. Sentir aquela sensação única de saber que tá viva… é, de saber que tu tá com a respiração tranquila”.

Esse olhar sensível que Suelí deu sobre o pedal pode ser visto em outros momentos, como quando falam sobre companheirismo. Diversas mulheres que participam de grupos de ciclismo contam que no início não só receberam incentivos, foram também ajudadas na hora dos perrengues. Esse “ombro amigo”, para a Luciana Borba, foi parte importante do que a fez gostar de pedalar. “Fiz novas amizades, conheci muitos lugares que já havia passado de carro mas de bicicleta a visão é outra. Só quem passa por aquilo alí pra saber. E as amizades hoje, claro que tenho pessoas que tem mais afinidade comigo, e tem outras novas que vão entrando e eu tento abraçá-las, trazê-las para o lado da bike. Mulheres casadas, a maioria delas, que ficam dentro de casa, só trabalhando, cuidando de marido, de filho… então quando elas vem pedalar, elas fazem amizade com a gente. Quero mostrar o que eu aprendi, o que mostraram pra mim no começo”.

Luciana, aos 44 anos, já foi uma paciente obesa. Contou que era sedentária e se sentia infeliz. Após uma cirurgia bariátrica, sabia que precisava fazer exercícios e manter o corpo ativo. Começou a pedalar há sete anos, após passar por uma loja de bicicletas e conhecer um grupo de ciclistas. A história é semelhante com a da Kátia, de 51 anos. Iniciou no ciclismo ano passado, por recomendação médica. Viu uma postagem de uma amiga no Facebook falando sobre seu grupo de pedal e pediu que ela a ajudasse a escolher sua primeira bicicleta. “Comecei a me apaixonar e depois de 4 meses resolvi trocar minha bike, comprar uma melhor, que fosse mais leve, que me desse mais conforto. Desde então não parei mais”. Ela que se considerava sedentária, hoje em dia gosta de sair para pedalar cedinho, sempre volta muito animada.

A liberação de endorfina, substância produzida pelo cérebro quando fazemos exercício, é responsável pelo ânimo e bem estar que surge quando pedalamos. Para Ana Lúcia, o ciclismo funciona como terapia, tanto para a cabeça quanto para o corpo. “Eu penso que bike une mente, corpo e espírito, porque meu espírito se sente muito feliz em fazer tudo o que gosto”. Aos 56 anos, sempre gostou de pedalar, desde criança. Conta ela que com o tempo a vida a levou a priorizar outras coisas, como o trabalho, casamento, filhos, e acabou esquecendo-se de si mesma, das coisas que sempre a deram prazer. Em 2011 comprou sua primeira bicicleta. Queria aventura, estrada de barro, tudo que encontrasse pelo caminho. Pedalou pelas subidas íngremes da Serra do Rio do Rastro e pelo morro da Igreja, em Urubici, um dos morros mais altos de Santa Catarina.

Rosane Berto também enxerga na bicicleta uma terapia. O humor fica diferente, melhora o emocional. Ela pedala há mais ou menos 28 anos, começou bem antes de conhecer o ciclismo em si. “Era pedalar. Pedalar porque sempre gostei de pedalar”. Alguns anos atrás descobriu que era cardiopata. Possui arritmia. A bicicleta é a atividade física que lhe proporcionou maior bem estar. “Faço longão, faço curto. Vou pedalando pro trabalho. Agora decidi que vou aposentar meu carro, vai virar um meio de transporte mesmo”.

Seja qual for o motivo para o uso da bicicleta, ela ocupa um espaço importante na vida e no cotidiano destas mulheres. Algumas como a Aline e a Rosane, a vida toda pedalaram e outras, como Luciana, só começaram depois do casamento. O humor muda, a cabeça fica no lugar e o caminho passa a ser mais bonito. Um universo comum é compartilhado por elas, mesmo com as diferenças de idade, cidades e percursos. Um ‘quê’ de independência é percebido quando falam, contam suas histórias.

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