Comunidade na Serrinha completa duas semanas sem energia elétrica
Reportagem e fotografia por Rodrigo Barbosa
“Nós temos aqui idosos e crianças. Idosos que estão emocionalmente super abalados, chegaram a ficar doentes. As crianças também. O banho é gelado, não tem o que fazer”. Com essas palavras, uma moradora da Servidão Maria Rosa Martins, na região da Serrinha, próxima aos bairros Trindade e Carvoeira, define como têm sido as duas últimas semanas para a comunidade local. Desde o dia 7 de agosto, a servidão está sem energia elétrica depois de ter sido cortada pela Celesc, empresa responsável pela distribuição de energia na cidade de Florianópolis. De acordo com a empresa, o corte ocorreu por uma solicitação da Polícia Civil da Trindade, que teria recebido uma denúncia de ligações clandestinas e furto de energia elétrica.
Durante a ação, cinco moradores foram chamados a prestar esclarecimentos e se dirigiram à 5ª Delegacia de Polícia da Capital (5DP) voluntariamente, em seus próprios veículos. Ao chegarem lá, receberam voz de prisão: flagrante por furto de energia elétrica. Todos foram liberados após pagarem fiança no valor de R$ 330, cada.
Eles contestam a acusação e afirmam ter sido a própria companhia de energia quem efetuou as ligações diretas (popularmente conhecidas como “gatos”) entre a rede e as seis casas da servidão. A ligação teria sido realizada no ano de 2013, em substituição a uma unidade consumidora regularizada que era responsável pela distribuição de energia para as famílias. Segundo os moradores, a unidade foi desligada também pela Celesc por conta de problemas na fiação. Mesmo fora de funcionamento, a unidade segue ativa nos registros da empresa.
O registro policial causou espanto na comunidade da Maria Rosa Martins. “Imagina ficar registrado como 155! Puxou a ficha e é o quê? Ladrão”, explica um dos fichados, se referindo ao Artigo 155 do Código Penal, que contempla o crime de furto. Uma segunda moradora emenda: “Ele presta serviço dentro das casas. Além de sem luz, nós vamos ficar sem emprego”. O temor de terem imagem e carreira arruinadas por um crime do qual afirmam ser inocentes fez com que preferissem não ter seus nomes identificados na reportagem. Desde o corte, trabalhadores autônomos que vivem na servidão têm feito jornadas de trabalhos menores. Parte do tempo que era usado para auxiliar no sustento das famílias agora é usado indo de canto a canto em busca de qualquer tipo de ajuda.
Em contato com a reportagem, o gerente do Núcleo Grande Capital da Celesc, Renato Borba Rolim, refutou a versão da comunidade, afirmando que a empresa não realiza ligações diretas. Ele ainda ressaltou que essas ligações caracterizam furto de energia elétrica e, portanto, crime perante a lei vigente.
Não há previsão para que a energia seja reestabelecida na servidão. Segundo a Celesc, o pedido de ligação deve ser feito pelo consumidor junto aos canais de atendimento da empresa. O pedido, porém, só será atendido mediante apresentação do alvará de construção ou do habite-se da propriedade. Os moradores não possuem tais documentos, pois suas casas se encontram dentro do Parque Natural Municipal do Morro da Cruz. Com a impossibilidade de refazer a ligação diretamente com a empresa, um grupo de advogados costura uma liminar na Defensoria Estadual para restabelecê-la através de decisão judicial. Recentemente, uma decisão similar obrigou a Celesc a refazer ligações no bairro Ingleses, no norte da Ilha.
Mas o calvário com a energia elétrica não é, nem de longe, a única batalha travada pelos moradores da servidão Maria Rosa Martins. Desde que a área foi incluída no Parque do Morro da Cruz, uma série de imbróglios afetam diariamente a vida da comunidade. O parque é gerido pela Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente), órgão vinculado à prefeitura.
Histórico da ocupação
Criado em 2005, o Parque do Morro da Cruz é um dos poucos locais onde ainda há Mata Atlântica preservada na Capital Catarinense. Nos entornos do parque, existem ao menos 17 comunidades que já haviam se estabelecido no local antes da criação da unidade de preservação. A maioria delas é composta por pessoas de baixo poder aquisitivo.
Por conta disso, durante o zoneamento do parque, locais já habitados receberam a classificação de Zona de Amortecimento. Ou seja, estão oficialmente fora dos limites do parque mas são importantes para a manutenção do ecossistema no seu interior. Embora seja necessária uma permissão ambiental para intervenções humanas nessas áreas (por exemplo, obras de infraestrutura), elas são consideradas áreas de ocupação permanente e podem receber tais intervenções.
Apenas ocupações em áreas de risco ou posteriores ao ano de criação do parque foram classificadas de maneira diferente, como “Área de Ocupação Temporária”. Foi o caso da Servidão Maria Rosa Martins. Entretanto, uma série de documentos dos moradores comprovam que a ocupação já existe há mais de 40 anos. Ou seja, foi estabelecida ao menos duas décadas antes da criação do parque. Além disso, um parecer técnico assinado pela própria Floram atesta que a servidão não se encontra em área de risco, o que indica que o zoneamento do local teria sido feito de maneira equivocada.
Com a classificação recebida, a servidão faz parte da Unidade de Conservação e, portanto, está sujeita a um processo mais burocrático no que se refere à regularização de propriedades e obras de infraestrutura. Fora os problemas com a rede elétrica, a comunidade da Maria Rosa Martins não tem acesso à água tratada, recorrendo a um poço nos fundos do terreno. Além disso, não há calçamento ou esgoto, e o sistema de drenagem da servidão é quase nulo. Quando chove, tudo vira lama.
Além dos problemas na rede elétrica, comunidade sofre com a falta de calçamento e drenagem no local
A rua Douglas Seabra Levier, que fornece o único acesso à servidão, está localizada fora do parque e conta com todos os serviços que faltam aos vizinhos. Não mais que 100 metros separam o asfalto da comunidade que habita a servidão de terra, em um cenário contrastante. “Usar água assim parece que a gente é primitivo”, reclamou um morador.
O descontentamento da comunidade frente ao poder público se torna ainda maior pelo fato de os impostos estarem em dia. “É gozado porque eu nunca vi nem um dia eles se recusarem a receber o IPTU, quando eles mandam a conta para pagar. A gente paga IPTU e não tem nada. Nada, nada, nada”, diz uma das mais antigas moradoras da servidão, com o comprovante do pagamento do imposto em mãos. “Quando é para [cumprir] os deveres, a gente existe. Quando é para os direitos, a gente não existe”, resume uma vizinha.
Em 2016, um ofício da Floram em conjunto com a Secretaria de Habitação de Florianópolis reconheceu a necessidade de mudança no zoneamento da servidão Maria Rosa Martins. Para tal, seria necessário que um projeto de lei fosse aprovado na Câmara dos Vereadores. Em contrapartida, a comunidade se comprometeu a preservar as áreas de mata no entorno das casas e não aumentar o tamanho da área ocupada – o que, na prática, já acontece.
No ano seguinte, porém, trocou-se a gestão municipal e o projeto se perdeu. Os moradores tentam buscar a numeração para localizar o projeto, mas até hoje não obtiveram sucesso. Até que a questão seja revista, a comunidade da Maria Rosa Martins segue sem água tratada, esgoto ou calçamento. E, até o momento, sem luz em suas casas.