À flor da pele: relatos de quem convive com transtorno de escoriação
Redes sociais e grupos para compartilhamento têm contribuído para levar informação sobre o transtorno ainda pouco conhecido pela população
Reportagem por Luiza Casali
“Quero não ser assim, mas não sei não ser”, é o que passava pela cabeça de Luiza Duarte, quando criança, observando as marcas que ficavam nas pernas depois de coçar as picadas de mosquito. Alérgica a insetos, ela esfregava a pele até sangrar, tanto que vivia com band-aids para proteger as feridas. Com o surgimento da acne na adolescência, começou a cutucar o rosto e outras partes do corpo, buscando escondê-las com maquiagem e roupas mais longas. “Mexeu muito com a minha autoconfiança. Me sentia exausta, o tempo todo alerta para que ninguém percebesse, para que a base não saísse do rosto”. Luiza não sabia do que se tratava até chegar na vida adulta. Ao perceber que não era a única no mundo com esse sofrimento, a jovem de 25 anos, formada em Direito pela UERJ, criou uma iniciativa para troca de experiência entre mulheres com skin picking.
Luiza Duarte, criadora do Círculo de Acolhimento para Mulheres com Skin Picking. Créditos: Luiza Duarte.
O comportamento de provocar lesões na pele de maneira recorrente e sem controle caracteriza o transtorno de escoriação, conhecido também como skin picking ou dermatillomania. A intensidade e a frequência dos episódios variam, assim como as partes do corpo lesionadas, que costumam ser o rosto, as costas, os braços, as pernas e a virilha. Espinhas, cravos, pelos encravados e qualquer relevo presente na pele podem ser gatilhos para o ato de cutucar, beliscar, espremer ou morder. Muitas vezes, uma pequena espinha no rosto percebida ao olhar no espelho dá início a um episódio que pode resultar em uma série de machucados pelo corpo inteiro.
Embora as pessoas que sofrem com skin picking relatem sensações e vivam experiências parecidas, o transtorno se manifesta de diversas formas. Em momentos diante do espelho há mais consciência do comportamento, porém é comum que o ato de cutucar a pele se apresente de maneira automática, em que a pessoa não percebe o que está pensando, sentindo e fazendo. Estar consciente não é sinônimo de conseguir controlar. “Na minha pior fase, era 24 horas por dia no espelho até ficar com o rosto cheio de buracos. Comecei a ter crises de ansiedade, que nunca tinha tido antes, porque eu percebia o que estava fazendo e que não conseguia parar”, relata Luiza.
O transtorno é mais frequente em mulheres, especialmente na adolescência e na menopausa. As oscilações hormonais nesses períodos da vida provocam mudanças no humor e na oleosidade da pele, podendo desenvolver acne, que é um gatilho para o comportamento. De acordo com estudos clínicos, esse grupo representa cerca de 90% das pessoas que buscam ajuda, mas um estudo populacional publicado em 2017 pela pesquisadora Myrela Oliveira Machado, da Universidade do Ceará, aponta que a distribuição é mais homogênea, chegando a cerca de 60% – 40% a relação entre homens e mulheres afetados. A diferença mostra que, de forma geral, os homens tendem a buscar menos ajuda.
Muitos nunca chegam a ter um diagnóstico especializado. É o caso de Geison, de 37 anos, pintor residencial em Parobé, no Rio Grande do Sul, que cutuca a pele desde criança. “Na infância nunca me levaram em um médico, me diziam para tomar sal amargo, tomar outra coisa que ia passar. As crenças te limitam a chegar em algum lugar, tipo um médico, por frustração, por medo”, desabafa. Ele tem feridas que já duram quase dois anos, começando em um lugar e se alastrando de tanto puxar. “Se eu fico preocupado, procuro bolinhas na pele e uso alicate de cutículas para tirar um cravo ou pelinho que nem tá inflamado, até que se transforma em uma ferida que mexo diariamente”. De tanto as pessoas olharem e condenarem o comportamento, ele percebeu que precisava de ajuda. Por fim, um psiquiatra amigo da família indicou que se tratava de skin picking.
Maria, de 42 anos, cutuca as pernas desde os três anos, por conta das alergias que tem. “As manchas ainda estão aqui, em uma parte da perna onde minhas mãos alcançam. É um hábito que sempre passou despercebido, cheguei a frequentar oito dermatologistas e nenhum identificou o transtorno”, conta ela ao apontar a câmera do celular para as pernas na chamada de vídeo. Ela acredita que cutucar a pele foi uma forma que encontrou para lidar com o mundo. Neta de imigrantes japoneses, com uma família tímida, ficava desconfortável em situações em que precisava se expor, por exemplo, no colégio.
A pandemia agravou a ansiedade de Maria, que trabalha na área de educação, tanto que ela passou a cutucar feridas na orelha e beliscar a pele da boca. Ela foi diagnosticada com o transtorno apenas no início de 2021. “Quanto mais cedo você descobre, mais rápido é para tomar consciência e buscar resolver. Hoje sinto que ainda preciso estar medicada e, apesar de ter descoberto os gatilhos, não é fácil de me controlar”. O diagnóstico não se dá pela quantidade de lesões, mas pelo impacto que elas geram na vida da pessoa. As consequências estendem-se da autoestima para a vida social, acadêmica, profissional e amorosa, podendo levar ao isolamento. “É preciso buscar ajuda ao notar os primeiros sinais de que você está deixando de fazer coisas que gosta e quer em razão do aspecto da pele”, alerta a psicóloga comportamental Vanessa Martins, que aborda saúde mental e comportamentos compulsivos no Instagram @psi.vanessamartins. Ela, que nunca estudou o transtorno na faculdade, se interessou pela temática de controle dos impulsos porque sofria com tricotilomania, outro tipo de comportamento focado no corpo que se caracteriza pela compulsão em arrancar fios de cabelo.
A ciência ainda não descobriu a causa do transtorno, mas especialistas consideram que é multifatorial, envolvendo desde questões genéticas e relacionadas à família, até conflitos emocionais na história de vida. “Já atendi pacientes que começaram a se cutucar como um alívio de tensão e ansiedade, e outros que vivenciaram traumas, como um abuso sexual, que motivaram o comportamento”, conta a psicóloga.
Atualmente, o skin picking é classificado como um transtorno correlato ao TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), assim como tricotilomania. Entretanto, há estudos que questionam esse agrupamento, como o da psiquiatra Elen Oliveira, graduada em medicina pela Universidade do Ceará. Em sua tese de doutorado, ela investigou a semelhança do transtorno de escoriação com o TOC – que apresenta características obsessivo-compulsivas – e com o transtorno de jogo – dependência comportamental marcada pela impulsividade. A ideia era descobrir com qual quadro o skin picking apresentava mais similaridades. A pesquisa resultou em um gráfico que mostra um perfil híbrido tanto em relação a sintomas quanto a comorbidades, pois não se assemelhou especificamente a nenhuma das doenças. “É comum a presença de sintomas obsessivos compulsivos, por exemplo, mais rigidez e pensamentos frequentes sobre a pele, mas não é um TOC”, explica a psiquiatra.
Distribuição do Transtorno de Escoriação (TE), Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e Transtorno do Jogo (TJ) de acordo com os escores combinados de Impulsividade e Compulsividade. Créditos: Elen Oliveira.
O transtorno também se relaciona com ansiedade e depressão. Essas doenças são as duas principais comorbidades, embora não exista evidência de uma causa comum, porque ainda não se sabe quais os neurotransmissores envolvidos no skin picking. Estar ansioso pode ser um gatilho para o comportamento, enquanto um quadro depressivo pode piorar as consequências, como o isolamento e a falta de autocuidado. Durante a pandemia de Covid-19, observou-se um aumento nos sintomas de comportamentos focados no corpo, associado à ansiedade e menos acesso a ajuda especializada. É o que mostra uma pesquisa da Universidade de Chicago, divulgada no final de 2020.
Estudos sugerem que menos de 20% das pessoas que têm skin picking procuram ajuda. “Isso quer dizer que elas não veem como um problema. Como é comum, afetando aproximadamente entre 1,4 e 5,4% da população mundial, muitas vezes é encarado como hábito”, explica a psicóloga Vanessa. Além de ser considerado uma mania ruim, as recaídas e tentativas mal-sucedidas de parar podem levar à crença de que não há tratamento. “É importante levar conhecimento para que as pessoas reconheçam o que é e entendam que podem melhorar”, complementa.
Dez anos convivendo com skin picking
Júlia estuda Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e mora com os pais e o irmão na zona Leste de São Paulo. A jovem de 22 anos cutuca a pele há dez anos, desde que começou a menstruar e desenvolveu acne no rosto. Era comum ir ao banheiro depois do colégio para se cutucar diante do espelho e, mesmo durante a aula, acabar mexendo em uma ferida. “Como você faz para estancar um machucado no rosto que não para de sangrar? Meus colegas vinham falar comigo e eu tentava disfarçar cobrindo com o dedo, com o cabelo”, lembra ela.
Júlia Teixeira, participante do Círculo de Acolhimento para Mulheres com Skin Picking. Créditos: Júlia Teixeira.
As pessoas a encaravam e faziam perguntas sobre as marcas até que Júlia, que adora conversar, passou a não olhar mais nos olhos dos outros, além de evitar expor a pele, tirar fotos e ver seu reflexo no espelho. Ela conta que tentava se esconder. “Eu não me perguntava o que tinha de errado, mas sentia algo ruim. Tinha raiva por fazer isso comigo e de como as pessoas reagiam”.
As crises costumam acontecer quando ela está sozinha e, na adolescência, a mãe tentava assustá-la para que parasse, abrindo a porta do banheiro sem avisar, o que intensificava a angústia e a raiva da menina. Com a crença de que o problema era a acne, ela também levava Júlia a consultas com dermatologistas e gastava com produtos caros que não surtiam efeito. “Eu ficava ansiosa porque ela bancava os tratamentos e ainda me julgava, dizia que eu estava feia”. Era um ciclo sem fim, até que um dia a mãe perguntou: “Por que vou te levar de novo se você não para de cutucar a pele?”.
Foi apenas aos 18 anos que a jovem descobriu do que se tratava. Ela pesquisou no Google “vontade de cutucar” e se deparou com informações sobre um problema que a partir de então tinha nome: transtorno de escoriação. A felicidade que sentiu no momento parece difícil de colocar em palavras, pois finalmente encontrou explicação para o que fazia e viu que a culpa não era dela. Entretanto, a mãe resistiu em aceitar que era preciso buscar ajuda psicológica e psiquiátrica, concordando apenas depois que um dermatologista confirmou a importância de dar esse passo.
Esperava-se que a medicação ajudasse a controlar os impulsos, entretanto, o ciclo que Júlia viveu com os tratamentos para a pele se repetiu no psiquiatra, com várias tentativas sem sucesso de melhorar. “Era um tabu total em casa e a gente esperava que o remédio fosse a cura, como você toma antibiótico para a amigdalite e fica bem. Na verdade, o skin picking me levou a tratar ansiedade e fobias, que colocavam muitos obstáculos na minha vida e me impediam de viver. Estava em um período conturbado, fazendo cursinho, com relacionamentos problemáticos e conflitos dentro e fora de casa, então os remédios não faziam efeito para o transtorno em si”.
As manifestações mudaram ao longo do tempo, desde o tamanho e quantidade de feridas até as partes do corpo. Júlia retirou as luzes que tinha em seu espelho a fim de evitar sentir vontade de mexer no rosto, o que alterou o foco do skin picking. “Deitada antes de dormir, eu ligava a lanterna do celular e cutucava o braço, o peito, as costas e a barriga. Tirei os lugares em que acontecia e passou a fazer parte da minha rotina, já não tenho mais aquele momento de alívio diante do espelho”, relata.
Ela começou a sentir melhora durante a pandemia, em que ficou mais tempo em casa e focou em tratar outras questões de saúde mental, e depois o skin picking. Atualmente, o tratamento consiste em N-acetilcisteína, uma alternativa conhecida de medicação para o transtorno, e outro remédio para ajudar no controle dos impulsos, que costuma ser usado em casos de alcoolismo. Júlia também faz psicoterapia e adota estratégias como colocar unhas de fibra de vidro para dificultar o comportamento. Para ela, ainda assim, são passos lentos. “Eu não suporto como está sendo hoje. Eu não consigo fazer minhas coisas porque tô ocupada me cutucando, ao ponto de me atrasar para compromissos, além de que é caro bancar dois remédios, mais a aplicação e a manutenção das unhas. E minha mãe ainda me pergunta o que falta para eu melhorar”, desabafa.
Skin picking em pauta
Maya Medina, de São Paulo, é uma das poucas influenciadoras brasileiras que abordam o skin picking. No perfil do Instagram @mayamedina, a psicóloga de 25 anos mostra, há pouco mais de um ano, o dia a dia de quem cutuca a pele, com o propósito de levar informação e acolher pessoas que também sofrem com o transtorno. A acne no rosto desde a adolescência é o maior gatilho para o Skin Picking, que começou aos onze anos. Mas o perfil, que já tem quase três mil seguidores, surgiu com um propósito quase oposto. Em 2019, com o sonho de ser modelo, criou uma conta para expor suas fotos, sempre com várias camadas de maquiagem para esconder as espinhas e feridas. “Tive todo um processo fora das redes sociais até conseguir chegar lá”, explica a jovem.
Publicação de Maya no Instagram em março de 2022. Créditos: Instagram @_mayamedina.
Em meio à pandemia de Covid-19, isolada e morando com a mãe, Maya passou a sofrer mais com ansiedade e viu os episódios de auto-escoriação se tornarem mais frequentes e intensos. “A pessoa que mais tinha comentários negativos sobre a minha pele era a minha mãe, então cheguei a um ponto em que usava maquiagem pesada até dentro de casa”.
Ela decidiu passar alguns meses na casa da avó em Atibaia, no interior do estado, e foi lá que gravou os primeiros stories de cara limpa. Depois de conhecer o movimento pele livre e passando mais tempo fora de casa, no sítio da avó, a psicóloga se acostumou aos poucos à ideia de tirar foto sem maquiagem. “Um dia tirei uma foto sorrindo e mandei para uma amiga, mas me senti ridícula por me achar bonita sendo que tinha tantas manchas e feridas no rosto. A partir daí comecei a me obrigar a tirar fotos como se estivesse me sentindo linda. As primeiras vezes eu estava travada, mas fui pegando confiança”.
Ainda no Instagram de modelo, em agosto de 2020, Maya trouxe pela primeira vez uma discussão sobre pressão estética em uma publicação que comparava uma foto de biquíni “posada” e outra mais espontânea. “Foi um passo importante, mas era um tema muito cômodo para mim, uma mulher branca e magra, para quem era fácil se contorcer a fim de se encaixar no padrão de beleza. Eu estava fugindo da minha questão que sempre foi a pele”, explica a influenciadora. Depois que apareceu nos stories mostrando o rosto sem maquiagem, o perfil voltado para a vida de modelo perdeu o sentido. “Pessoas pararam de me seguir, e outras começaram a me acompanhar. Talvez não teria acontecido se não fosse a pandemia, em que eu surtei e coloquei para fora”.
Maya aproximou-se do movimento pele livre nas redes sociais, mas sentia que não pertencia ao grupo. Enquanto as outras pessoas sofriam de doenças dermatológicas e não tinham escolha, ela sentia-se culpada porque estava causando as feridas. “A ilusão de que temos controle sobre o comportamento torna difícil entender que não controlamos o que estamos fazendo com a nossa pele”. Para a jovem, o maior passo foi entender que a culpa não era dela.
Formada em psicologia pela PUC-SP, Maya nunca estudou sobre o transtorno na graduação e não se identificou quando teve aulas sobre TOC. “Eu não trazia o assunto à tona na terapia porque fazia tão parte de mim que não parecia algo a se tratar, porque da mesma forma que minha irmã gostava de estalar os dedos, eu gosto de me cutucar”, relembra a jovem, que escutou a vida inteira que seu problema era falta de controle. “Minha mãe comparava ao vício do cigarro. Se ela conseguiu parar de fumar, como eu não poderia parar de me cutucar?”.
A falta de informação afeta quem sofre com o problema e, assim, muitos demoram para perceber que o “hábito ruim” pode ser tratado. Foi no Instagram que Maya descobriu o nome do transtorno, em 2020. Uma blogueira estrangeira fez um desafio para não se cutucar durante uma semana e criou um grupo no Whatsapp, onde a jovem perguntou se alguém mais se cutucava compulsivamente. Veio uma enxurrada de respostas positivas. Depois de pesquisar e conversar com a terapeuta, ela decidiu abrir o jogo no Instagram, entendendo que podia falar de pele livre porque o ato de se cutucar não é uma decisão voluntária. Foi assim que ela começou a produzir conteúdo sobre skin picking, que atualmente é o foco do perfil.
Compartilhando nos stories e nos posts o dia a dia de quem convive com o transtorno, a influenciadora descobriu que existem muitas pessoas como ela, mas que estão escondidas. “Percebo que o que eu falo faz eco nas pessoas e gosto quando elas vêm conversar comigo”. Além disso, ela mostra que o tratamento é um processo com altos e baixos. “Eu não parei totalmente. A melhora é muito mais na frequência, ou seja, percebo que consigo parar mais vezes antes de me machucar”. Maya conta que expor o rosto no Instagram deu-lhe mais coragem na vida real. “Se já postei para mais de dois mil seguidores, por que não posso sair na rua sem maquiagem? Já é concreto que minha pele é assim e não tem surpresa para as pessoas que me conhecem”.
Para além das crises: as consequências na relação consigo mesmo e com o outro
Os machucados são apenas a superfície do problema. O que mais causa sofrimento são os efeitos que se estendem para outras áreas da vida, vinculados à vergonha e culpa por cutucar a pele. “O primeiro sinal de alerta é o desconforto, você tentar parar e não conseguir. A compulsão coloca o ato em um lugar de necessidade, que você não consegue ficar sem”, alerta a psicóloga comportamental Vanessa Martins.
Conforme o quadro se agrava, costuma surgir medo de exposição, dificuldade de se relacionar e até isolamento. Um exemplo é deixar de ir aos lugares que gosta por medo do julgamento. “Quanto mais restritiva se torna a sua vida, deixando de fazer coisas atreladas aos teus valores, significa que está tendo maior impacto”, explica Vanessa. É preciso buscar ajuda a partir do momento que começa a trazer sofrimento para a vida pessoal, profissional, social e amorosa.
Além de despender dinheiro com cosméticos e outros materiais para tratar as lesões, as pessoas passam a dedicar tempo para escondê-las, o que pode levar a atrasos e a perder oportunidades na vida profissional e acadêmica. A psiquiatra Elen pontua que muitas vezes o estigma toma conta da vida psíquica de modo que a pessoa se retira da vida social. “Na maioria das vezes, o trabalho exige socialização e o profissional pode deixar de progredir na carreira porque se afasta das pessoas”.
Devido ao constrangimento e ao medo de não serem compreendidas, as pessoas com esse distúrbio se esquivam de relacionamentos amorosos ou evitam criar intimidade com seus parceiros. “Na adolescência, eu cheguei a cutucar o cantinho da boca e pensava que ninguém ia querer me beijar. Com o meu primeiro namorado, eu era dependente de base e me escondia no banheiro para mexer na pele”, conta Luiza.
A pressão estética exerce um papel significativo no modo como se lida com o skin picking. Maya argumenta que o medo do olhar do outro não existiria se a sociedade fosse diferente do que é. “Se o cutucar não deixasse marcas, poucas pessoas se incomodariam, por isso digo que o maior sofrimento é o julgamento. O aspecto da tua pele não deveria gerar desvalorização. Damos um valor maior do que deveríamos para uma pessoa mais bonita, a respeitamos mais, por quê?”.
Estratégias para lidar com o transtorno
“Mudar o comportamento é difícil. Até hoje não temos medicamentos que imponham essa mudança, então precisamos de estratégias para conseguir superar”, aponta a psiquiatra Elen Oliveira. Uma das alternativas para tratar quadros mais graves é a N-acetilcisteína. Criado inicialmente como xarope para tosse, o medicamento regula níveis de uma substância chamada glutamato, que aumenta comportamentos de dependência quando está em excesso no corpo. Entretanto, ele funciona em cerca de metade das pessoas. “Como a taxa de resposta da psicoterapia é maior, essa é a primeira escolha em quadros mais leves”, complementa Elen.
Embora a manifestação clínica seja similar, cada caso é único. A psicóloga Vanessa explica que a internet fornece informações mais genéricas, e é na psicoterapia que se pode olhar para si mesmo: “Precisamos observar o que acontece quando eu me cutuco e o que isso me traz. É uma fuga de emoções? Estou buscando uma sensação prazerosa e de relaxamento?”.
A manifestação é uma parte do problema, mas a raiz costuma ser mais profunda. “Se é uma maneira de aliviar a ansiedade, buscamos outros jeitos de lidar com isso. Você se sente culpada, mas quem sabe foi o único recurso que teve para lidar com um sofrimento. E você vai se culpar pela única forma que encontrou? Não adianta tirar o skin picking sem trabalhar a origem”, esclarece Vanessa. Ela considera essencial entender por que o ato está presente na vida da pessoa, assim é possível construir repertórios de enfrentamento para que não seja o único recurso disponível.
A psicoterapia é um processo não linear que depende de uma série de fatores. Para a psicóloga, o início do tratamento é dedicado a construir autoconhecimento e os efeitos podem demorar meses para aparecer. “Não quer dizer que você não vai nunca mais cutucar a pele, mas a frequência vai diminuir e você vai ter maior controle”. A autoconsciência é o primeiro passo, porque ajuda a desenvolver a capacidade de controle. “Uma das estratégias consiste em anotar diariamente os momentos em que se percebe o comportamento para identificar os contextos. Percebendo, por exemplo, que a vontade surge lendo um livro, pode-se criar mecanismos para manter as mãos ocupadas ao iniciar a atividade”, aponta Vanessa. Uma dica é utilizar fidget toys, objetos sensoriais que permitem ações repetitivas e contribuem para alívio de ansiedade e estresse. As opções vão desde bolas e cubos até brinquedos de silicone com pequenas bolhas para apertar.
É comum que pacientes que ainda não identificaram o transtorno busquem ajuda em consultórios dermatológicos.
A dermatologista Andrea Ortega indica que os profissionais avaliem se as feridas são causadas pelo paciente ou não. “A pessoa pode achar que é uma doença de pele, mas quando se trata de skin picking somos coadjuvantes, porque o principal tratamento é psicológico e psiquiátrico”, afirma. Ainda que seja difícil recuperar a pele sem controlar os impulsos, segundo Andrea, é possível reduzir os gatilhos, como a acne. “Os poros sempre vão existir, mas podemos diminuir o tamanho e reduzir a secreção para tornar menos atrativo”.
Alguns cuidados podem ser tomados para minimizar os danos. “Quando cutucamos a pele, rompemos a barreira cutânea que nos protege do exterior. Para refazer essa proteção e evitar infecções fúngicas e bacterianas, é bom manter uma boa higiene e hidratar a pele com cremes neutros e sem cheiro”, recomenda Andrea. Além de manter as unhas curtas e aplicar hidratante para dificultar o comportamento, é possível utilizar adesivos hidrocolóides. Esses curativos escondem as lesões e auxiliam no processo de cicatrização.
Além disso, ter uma rede de apoio é fundamental para melhorar, portanto a psicóloga Vanessa recomenda aos familiares e amigos assumir uma postura acolhedora, não punitiva e julgadora, e abrir espaço para a escuta. As seguintes perguntas que podem ser feitas para iniciar uma conversa: “percebi que está cutucando a pele, está acontecendo alguma coisa?” ou “reparei que aumentou de frequência, quer conversar?”. A influenciadora Maya, por exemplo, tem um combinado com o parceiro. Se ele percebe que ela está se cutucando, a avisa, seja falando ou segurando sua mão, e ela decide se quer parar. “Em alguns casos eu paro porque percebo que não preciso continuar, e às vezes não”, explica. Já em relação à mãe, que costumava fazer comentários negativos com frequência, Maya impôs limites pedindo que não falasse mais nada para ela, pois o julgamento gerava culpa e angústia.
Identificação e acolhimento
Sentimentos como solidão e incompreensão acompanham quem tem skin picking e demora para descobrir. Júlia, cuja história foi contada há pouco, desabafa: “A maioria de nós passa por invisibilidade, não entendemos o problema e os outros muito menos. Quando você descobre que é um transtorno e encontra pessoas iguais a você, é como se pudesse finalmente respirar”.
As redes sociais têm sido aliadas para conectar pessoas e disseminar informação sobre o transtorno, que ainda é tão desconhecido. O grupo Dermatilomania e Skin Picking Brasil, no Facebook, conta com mais de 8,8 mil membros que compartilham suas histórias e estratégias, como curativos, produtos dermatológicos e fidget toys. Nas publicações, pessoas que nunca se viram antes expõem suas dificuldades e prestam apoio umas às outras. A psiquiatra Elen, que produz conteúdo no Instagram @elenoliveirapsiquiatra e promove grupos de terapia online, aponta que fazer parte de uma comunidade ajuda a manter a motivação ao longo do processo de tratamento.
Para além das redes sociais, surgem iniciativas para estreitar laços e formar comunidades de apoio, uma delas a partir de Luiza Duarte, cujo relato abriu a reportagem. No final de 2021, a jovem de 25 anos, formada em Direito pela UERJ, criou o Círculo de Acolhimento para Mulheres com Skin Picking, online e gratuito. O grupo reuniu cerca de dez mulheres em seis encontros virtuais facilitados por ela, abordando os sentimentos que surgem em uma crise, relação com a família, relacionamentos amorosos, entre outros. Luiza defende a importância de ter um espaço para se reconhecer nas outras. “A proposta é ser um lugar de troca de experiência, ter uma intimidade para contar umas com as outras que é diferente de somente compartilhar dicas”.
Com lágrimas nos olhos, Luiza traduz o que viveu em uma palavra: emocionante. “Foi uma experiência de verdadeira potência, nunca vivi algo que tenha me alcançado tanto”. Para ela, a identificação é transformadora em um nível simples e complexo ao mesmo tempo. “Aprendi com as outras mulheres que cada uma é única, mas há um atravessamento dos padrões, do sofrimento e da resiliência. Tem pontos tão parecidos na vida das participantes que era de ficar deslumbrada como a tua história atravessa a história de outras”.
Maya, que produz conteúdo diariamente sobre o tema e ajuda milhares de pessoas levando informação, sentia falta de se identificar com outras pessoas e não ser apenas a referência. “É uma compreensão da dor que eu não preciso explicar. Pessoas próximas podem até respeitar, mas não entendem”. Ela e Júlia se conheceram nos encontros. A estudante complementa que se sente livre nesse espaço. “No dia a dia, você busca controlar e esconder, mas aqui se encaixa, pode falar sobre o que faz que os outros vão entender”. Para Júlia, o alívio de ser entendida dá uma trégua, porém não resolve o transtorno. “Falar abertamente me faz ter mais paciência e menos raiva de mim mesma, mas não gosto de olhar como um tratamento. O mais importante não é a melhora, é ter na minha vida pessoas que me entendem”.
Reportagem produzida na disciplina Linguagem e Texto Jornalístico IV, ministrada pela Profa. Dra. Maria Terezinha da Silva, no segundo semestre de 2021.