Mais de 50 microempreendedores se reúnem semanalmente em feira no campus da UFSC em Florianópolis
Conheça um pouco da história de comerciantes que transformam o ambiente universitário em um universo dinâmico e multicultural
Reportagem por Camila Soares Borges
Discos raros, livros antigos, roupas a preço de banana, brincos de crochê, plantas medicinais, música ao vivo e aroma de pastel frito na hora embalam o passeio dos visitantes entre as barraquinhas montadas na Praça da Cidadania da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. Nas quartas-feiras, microempreendedores de diversos segmentos transformam o ambiente universitário em um espaço multicultural que resgata valores e confere mais vida à Universidade.
A iniciativa de realizar uma feira no campus universitário surgiu em 2005, por meio do projeto Ágora Eco Feira, a partir de uma proposta do NESOL (Núcleo de Estudos e Práticas de Economia Solidária) da UFSC, à época sob a coordenação do professor Armando Lisboa do Departamento de Economia.
A primeira edição ocorreu em agosto de 2006, sendo, inicialmente, realizada às terças-feiras, das 10h às 14h. O objetivo era dar mais visibilidade à economia solidária e à agroecologia. Era permitida, naquele momento, a venda de produtos alimentícios que seguissem determinados critérios como (1) ser cultivado em Santa Catarina; (2) ser nutritivo (não era permitida a venda de produtos industrializados por grandes empresas); (3) ser orgânico e (4) ser proveniente da agricultura familiar.
O projeto encerrou as atividades em 2010, mas a feira continuou. Desde então, ela tem crescido tanto em número de feirantes, quanto em visibilidade dentro e fora da Universidade.
Nos dias atuais, a Feira da UFSC reúne mais de 50 microempreendedores. Cerca de 180 famílias estão ligadas de maneira direta ou indireta às atividades. Os principais produtos comercializados no local são de nichos como gastronomia; artesanato; brechó; plantas medicinais e decorativas; produtos hortifrúti e prestação de serviços.
De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), mais de 400 ocupações podem ser exercidas pelos Microempreendedores Individuais (MEIs), a exemplo de profissões como artesãos, comerciantes, gesseiros, jardineiros, dentre outros. O Sebrae define que o limite de faturamento, para enquadrar-se como MEI, é de R$ 81 mil anuais ou R$ 6.750 mil mensais, a partir da data da abertura do empreendimento.
Por ser aberta ao público, nos dias em que ocorre, há um aumento considerável na circulação de pessoas dentro da Universidade. De acordo com a Pró-Reitora de Extensão, Olga Garcia, “a feirinha já está integrada ao cotidiano da comunidade universitária e aos moradores de seu entorno. A participação de diferentes tipos de empreendimentos possibilita o aumento, a diversidade e a maior permanência do público na feira”.
O projeto Ágora Eco Feira trouxe à Feira da UFSC microempreendedores do setor de alimentos orgânicos que continuam comercializando itens no local até hoje. Produtos da marca Jerivá Orgânicos, por exemplo, são vendidos no local desde 2006, escoando a produção de um sítio de São Bonifácio, localizado no Bairro Rio do Poncho, que fica a aproximadamente 80 quilômetros de Florianópolis.
Douglas Kozenieski é funcionário do Jerivá Orgânicos, empreendimento que produz e comercializa produtos orgânicos e também alimentos coloniais como pães, bolos, bolacha, manteiga e queijo. Ele aponta que houve uma diminuição nas vendas na feirinha nos últimos anos. “Anteriormente à pandemia, as vendas aqui eram excepcionais, era a feira mais conhecida de Florianópolis”. Para ele, a redução no movimento de pessoas ocasionada por greves e queda no número de alunos no pós-pandemia são fatores que têm diminuído a lucratividade das vendas no local.
A baixa nas vendas dos produtos da marca Jerivá Orgânicos vai ao encontro da pesquisa realizada pelo Sebrae em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre o impacto da pandemia de Coronavírus nos pequenos negócios. De acordo com a 14ª edição do estudo feito em 2022, houve um aumento na proporção de empresários preocupados com o futuro da sua empresa e uma redução na expectativa da situação voltar ao normal, em relação à edição anterior da pesquisa, realizada em 2021.
Douglas enfatiza a importância da produção sustentável. “O diferencial do orgânico é que não usa defensivo agrícola. Nos preocupamos muito com a saúde dos nossos consumidores e com o futuro do planeta”, explica.
Além de ser funcionário da Jerivá Orgânicos, Douglas também é proprietário do empreendimento Em Canto, marca que produz e comercializa apiderivados orgânicos. Ele enfatiza a satisfação em ter o próprio empreendimento. “Ser empreendedor é com certeza um ótimo negócio, você trabalha pra você mesmo, tem os seus próprios horários, é mais flexível e você mesmo coloca sua demanda”.
A compra de produtos na Feira da UFSC é embalada por músicas que marcaram época a partir da reprodução dos discos de vinil comercializados por Adão Mendonça, que é proprietário do Sebo Sintonia do Conhecimento. Adão vende produtos de segunda mão, como discos, CD’s e livros.
Adão conta que trabalha na Feira da UFSC há mais de oito anos. “Quando eu cheguei na UFSC pela primeira vez, fiquei o dia todo e só vendi um livro. Na outra quarta-feira já vendi três livros. Depois comecei a vender também CD’s e discos. Hoje trabalho com esses três produtos e com eles garanto meu sustento”, explica.
Para Adão, as vendas no local estão razoáveis considerando a economia do país. “Isso afeta as vendas em todo Brasil e também aqui na UFSC”.
O proprietário do Sebo Sintonia do Conhecimento comenta que os itens comercializados no seu empreendimento passam por um processo de garimpagem e que, por vezes, os próprios clientes são responsáveis por fornecer os produtos. “O pessoal passa aqui e olha eu vendendo. Se essa pessoa tem alguns LP’s em casa e me oferece eu faço uma avaliação, compro por um valor X, e comercializo aqui por um valor acima.”
Carlos Roberto Alves também trabalha com a venda de produtos de segunda mão na Feira da UFSC. Ele enfatiza a necessidade do consumo sustentável e da conservação de memórias. “Sempre visando as coisas duráveis, sempre fugindo das coisas obsoletas. Meu pensamento é esse, que a mãe compre um brinquedo bom que depois guarde pra dar pra outra criança. E no meio do durável vem a história das peças. Às vezes o que vende mesmo é a história da peça”.
Carlos conta que tem seus próprios negócios desde jovem. “A verdade nas coisas é o que faz dar certo. Ser sincero no que está fazendo, no que está vendendo. Hoje eu tenho 55 anos e sempre fui eu comigo mesmo”, explica. Seu atual modelo de trabalho se iniciou a partir de um descontentamento com o antigo empreendimento, um lava-car no estacionamento do Hospital Universitário da UFSC. “Eu comecei meu trabalho com as minhas coisas, tudo que eu achava que era durável, legal, eu guardava. E um dia eu estava cansado do meu antigo trabalho e resolvi vender o que eu tinha. Fui sendo verdadeiro, dizendo ‘olha isso aqui é bom, isso aqui morre mais rápido’, fui comprando mais coisas e tudo foi acontecendo naturalmente”.
O comerciante acredita que a qualidade de vida das pessoas seria melhor se elas investissem na compra de itens duráveis e continuassem utilizando objetos de outras pessoas. “Meu foco maior é trazer de volta as coisas boas. Hoje em dia as pessoas trabalham, compram, morrem. Daí depois os outros têm que comprar tudo de novo e não conseguem ter uma qualidade de vida porque precisam estar comprando”.
Para Carlos, o sucesso do seu trabalho passa por estar atento e identificar oportunidades. “Eu garimpo em qualquer lugar, na rua, com pessoas, em brechó, papa entulho, às vezes eu também ganho coisas… essa é a jogada. A riqueza está em tudo, eu vejo negócio em tudo. Se eu pegar uma pedra e polir, ela vai valer alguma coisa. O empreendimento está em tudo, basta ter o olhar.”
A proposta da economia circular também ecoa entre o público da feira. Martim de Souza é natural do Mato Grosso do Sul e atualmente cursa o Doutorado em Química Orgânica na UFSC. O comércio de Carlos é sua parte favorita no local, pois transmite afeto e carrega memórias. “Aqui nessa banquinha tem muita coisa que a gente vê na casa dos nossos avós, é muito massa isso. Eu moro sozinho em Florianópolis e às vezes eu venho nessa banquinha e me dá um lugarzinho de afeto porque eu começo a lembrar de onde eu vim, lembro das coisas que aconteceram dentro da casa da minha vó”, explica.
O doutorando também aproveita outros espaços que comercializam objetos usados. “É muito legal que na feirinha tem o fortalecimento do comércio local, a reutilização de roupa, tem muito brechó, então tem essa troca de deixar a roupa circular, de não descartar”.
A Feira da UFSC é a principal fonte de sustento para diversos microempreendedores, a exemplo de Isabel Borba, proprietária da Hera Terapêuticos. Ela destaca a importância do espaço de comercialização na Universidade. “É a minha melhor feira, é a feira que paga meu aluguel, que paga o mercado. É a feira que mais vendo. Meu público está todo aqui”, explica Isabel.
Trabalhando no local há dois anos, Isabel produz e comercializa velas aromáticas, chaveiros, brincos de crochê e sabonetes. Sobre empreender, ela destaca: “é muito bom, mas muito trabalhoso.Tem que amar muito o que você faz porque sendo empreendedor você não descansa nunca.”
Entre o passeio por uma barraquinha e outra é impossível que o visitante não seja cativado pelos diversos aromas que os produtos alimentícios comercializados no local exalam. No setor de gastronomia, a Feira da UFSC reúne opções de diversas partes do Brasil e do mundo, oferecendo comida síria, pratos da culinária baiana, empanadas argentinas, suco de laranja, açaí, pamonha goiana e pastel com caldo de cana.
Yahya Zakaria Alnablsi conta que chegou ao Brasil em 2014 e começou a trabalhar em uma lanchonete da UFSC. Em seguida, abriu um negócio que não deu certo e ficou sem emprego. Ele conta que nunca gostou da ideia de trabalhar como CLT e que sempre sonhou em ter seu próprio negócio. Foi no intercâmbio cultural que Yahya vislumbrou a possibilidade de sustento ao vender para brasileiros opções alimentares do seu país: ele resolveu aprender as receitas da família síria e, em 2016, começou a trabalhar na Feira da UFSC com a venda de quibe e falafel.
O comerciante explica que apesar de gostar do seu trabalho, a pandemia acabou com muitas feiras e também com a força das feiras, situação que dificulta o trabalho dos microempreendedores. “Meu sonho é abrir um espaço físico próprio. Tenho esperança que a economia melhore”, explica Yahya.
Para Aimê Francine Mazzola, estudante de Letras, comprar pastel com caldo de cana é um compromisso obrigatório nas quartas-feiras. Ela conta que sempre gostou de comer esse tipo de prato, mas que consumir estes alimentos na Feira da UFSC “é uma vibe totalmente diferente”. Segundo ela, todo mundo que estuda na Universidade tem que passar pela feirinha e, pelo menos uma vez na vida, comer pastel com caldo de cana.
Microempreendedores que trabalham com venda de roupas usadas são os mais numerosos na Feira da UFSC. É possível encontrar no local peças de variados estilos, cores e tamanhos, conectadas por uma característica comum: o preço baixo.
Fernanda Almeida explica que todo dia é um dia diferente na Feira da UFSC, mas que trabalhar no local “é muito gratificante pelo contato com as pessoas, pela alegria que é o local”. A sogra de Fernanda tinha uma confecção de roupas no Paraná que fechou e algumas peças sobraram no estoque. A solução encontrada foi levar os produtos para exposição e venda na Universidade.
O fato da feira ser um espaço aberto confere dinamicidade e novidade aos itens comercializados a cada quarta-feira. Janete Campestrini começou em 2024 a trabalhar no local. “Iniciei sem nenhuma estrutura, vindo pra cá e expondo as peças na UFSC e nas praças. Sem barraca nem nada por enquanto, botando no chão mesmo”. Janete explica que compra as peças em brechós beneficentes e conta com doações de roupas dos familiares. “É simples, mas é com amor”, destaca.
A partir de suas características únicas, a feira atua como um espaço que promove o desenvolvimento sustentável, por meio da rotatividade de itens que seriam descartados como livros e roupas, valoriza o comércio local, incentiva o consumo de alimentos orgânicos, luta contra a obsolescência programada e resgata tradições familiares. Além disso, possibilita que o público possa adquirir produtos de qualidade vendidos abaixo do preço de custo normal.
Em 2023, o Gabinete do Reitor (GR) Irineu Manoel de Souza emitiu uma portaria que instituiu um grupo de trabalho, sob a presidência da Pró-reitora de Extensão da UFSC, com o objetivo de apresentar propostas para a organização da feira. Após 90 dias de trabalho, a comissão apresentou ao GR a proposta de regulamentar a utilização do espaço por meio de um projeto de extensão da Universidade.
O objetivo principal, ao transformar a Feira da UFSC em um projeto de extensão, é o de regular a atividade dos comerciantes que trabalham no local a fim de garantir a continuidade do trabalho. Órgãos de controle como Ministério Público Federal (MPF) e a Controladoria-Geral da União (CGU) já questionaram a Universidade sobre o uso do espaço da UFSC para venda de produtos sem um processo formal de regulamentação. Em entrevista à Agência de Comunicação da UFSC, o reitor Irineu Manoel de Souza explicou que “faz-se necessária a cessão do uso comercial desses espaços da UFSC, mas é importante que se saiba que queremos que a Feirinha continue na UFSC, porém, de forma legal, regular”.
Durante o processo de institucionalização, os comerciantes estão autorizados a manter as vendas. Com a regulamentação, os feirantes terão que pagar uma taxa à UFSC para poderem trabalhar no local, com valor ainda a ser definido. A proposta foi apresentada aos microempreendedores em duas reuniões realizadas na UFSC e está, atualmente, segundo a Pró-Reitoria de Extensão, aberta para críticas e sugestões. “Não há intenção em acabar com a feirinha. Pelo contrário, todo o esforço é justamente para institucionalizá-la, com regras bem definidas”, afirma a pró-reitora Olga Garcia.
Reportagem produzida na disciplina de Laboratório de Fotojornalismo, Fotografia e Fotojornalismo e Linguagem e Texto Jornalístico sob orientação dos professores Flavia Guidotti, Stefanie Carlan da Silveira e Ivan Giacomelli nos semestres 23.2 e 24.1.