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130 anos da abolição: entenda como escravidão brasileira perdura no século 21

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Foto: Danwatch

 

Reportagem: Pedro Bermond Valls (pedrobermondv@gmail.com)

Do século 19 aos dias de hoje

No ano de 1888, foi aprovada no Senado Imperial a chamada “Lei Áurea”, que aboliu no Brasil a instituição do homem tido como propriedade, a escravidão. No entanto, a promulgação de uma lei nem sempre significa mudança efetiva da realidade, ainda mais quando esta proíbe um tipo de exploração que está na base da própria formação da sociedade brasileira.

A escravidão no Brasil vem morrendo uma morte lenta, tão lenta que se estende há 130 anos.

A assinatura da abolição foi um evento de pompa, com a população assistindo, uma caneta caríssima e o documento escrito com tipologias inéditas, criadas para a ocasião. No entanto, sua solidez como instituição legal não fora planejada, e a Carta Áurea não fez nada além de apenas declarar que, a partir dali, não existiam mais escravos no Brasil. Não houveram perspectivas de inserção civil ou proteção contra as possíveis ameaças que os ex-escravos e os negros sofreriam em um país ainda ideologicamente segregado.

Logo depois da tardia abolição brasileira, o Império caiu diante da pressão política, dando lugar à República. Os partidários do republicanismo ganharam força com o apoio de empresários e latifundiários, ainda que estes tivessem perdido as perspectivas econômicas com o fim da escravidão.

A história da escravidão brasileira é tão intensa, que a prática não se limitou ao subjugo racial, mas também atingiu recortes socioeconômicos, estendendo-se a imigrantes europeus endividados que se viam presos a um trabalho degradante e exaustivo.

Essa segunda modalidade da prática escravista está mais relacionada ao  fenômeno que persiste até os dias de hoje. Ele acontece vinculado a critérios regionais, de distanciamento da fiscalização e da urbanidade (há exceções), com pessoas de comunidades especialmente frágeis em condições materiais e de variadas etnias.

 

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Foto: Danwatch

 

Há diversas características recorrentes desse fenômeno de exploração ainda no século 21: remuneração insuficiente para uma alimentação adequada, moradias improvisadas feitas de lona e trapos usados, falta de acesso à água potável e produtos higiênicos. As ferramentas de trabalho costumam ser rudimentares e perigosas para o manejo, ocorrem mutilações e sequelas físicas. As pessoas sujeitas a essas condições geralmente encontram-se em uma situação de grande miséria, fome e escassez de bens, e muitas vezes são atraídas por promessas de trabalho em locais mais afastados. Contraem dívidas para viajar até o local e então são financiados pelos pretensos empregadores, que os mantém presos à dívida e moralmente intimidados por capatazes armados. Há casos de morte relacionada a ação dos capatazes.

Com menos frequência, é descoberta a mesma prática em ambiente urbano. Nestes casos, o crime predomina na construção civil e na indústria de confecção. As vítimas mais comuns são imigrantes ilegais de países vizinhos, como Bolívia, Peru ou Paraguai. Essas pessoas migram para fugir da pobreza do país natal e a condição de ilegalidade os faz optar por empregos irregulares, onde são explorados e temem denunciar os empregadores pois podem ser expulsos do país.

O MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) mantém em constante atualização uma lista com os nomes dos empregadores que foram descobertos pelos seus auditores impondo o trabalho análogo ao escravo. Os estado que mais registra o crime é Minas Gerais, seguido do Pará, Mato Grosso e Santa Catarina, respectivamente. No entanto, a coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo de Minas, Dolores Jardim, em entrevista à agência A Pública, justifica a posição do estado dizendo que “não significa que Minas tenha mais trabalhadores (em situação de trabalho escravo) que outros estados, mas que estamos atendendo à demanda (de fiscalização) por uma questão de gestão”. O Pará, no entanto, segundo colocado da lista, só possui uma coordenadoria fixa para combate da prática, enquanto Minas possui dezenove.

De acordo com os  setores, , a agricultura representa 31% do total dos casos, que acontecem principalmente em lavouras de café (14% do total), em seguida vem a criação de animais (25%) e, em terceiro lugar, a construção e o setor madeireiro (ambos 8%). Desde que o governo federal começou a fiscalizar vínculos empregatícios em busca das ocorrências de trabalho escravo, já foram libertadas 43.545 pessoas (dados de 2012). Na zona rural, as principais vítimas são homens entre 18 e 44 anos de idade, 60% dos libertos são analfabetos e não possuem o quarto ano fundamental completo.

 

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Foto: MTE (Ministério do Trabalho e Emprego)

 

Legislação

O artigo 149 do Código Penal brasileiro, datado de 7 de dezembro de 1940, proíbe o ato de “Reduzir alguém à condição análogo à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A pena é de reclusão, entre dois e oito anos, e pode variar quando o ato for conjunto de violência. O “Conselho de Direitos Humanos” das Nações Unidas (ONU), juntos com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir da relatoria para formas contemporâneas de escravidão, apoiam o classificação legal da prática no Brasil.

Hoje em dia, um dos principais problemas que enfrentam as iniciativas de combate à prática é a evasão de recursos. O total de servidores caiu em cerca de 25% nos últimos 17 anos: em 2001, eles somavam 3.100 no Brasil todo, já em 2017 o número caiu para 2.300 funcionários. Uma explicação está na chegada da aposentadoria de antigos membros da categoria e na ausência de novos concursos públicos para substituir os postos deixados em aberto. É uma iniciativa regulatória que custa caro também, pois são necessárias longas viagens e ação policial no ofício. Esse esvaziamento do quadro regulatório gera uma situação de subnotificação do fenômeno como um todo. Os 130 empregadores denunciados na “lista negra” do Ministério do Trabalho provavelmente não representam o total de todos os casos de trabalho escravo que vêm ocorrendo em território nacional.

PEC 57A/1999

O Projeto de Emenda Constitucional 57A, de 1999, define que os empregadores enquadrados no crime do trabalho análogo à escravidão terão sua propriedade confiscada pelo Estado, para servir à Reforma Agrária. O processo do confisco deve ter início após a decisão judicial transitar pelas esferas criminal ou trabalhista. Será avaliada em primeira instância e, possivelmente, em segunda instância, em tribunais superiores.

Essa PEC foi aprovada em 2014, com o Senado votando inteiramente favorável à norma jurídica. A emenda inclui o trabalho escravo no artigo 243 da Constituição, que trata de confisco de terras, mas no caso serve para propriedades urbanas e rurais. No entanto, a propriedade a ser confiscada é apenas aquela onde for encontrado o trabalho escravo, outras propriedades do mesmo empregador permanecem em sua posse.

Portaria 1129

Uma portaria é um dispositivo jurídico do Poder Executivo, que detalha instruções sobre a aplicação de leis. A portaria 1129 foi criada com o objetivo jurídico de formalizar uma convenção de conduta para o combate à prática do trabalho escravo, porém foi amplamente criticada. ONGs e setores do próprio funcionarismo público consideraram que a portaria efetivamente alterou critérios para a classificação do trabalho análogo ao escravo, de modo a excluir boa parte dos empregadores que hoje estão presentes na “lista negra” do MTE. No momento esta portaria está suspensa pela ministra do STF, Rosa Weber.

O procurador do trabalho, Roberto Ruy Netto, critica-a em entrevista para a Agência Pública.

“Você não precisa ter o trabalhador acorrentado para caracterizar trabalho escravo […] basta ter uma condição degradante de trabalho, onde ele esteja alojado em barracões de lona, bebendo água que não seja potável. São trabalhadores que são aliciados em bolsões de pobreza com falsas promessas e muitas vezes acabam endividados, porque já têm que pagar o transporte, a ferramenta; quando ele recebe o salário, já está endividado. A portaria vem justamente tentar descaracterizar essa situação: só é escravo agora se houver vigilância extensiva, se houver restrição da liberdade desse trabalhador. O trabalho degradante seria uma mera irregularidade trabalhista”.

O vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Tiago Muniz Cavalcanti, em entrevista à Agencia Brasil, defendeu que o governo “está de mãos dadas com quem escraviza”. “Não bastasse a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe do departamento de combate ao trabalho escravo, agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”.

O contraponto apresentado por segmentos de mídia e da política nacional, defensores da Portaria, indica que ela apenas transformou em critérios objetivos certos termos definidos no artigo 149, que tinham um caráter muito aberto à interpretação. Por exemplo: “condição degradante”, “jornada exaustiva”, “trabalho forçado” foram definidos, respectivamente, como “caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade”, “a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis à sua categoria” e “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade”.

A portaria define também uma coleta mais completa de documentação, evidências fotográficas e descrição detalhada do ambiente. Para aqueles favoráveis, essa abordagem mais meticulosa e embasada é o mínimo a se exigir em um Estado de Direito, quando se trata de condenar alguém perante a lei e imputar penalidades.

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