“Novo normal” da vida on-line traz velhos obstáculos
Mesmo com o aumento na demanda por serviços digitais, a maioria dos sites brasileiros ainda não é acessível para pessoas com deficiência
Reportagem por Jullia Gouveia
Há pouco mais de um ano, a vida de grande parte dos brasileiros ficou ainda mais on-line. Com o isolamento social, a internet se tornou o principal espaço para consumir e se relacionar com outras pessoas e com o mundo. Segundo o levantamento Digital 2021 das empresas de sondagem de dados DataReport e We Are Social, o número de pessoas usando a internet subiu 7,3% no último ano, somando mais de 4,6 bilhões. No Brasil, existem 160 milhões de usuários, dos quais 9,6 milhões começaram a usar a internet entre 2020 e janeiro de 2021.
Às pressas, ensino e trabalho passaram a funcionar de modo remoto e um home office improvisado tomou conta dos lares brasileiros, fazendo com que salas de reuniões on-line tomassem os holofotes para si. Plataformas como Google Meet, Zoom e Microsoft Teams relataram, em 2020, uma utilização até 300 vezes maior em relação ao ano anterior. Esses espaços on-line tiveram suas vantagens e desvantagens discutidas exaustivamente ao longo de meses, mas uma questão continua presente: como é a acessibilidade de sites e aplicativos essenciais para pessoas com deficiência?
O Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) lançou, em dezembro de 2020, uma pesquisa sobre a acessibilidade das ferramentas de videoconferência em plataformas da web. Para testar os recursos dessas plataformas, 32 avaliadores, com e sem deficiência, navegaram de três formas: com o áudio desabilitado, para entender a experiência de pessoas com deficiência auditiva; utilizando um leitor de tela, software usado por pessoas com deficiência visual para ouvir o que está sendo mostrado; e empregando a navegação somente por teclado, sem usar mouse, que é como muitas pessoas com deficiência visual ou mobilidade reduzida fazem.
Entre os resultados estão dificuldades de interação, como problemas para abrir e fechar a câmera ou utilizar o chat. Em relação ao conteúdo, apenas 4% dos avaliadores que usaram o leitor de tela relataram ter conseguido entender tudo o que estava sendo apresentado na reunião. Uma das maiores barreiras ainda se apresenta para pessoas que dependem da Língua Brasileira de Sinais. Tanto em plataformas quanto em recursos de redes sociais, como transmissões ao vivo, a janela reservada ao intérprete de Libras muitas vezes não pode ser ampliada ou fica distorcida, impossibilitando que o espectador consiga entender os sinais.
Embora plataformas de videoconferência estejam em evidência, os obstáculos de inclusão estão presentes em sites ainda mais corriqueiros, como as redes sociais. Na contramão da acessibilidade, o YouTube removeu, no final de 2020, o recurso de contribuições da comunidade, que permitia que espectadores voluntários adicionassem legendas e descrições a um vídeo, necessitando apenas da aprovação do canal para serem incorporadas. A plataforma afirmou que o recurso gerava reclamações de spam e era raramente utilizado.
Para o jornalista Gustavo Torniero, consultor em acessibilidade e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, garantir o acesso a todos é uma preocupação que deveria estar presente desde a elaboração do site. “Falta uma cultura da acessibilidade: as pessoas, empresas e plataformas olharem para esse tema desde o início do projeto, e não durante ou depois que o site ou o app já foi construído. Acessibilidade não é um plus, é um pré-requisito.”
Além disso, o jornalista destaca ser essencial a presença de pessoas com deficiência (PCDs) em campanhas de conscientização e todo tipo de projetos que visam melhorar a acessibilidade. O primeiro fator a se considerar é a representatividade. Ou seja, uma ou mais pessoas de determinados grupos sociais tendo protagonismo para se expressar, opinar e decidir sobre coisas que afetam eles próprios, garantindo que suas demandas sejam atendidas. O segundo fator é o conhecimento prático. “Existem muitos profissionais capacitados no mercado, em diversas áreas de atuação, que têm algum tipo de deficiência. E essas pessoas precisam fazer parte do processo, porque a gente tem um lema: Nada sobre nós sem nós”, reforça Gustavo Torniero.
Além de produzir reportagens sobre o tema e ter uma coluna semanal no portal Yahoo, Gustavo é embaixador do Movimento Web Para Todos e participou de campanhas como a #ImagensQueFalam, que procurou divulgar a prática da descrição de imagens. A descrição é fundamental para que os conteúdos sejam acessíveis para pessoas cegas e pode ser feita de duas formas: na própria legenda da imagem ou usando o recurso de texto alternativo que muitas redes sociais, como Facebook, Twitter e LinkedIn oferecem. Esse pequeno texto deve informar o conteúdo daquela imagem; em caso de gráficos ou tabelas, é preciso transcrever os dados. Já para fotos, deve-se dizer quem ou o que está sendo retratado, atentando, por exemplo, para as expressões faciais ou paisagem ao redor.
Fundado em 2017, o Movimento Web Para Todos (MWPT) é uma organização especializada em acessibilidade digital que busca difundir a inclusão na Internet utilizando recursos educativos como cartilhas, vídeos e workshops, além de realizar análises e consultorias especializadas e promover mobilizações, que contam com a bagagem de especialistas e PCDs para identificar e corrigir os problemas de acesso na web brasileira.
Em 2020, o MWPT, em parceria com a empresa de dados BigData Corp e com o Centro de Estudos sobre Tecnologias Web, avaliou 14,65 milhões de sites ativos no país e concluiu que apenas 0,74% deles são completamente acessíveis. Ainda assim, houve uma evolução desde a primeira edição da pesquisa, realizada no ano anterior, quando eram 0,61% os sites sem obstáculos. O maior salto se deu nos sites governamentais. Enquanto em 2019 somente 0,34% dos sites do governo eram totalmente acessíveis, hoje a porcentagem é de 3,29%. Apesar do pequeno avanço, movimentos por acessibilidade digital alertam que ainda há muito a se fazer para que todos possam se conectar com equidade.
Pessoas diversas, necessidades diferentes
O designer Duca Baumgarten viveu na pele a dificuldade da falta de legendas durante sua graduação. Na época em que cursou Publicidade, era muito complicado entender os tutoriais de programas de edição de imagem que assistia no YouTube: quase todos os vídeos eram apenas narrações e imagens rápidas, sem legenda. Com deficiência auditiva, ele não entendia nada sem o implante coclear, dispositivo que possibilita a pessoas com surdez severa ou profunda uma experiência auditiva próxima do que é considerado “normal”. “Meu processo de aprendizagem naquela época era analisar todos os passo-a-passos do vídeo sem entender absolutamente nada no áudio. E há coisas importantes sendo narradas que não ficam explícitas apenas olhando para a tela.”
Duca decidiu criar um canal que atendesse às suas e às necessidades de muitas outras pessoas: Photoshop Para Surdos, totalmente legendado e sem áudio. O canal conta com quase 30 tutoriais de edição de imagens no Photoshop, ensinando a realizar desde efeitos simples a montagens de qualidade. Somando mais de 20 mil visualizações, o canal está hoje em hiato indefinido, já que o designer tinha que gravar, editar e legendar os tutoriais sem nenhum colaborador. “Eu super toparia voltar, nem que seja publicar um vídeo por mês. Mas sozinho… é muito puxado.”
Com o relativo pouco incentivo do uso dos recursos de acessibilidade por parte das plataformas, os usuários e criadores de conteúdo precisam ter mais trabalho para tornar seus conteúdos compreensíveis para pessoas com diferentes tipos de deficiências. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), PCDs são a maior minoria do mundo: cerca de 1 bilhão de pessoas possuem algum tipo de deficiência, totalizando 15% da população mundial.
Entre os surdos, por exemplo, existem aqueles que têm a Libras como língua materna e dependem dela para se comunicar: os surdos sinalizados. Já os surdos oralizados apresentam o português como primeira língua, e muitos sequer sabem se comunicar em Libras, precisando de legendas para compreender totalmente vídeos ou áudios. Muitos se comunicam das duas formas, além dos que sabem realizar leitura labial; para os últimos, é essencial que a imagem do vídeo não trave e possa ser pausada, coisa que não acontece em muitas chamadas e reuniões ao vivo.
Durante a live do NIC.br para promover os resultados da pesquisa sobre as ferramentas de videoconferência, em dezembro de 2020, o arquiteto, consultor e vice-presidente da Associação dos Surdos do Estado de São Paulo, Alexandre Ohkawa, reforçou a importância de pensar em estratégias que contemplem pessoas com diferentes especificidades. Um dos apresentadores do canal Coneckta, que se propõe a disponibilizar informações sobre saúde para a comunidade surda, ele dá destaque ao uso de múltiplos recursos que facilitam o entendimento.
Para pessoas com baixa visão, por exemplo, letras grandes e com muito contraste são essenciais. Já para quem possui dislexia, fontes confusas e letras totalmente pretas num fundo totalmente branco (ou vice versa) atrapalham muito a leitura. Por isso, o canal optou por utilizar preto e azul claro em sua identidade visual.
As pessoas com deficiência precisam ter autonomia para escolher como elas vão se organizar nessas plataformas
Alexandre Ohkawa
Foi pensando nessa diversidade e na urgência de se adaptar às necessidades on-line criadas pela pandemia que a ONG Escola de Gente idealizou o projeto Hiperconexão Inclusiva. A organização, fundada em 2002, visa fomentar a inclusão digital através da comunicação e da participação em políticas públicas de acessibilidade. Idealizada pela jornalista Claudia Werneck, referência internacional na luta por direitos humanos e inclusão social, a Escola de Gente já mobilizou diretamente mais de 500 mil pessoas e criou metodologias premiadas e difundidas gratuitamente pelo mundo.
O projeto Hiperconexão Inclusiva estreou em abril de 2020, com a primeira transmissão ao vivo totalmente acessível do Brasil. Trazendo informações e convidados para falar sobre confinamento e saúde mental, a live contou com os quatro recursos essenciais para um vídeo totalmente inclusivo: linguagem simples, interpretação de Libras, legendas simultâneas e um canal de audiodescrição, que funciona de forma parecida com o texto alternativo da descrição de imagens. Na audiodescrição se explica brevemente e em áudio as imagens na tela, sejam elas informações ou a aparência física e o ambiente onde se encontra cada convidado da transmissão.
Até o momento, o projeto já desenvolveu seis lives, inclusive com a participação de crianças, realizou transmissões em parceria com a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e prestou consultorias de acessibilidade em transmissões ao vivo à Organização das Nações Unidas (ONU) do Brasil. Alan Thomas, formado em Jornalismo e um dos funcionários da Escola de Gente, garante que a equipe de apenas oito colaboradores não precisa se sobrecarregar ou ter grandes habilidades de programação para desenvolver todos esses projetos. Para ele, o principal é ter conhecimento e disposição. “Qualquer um pode fazer e, muitas vezes, não gera um grande custo. Há diversos programas gratuitos que podem ajudar na audiodescrição e na geração de legendas automáticas, por exemplo.”
Alan reforça que a acessibilidade é, inclusive, uma obrigação que consta na Lei Brasileira de Inclusão, que entrou em vigor em 2016 e garante a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade, o que abrange o mercado de trabalho, educação, cultura, esporte, lazer e acesso à informação. Para ele, o que falta é a equidade ser tratada como componente essencial de qualquer projeto. “A acessibilidade não é vista como uma obrigação. Há uma reclamação constante sobre acessibilidade ser cara, mas esse, na verdade, é o preço de não discriminar.”
Um mercado de oportunidades
Luciana Oliveira, especialista em UX e cega, garante que acessibilidade significa, acima de tudo, qualidade de produto. “Quando você oferece um bom serviço, mesmo quem não tem deficiência vai poder usá-lo com ainda mais facilidade.” Há três anos, Luciana conduziu uma pesquisa para avaliar a acessibilidade de diversas plataformas de e-commerce contando com mais de 200 pessoas, disponível no e-book “Por que as pessoas cegas não compram no seu e-commerce?”. Agora, finalizando a segunda versão da pesquisa, ela concluiu que os principais sites brasileiros de comércio virtual no varejo — Riachuelo, Pernambucanas, Marisa, Renner e C&A — mantêm, essencialmente, os mesmos problemas.
Além de problemas na estrutura da página, como erros na caixa de busca ou falta da descrição técnica do produto, como as medidas de cada roupa, Luciana encontrou falhas no atendimento de todos os sites. Articulista da World Wide Web Consortium (W3C), consórcio internacional que padroniza conteúdos na internet, a especialista em UX explica que a nova diretriz de recomendações da organização aconselha que todos os sites de comércio ofereçam um link de atendimento humano, onde o usuário possa conversar com atendente em horário comercial e solicitar ajuda. No entanto, nenhuma das cinco lojas apresentaram o serviço de forma funcional e fácil de encontrar. Ao não garantir a acessibilidade, especialmente num contexto em que grande parte dos serviços e das compras estão sendo realizados on-line, essas empresas fecham os olhos para um público de até 46 milhões de brasileiros com alguma deficiência, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O casal Leonardo Gleison e Camila Domingues acumulou experiências on-line frustrantes nestes últimos meses, mas também aprendizado. Há pouco mais de um ano, nasceu o Gustavo, filho dos dois, e muitas pessoas os questionavam sobre como seria para um casal de pessoas cegas cuidar de um bebê sozinho. “Casais de pessoas cegas terem filhos não é novidade, mas começamos a pesquisar sobre o assunto na internet e não encontramos canais abordando a deficiência visual com fontes confiáveis”, explica Leonardo, que é analista de sistemas e técnico em tecnologia assistiva na Laramara, a Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual.
Dessa forma, para falar da experiência como pais de primeira viagem, mas também sobre o cotidiano da vida autônoma, tecnologia assistiva e educação inclusiva, especialidade da professora Camila, eles criaram o canal Inclunet. Nos vídeos do canal, eles apresentam materiais de leitura e jogos acessíveis para pais e crianças com deficiência, utilidades de assistentes de voz como a Alexa, da Amazon, e até mesmo receita de bolo de cenoura. “Buscamos informar como é a nossa rotina para mostrar que temos um dia-a-dia comum”, adiciona Camila.
Criado em julho de 2020, o canal hoje já soma 40 vídeos. Leonardo e Camila contam com a colaboração de um editor de vídeo e de uma legendadora, além das participações esporádicas de amigos ou parentes para gravar as imagens de cobertura. O analista de sistemas confirma que a experiência é desafiadora: “A gente não pensou que gerar conteúdo para o YouTube seria tão difícil assim, mas estamos gostando muito.”
O casal já sente a diferença em navegar nas redes sociais como usuários e como criadores de conteúdo. O LinkedIn é a rede social preferida para divulgar o canal, porque além de apresentar o básico da acessibilidade, é onde a maior parte do público do Inclunet acompanha os novos conteúdos e interage. Já o Facebook tem caído em popularidade por diminuir cada vez mais o alcance das publicações, na expectativa de que o produtor patrocine os posts.
Com o Twitter, a coisa muda de figura: para Leonardo, é uma das redes mais acessíveis, com opções de texto, áudio, fotos e vídeos. O aplicativo lançou recentemente a ferramenta Espaços, salas de áudio ao vivo que contam com legendas automaticamente geradas. Na hora de postar o vídeo no YouTube, no entanto, é onde encontram a maior dificuldade. O processo de subir o vídeo com as legendas demora mais de uma hora, porque a ferramenta de legendagem não é completamente acessível.
Leonardo reflete que, aos poucos, a acessibilidade das redes sociais está melhorando para o usuário, com novidades como o Facebook e o Instagram implementando descrições de imagem automáticas. Mas, para o gerador de conteúdo, ainda há muito a melhorar. “Você não vê nenhum investimento da parte deles para ajudar a pessoa com deficiência a produzir”.
A designer especialista em acessibilidade, Talita Pagani, explica como fazer o máximo dos recursos que já estão à disposição nas redes sociais. Além da descrição de imagens tradicional, ela também ensina a descrever os GIFs do Twitter no //ux.blog, espaço de compartilhamento da Mergo, escola de cursos de UX. Ela também destaca que, embora o recurso ainda não tenha sido implementado nos stories do Instagram, os vídeos da seção IG TV ganharam a opção de legendas automáticas há pouco tempo.
A designer não esquece de recomendar medidas para incluir pessoas com deficiências físicas, cognitivas e neurodivergentes — grupo do qual ela faz parte, já que está no espectro autista. Para atender às questões cognitivas, é preciso se atentar à linguagem de difícil compreensão, botões confusos ou ambíguos e sobrecarga de informação. E, para as pessoas com mobilidade reduzida, é necessário projetar botões de tamanho adequado e evitar interfaces que gerem muito esforço físico.
Talita aponta duas razões para a subutilização desses recursos: desconhecimento ou desinteresse dos usuários e a forma como eles são projetados. “Essas configurações ficam escondidas e isso é um problema de design. Se estivessem mais à mostra e fossem amplamente divulgadas, mais pessoas utilizariam”.
Reportagem escrita para a disciplina de Apuração, Redação e Edição IV do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, com orientação da professora Terezinha Silva.