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Reportagens

Neurodiversidade na água: a piscina como lugar de inclusão

Crianças e adolescentes no espectro autista encontram no ambiente aquático um espaço para o desenvolvimento

Reportagem por Camilly Iagnecz e Endy Christine

 “Eu só vejo pontos positivos. Tem coisas que às vezes são pequenas para outras crianças, mas ele tinha muita dificuldade, então foi um processo. Ele aprendeu a esperar a vez dele, a bater a perna e acompanhar os outros, tanto que hoje eu acho que ele já tem habilidades até para ir para outros esportes, então a natação ajudou muito”, declara Naiara Pereira Carvalho, mãe de Gustavo Carvalho, de sete anos. Diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) quando tinha um ano, ele começou a nadar quando tinha dois, evoluindo notavelmente, dentro e fora da água. 

Nos últimos anos, profissionais da Educação Física, junto a neurologistas e psicólogos, descobriram que atividades aquáticas podem ser benéficas no processo terapêutico de pessoas com autismo. “O esporte aquático é uma tendência porque quando você entra na água a pressão hidrostática te abraça, o empuxo te abraça, eles se sentem muito acolhidos, e, ao mesmo tempo, ninguém toca neles”, explica Andrea Freire Monteiro, educadora física, fisioterapeuta e mestre em Ciências do Desenvolvimento Humano. 

Vitor Biava tem 14 anos e foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista aos dois. Sua família mora em um condomínio com piscina, então sempre teve afinidade com a água, frequentando a área aos finais de semana. A escolha pela natação como atividade física ocorreu no início da adolescência e foi feita em conjunto com a mãe, Rosana Biava. “Ele sempre gostou de ir para piscina, sempre amou água, mas não sabia mergulhar corretamente ou nadar muito bem, e a gente queria que ele aprendesse, e também para dar uma equilibrada já que ele era bem agitado”. Vitor experimentou outros esportes, como o taekwondo, porém, a arte marcial possui regras rígidas, e a questão comportamental acabou se tornando um empecilho. 

Vitor nada com outras quatro crianças neurotípicas. No começo das aulas, ele permanece mais quieto, imerso em seu próprio mundo. Conforme o tempo passa, seu comportamento se transforma e sorrisos começam a surgir em seu rosto, principalmente quando ele mergulha, algo que parece ser sua atividade favorita. Vitor se mostra confortável, sem pressão para acompanhar os colegas, seguindo as orientações do professor e realizando as atividades no seu próprio ritmo. 

Algo que visivelmente gera empolgação em Vitor é a brincadeira com o tapete amarelo que ocorre perto do fim da aula. Ele solta gargalhadas enquanto se diverte, brincando de se equilibrar no tatame com seu professor e colegas. 

O tapete amarelo é o predileto de Vitor, que pede por ele na hora da brincadeira – Foto: Endy Christine 

Segundo Rosana, o maior benefício da natação está relacionado à socialização. Vitor é um autista não verbal, que com frequência não se comunica através da fala. Na natação, ele encontrou outras formas de se expressar e interagir com os colegas durante as aulas. “Antigamente a gente percebia que ele não lidava muito bem com crianças ou pessoas da sua idade. Hoje em dia ele é o mais velho da turma e ele adora, se tu perguntar para o professor, ele é mega bagunceiro, ele se diverte, ele fica feliz, ele brinca com os amigos”. 

As vantagens do esporte vão além do psicossocial. O artigo “A influência da natação no desenvolvimento dos autistas” de Iasmynne Messias, Wilza Mourão e Ludmila Borge, publicado na Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, em 2022, mostra que dentre quatro crianças autistas que praticaram natação por cerca de nove meses, três apresentaram melhoras na coordenação motora. Segundo a pesquisa, essa evolução se dá porque o ambiente aquático facilita o deslocamento, dando mais liberdade para o praticante, algo que o leva a se movimentar mais – dentro e fora da piscina –, aumentando suas habilidades e capacidades motoras. 

Depois de cerca de cinco anos tendo aulas de natação, um dos fatores observados em Gustavo, foi a melhora motora. Sua mãe, Nayara, conta que ele era uma criança frágil e por isso foi colocado na fisioterapia, para aumentar seu repertório motor e fortalecer a musculatura, porém o processo acabou sendo muito estressante para ele, que não aceitava os exercícios. “Ele teve uns ganhos bem importantes na parte motora, saber como nadar, parar, usar a prancha, algo que com a fisioterapia ele não ia conseguir”. 

Tanto a melhora física, quanto a melhora social de Gustavo, podem ser ligadas ao seu diagnóstico precoce, que resultou não só em visitas a psicólogos e fonoaudiólogos logo cedo, mas também o levou para a piscina. A psicóloga Ana Heymanns, coordenadora de uma clínica de neurodesenvolvimento infantil, explica que a intervenção logo cedo é de extrema importância. “Todo nosso cérebro tem partes que se conectam entre si, no autismo, justamente essa conexão é complicada, então tudo isso afeta várias áreas, são dificuldades, obstáculos que precisam ser passados. Crianças que não são estimuladas precocemente tendem a não conseguir se inserir na sociedade de forma funcional”. 

O autismo é um transtorno comportamental considerado como uma alteração no neurodesenvolvimento e agrupa diversas características, desde dificuldades na interação social e na comunicação, até disfunção sensorial – alta sensibilidade à luz, sons, texturas e cheiros. O TEA recebeu esse nome, e passou a ser considerado um espectro a partir da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), organizado pela Associação Americana de Psiquiatria, que o separou em três níveis, e destacou a diversidade de comportamentos e sintomas que existem dentro do diagnóstico. 

Natação adaptada, convencional e atividades aquáticas 
Durante as aulas adaptadas, os pais entram na água com os filhos até que eles se sintam confortáveis o bastante para nadar sozinhos – Foto: Endy Christine 

Entre as práticas aquáticas destinadas para indivíduos no espectro do autismo, destacam-se três opções: atividades aquáticas, aulas convencionais e aulas adaptadas. Cada uma dessas modalidades é projetada para atender as diferentes necessidades e objetivos de cada indivíduo autista. 

Atividades aquáticas são aquelas que se desprendem da ideia tradicional do esporte. Andrea é diretora da ONG Autonomia, que oferece essa modalidade para pessoas com TEA, focando não na natação, mas sim no desenvolvimento através de estímulos variados dentro de um ambiente seguro. A educadora física esclarece que não ensina técnicas de nado, no entanto, muitos participantes da oficina aprendem a nadar mesmo sem essas aulas específicas. 

De acordo com um levantamento realizado pela National Autism Association, dos Estados Unidos, entre 2009 e 2011, afogamentos acidentais foram a causa de 90% das mortes de crianças autistas – de até 14 anos – que estavam sem supervisão. Nesse sentido, muitos pais procuram aulas de natação para que seus filhos aprendam técnicas de nado,

(como crawl) e respiração, habilidades que proporcionam segurança e independência no ambiente aquático. Esse foi outro motivo pelo qual Rosana optou pela natação na hora de escolher um esporte para o filho. ‘’Queríamos que ele aprendesse o que fazer se caísse em uma piscina. Nosso desejo era que ele aprendesse a esperar, manter a calma e até mesmo permanecer debaixo d’água”, relata a mãe de Vitor. 

Gráfico: Camilly Iagnecz 

Dependendo do nível em que se localizam no espectro do transtorno, é preciso compreender que pessoas com TEA podem ter dificuldades em adquirir ou aperfeiçoar habilidades. Cláudia Benedet, que coordena um projeto de aulas adaptadas para jovens autistas, enfatiza a importância de respeitar o tempo de cada aluno. Ela destaca que o ritmo de aprendizado pode variar e que o formato das aulas oferece tempo e o ambiente ideal para focar nas necessidades individuais. “Eu não consigo em uma semana, no máximo em duas trabalhar a respiração lateral com crawl, a velocidade com que eles nos dão a resposta motora é diferente, por isso o principal lema da aula é respeitar o ritmo de cada aluno”. 

Esse modelo é totalmente adaptado para pessoas com TEA e tem como foco, além das técnicas de nado, proporcionar atividades que auxiliam no desenvolvimento cognitivo e motor dos alunos. Franciane Temochko é professora de uma dessas turmas e explica que, durante suas aulas, utiliza exercícios de percepção espacial e motricidade global. ‘’Realizamos diversas atividades durante as aulas, incluindo aquelas com enfoque no equilíbrio, onde as crianças precisam se equilibrar em cima do tatame, e também exercícios de encaixe, onde elas devem identificar e encaixar letras e números do outro lado da piscina.’’ 

O Quebra-cabeça de EVA é uma ferramenta que ajuda as crianças a compreender distância, tamanho e forma dos objetos em um espaço tridimensional – Foto: Endy Christine 

Enquanto para algumas pessoas a natação é um lugar para aprimorar técnicas de nado, outras encontram no esporte um espaço para desenvolver habilidades de interação e compreensão das normas sociais. “É super interessante estar com outras crianças que não estão no espectro para estimular esse indivíduo socialmente, tudo no nosso organismo é baseado em estímulos. Só é possível desenvolver o lado social se for estimulado e a natação nesse caso é super favorável, saudável e benéfica nesse sentido”, esclarece a psicóloga. 

Naiara relata que esse foi um dos motivos pelos quais ela quis que Gustavo estivesse em uma turma convencional e com crianças fora do espectro. ‘’Foi bom para ele estar em outro ambiente, onde não o tratam de forma diferente por ser autista”.

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