Indígenas de todo o Sul do Brasil se reuniram na TI Toldo Chimbangue para a 4ª edição do ATL Sul. Foto: Jucelino Filho

Acampamento Terra Livre: luta e celebração da cultura indígena

ATL Sul 2022 reuniu mais de 600 pessoas com apresentações culturais e mesas de debate com pautas e protagonistas indígenas

Reportagem de Rodrigo Barbosa, Fernando Xokleng e Jucelino Filho

Ana Fēn’Nó é um nome histórico para o movimento indígena. Anciã do povo Kaingang, Fēn’Nó liderou seu povo na retomada do Chimbangue, território tradicional na região de Chapecó, Oeste de Santa Catarina.

A demarcação da Terra Indígena (TI) Toldo Chimbangue, em 1985, deu fim a décadas de invasões de colonos e ditou o ritmo das demarcações no Brasil pós-ditadura. A TI foi o primeiro território então inteiramente ocupado por não indígenas a ser considerado originário. O Chimbangue mudou as regras do jogo em favor dos povos indígenas, traçando novos parâmetros para estudos antropológicos que demarcariam outros territórios no Brasil.

Fēn’Nó viveria num Chimbangue demarcado por cerca de 30 anos. Acredita-se que viveu até os 110 anos de idade. Ancestralizou em 2014, deixando um legado de luta para seu povo e seu nome estampado na Escola da TI. Oito anos após a partida da anciã, os nomes e a memória de Fēn’Nó e do Chimbangue seriam marcantes em outro evento que entrou para a história do movimento indígena: o Acampamento Terra Livre (ATL) Região Sul 2022.

Ana Fen'Nó, anciã do povo Kaingang. Foto: Blogspot da Escola Indígena Fen'Nó
Placa de entrada da Escola Indígena de Ensino Fundamental Fen'Nó, na Terra Indígena Toldo Chimbangue. Foto: Rodrigo Barbosa
Placa de entrada da Escola Indígena de Ensino Fundamental Fen'Nó, na Terra Indígena Toldo Chimbangue. Foto: Rodrigo Barbosa

Entre os dias 4 e 7 de setembro de 2022, a Escola Indígena Fēn’Nó, na Terra Indígena Toldo Chimbangue, recebeu mais de 600 indígenas de toda a região Sul na 4ª edição do ATL Sul. O ATL Sul é um encontro anual que tem como objetivo debater os principais temas que influenciam na rotina e no futuro dos povos indígenas. O evento é uma versão regional do ATL nacional, criado no começo dos anos 2000 também por indígenas do Sul do Brasil. 

O ATL Sul 2022 teve o tema “Descolonizando Territórios: Voz e Visibilidade dos Povos Originários”. Durante os quatro dias de evento, se intercalaram no pátio central da Escola Fēn’Nó lideranças indígenas e grupos que apresentavam cantos e danças de seus respectivos povos. A região Sul abriga os povos Guarani Mbya, Guarani Ñandeva, Kaingang, Xokleng, Xetá e Charrua – que cantaram de maneira coletiva ao fim da última noite, em 6 de setembro, e no encerramento oficial do evento, no dia 7.

As delegações ficaram acampadas nos arredores da escola, onde ocorria grande intercâmbio cultural. No local, também ocorria a venda de artesanatos. As refeições foram fornecidas pela organização do ATL, mas, mantendo a tradição indígena, não era incomum ver churrascos sendo assados em fogueiras por toda parte. Devido ao frio (próximo a 0º C em algumas noites) e à chuva que caiu nos três últimos dias de evento, parte das delegações se abrigou dentro da escola.

Os assuntos debatidos nas plenárias do ATL devem nortear a luta do movimento indígena na região Sul durante o próximo ano. Confira, após a galeria, quais foram os principais assuntos.

Território

São diversas as situações envolvendo territórios indígenas no Sul. Há terras em todas as quatro etapas de demarcação, cada uma com suas próprias particularidades. Há ainda uma série de retomadas (reivindicações de novos territórios) em curso, como a do povo Kaingang em Canela (RS) e dos Xokleng em Blumenau (SC) e São Francisco de Paula (SC). 

Os Xokleng ainda são protagonistas do imbróglio envolvendo a tese do Marco Temporal. Como o Chimbangue na década de 1980, a TI Laklãnõ, dos Xokleng, é mais um território indígena em solo catarinense que pode redefinir rumos de demarcações em todo o país em breve

A territorialidade dos indígenas em contexto urbano também foi pauta do evento. Sadrak Lopes, indígena Kaingang e presidente da Comissão Indígena pela Casa de Passagem de Florianópolis, foi uma das lideranças que estiveram no ATL discutindo o assunto. 

Saúde

A saúde indígena vive momento crítico. Assim como a Funai, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) passa por maus bocados. A falta de equipamentos e equipes de saúde é uma constante em praticamente todos os Polos de Saúde Indígena da região Sul. Muitas comunidades foram severamente impactadas com a pandemia do coronavírus, como os Xokleng no Alto Vale do Itajaí. Os postos de atendimento a indígenas em contexto urbano também são alvos de críticas. Em março deste ano, dezenas de lideranças indígenas ocuparam o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Interior Sul, no município de São José (SC), em protesto às condições oferecidas às comunidades.

Colchões fornecidos à comunidade Xokleng para "auxiliar" no combate à Covid, em agosto de 2020.

Protagonismo Feminino

O Dia Internacional das Mulheres Indígenas, que coincidiu com o segundo dia do ATL (5 de setembro), rendeu uma homenagem às mulheres no palco montado na Escola Fēn’Nó, mas a presença feminina no ATL foi para muito além da homenagem.

Todos os debates do evento contaram com a participação de lideranças femininas, que também compunham boa parte da equipe de organização do ATL. Além disso, houve mesas para debater violações de direitos das mulheres e violência de gênero. O protagonismo das mulheres no movimento indígena também é marcante em nível nacional – a última Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida em 2021, levou mais de 4 mil mulheres para Brasília.

 

Educação e Protagonismo Jovem

Na Educação básica, a principal preocupação do movimento indígena é o novo Ensino Médio. Introduzido nas escolas convencionais a partir de 2018, o novo Ensino Médio mudou a Base Nacional Comum Curricular, mas ainda não foi adotado pelas escolas indígenas. 

Como conciliar os parâmetros do novo Ensino Médio com o ensino diferenciado, previsto na Constituição e que confere autonomia às escolas para lecionarem também conhecimentos tradicionais de cada povo, é o principal impasse atualmente. Via de regra, eram as delegações das escolas de diferentes regiões quem faziam as apresentações culturais do ATL.

A presença dos indígenas no Ensino Superior também foi discutida. Delegações de estudantes de toda a região estiveram presentes, como as da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e das Federais de Paraná (UFPR), Rio Grande do Sul (UFRGS) e Santa Catarina (UFSC), bem como professores indígenas de instituições como IFSC e Unochapecó. 

Dentre os pontos em comum entre as diversas realidades vividas pelos acadêmicos, permanência no Ensino Superior foi certamente o mais comentado. Thaira Priprá, estudante de Psicologia da UFSC, fez um discurso apresentando as condições vividas pelos indígenas da UFSC na Maloca e o novo projeto de moradia desenvolvido por eles. Além disso, destacou a criação do PAIQ, auxílio destinado a indígenas e quilombolas da UFSC, que também teve participação direta do movimento indígena. Jucelino Filho e Fernando Xokleng, ambos do Jornalismo, foram os outros estudantes da UFSC a discursarem no evento, falando sobre a importância da etnocomunicação. Fernando ainda cantou “Resistência”, música de sua autoria, e Jucelino apresentou o filme “Vânh Gõ Tõ Laklãnõ”, também de sua autoria. Os três estudantes da UFSC em questão são do povo Xokleng.

Apresentação de Fernando Xokleng na noite de abertura do 4º ATL Sul. Foto: Rodrigo Barbosa
Thaira Priprá representou a Maloca-UFSC no palco do ATL. Foto: Rodrigo Barbosa
Exibição do filme "Vãnh Gõ Tõ Laklãnõ", que conta a história do povo Xokleng, fez parte da programação. Foto: Rodrigo Barbosa

Política Institucional

É chegada a hora da Bancada do Cocar. A iniciativa coletiva de diversas lideranças se candidatarem nas eleições de outubro de 2022 tem como objetivo aumentar a representatividade indígena na política e já mostra resultados: serão as eleições com maior participação de candidatos indígenas de toda a história. Atualmente, apenas uma pessoa indígena ocupa uma cadeira na Câmara, em Brasília.

O próximo ATL Sul está previsto para acontecer em março de 2023 na Terra Indígena Morro dos Cavalos, território Guarani, em Palhoça, região metropolitana de Florianópolis.