Reportagem de Rodrigo Barbosa
Fotos por Rodrigo Lino Nunc-Nfôonro
Era uma vez um pássaro sagrado que habitava as araucárias. Um gavião de bico vermelho chamado Konglui. O guardião dos Xokleng.
“Quando vinha o bugreiro para matar, o passarinho avisava e eles [indígenas] corriam, escondiam. Ali embaixo tem a cachoeira, tem a caverna onde eles iam se esconder”, conta Cullung, anciã do povo Xokleng.
Mesmo com a proteção de Konglui, muitos partiram. Boa parte dos Xokleng foram assassinados após a invasão dos brancos, levando este povo à beira da extinção. Veitxá, pai de Cullung, viveu para além dos cem anos de idade. Foi um dos que a vida foi salva pelo pássaro. Ainda criança, teve seu cordão umbilical enterrado onde hoje é a Floresta Nacional (FLONA) de São Francisco de Paula, na região nordeste do Rio Grande do Sul. A prática, para os Xokleng, confere ao território caráter sagrado.
Adulto, Veitxá se tornaria o primeiro cacique de seu povo desde que deixaram as araucárias em direção aonde desce o Sol, a noroeste dali. Em meados do século XX, Laklãnõ (“aonde desce o Sol”) se tornaria uma nomenclatura alternativa do povo Xokleng, cujo único território reconhecido pelo Estado brasileiro até hoje fica encravado no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, a 450 quilômetros de distância das araucárias do nordeste gaúcho.
Acontece que Laklãnõ diz respeito apenas a uma parte do que, antigamente, era o povo Xokleng. Espalhados por todo o Sul do Brasil, eram divididos em grupos familiares que se diferenciavam por nomes que indicavam alguma característica geográfica ou animal que habitava a região.
Konglui e Laklãnõ eram dois desses nomes, mas haviam outros. A organização social original dos Xokleng ainda é objeto de estudo de indígenas e antropólogos. Um fato é consenso: nos anos 1910, só restavam os Laklãnõ do Alto Vale do Itajaí. Os demais grupos morreram ou foram expulsos de suas terras.
Os anos se passaram e Cullung, que nasceu refugiada numa aldeia do povo Kaingang, voltou com o pai algumas vezes a seu território ancestral. Numa das últimas visitas, em 2015, lembra que a paisagem do entorno da FLONA de São Francisco de Paula ainda era tomada pelas araucárias.
Pouco depois, isso mudaria completamente.
Em 12 de dezembro de 2020, pouco mais de dois anos após a morte do pai, Cullung retornaria a seu território ancestral acompanhada de vinte e cinco parentes. Desta vez, para ficar. Comandada por uma mulher que tem liderança correndo nas veias e sob a proteção do pássaro sagrado, nascia a retomada Xokleng Konglui.
As demarcações de territórios indígenas no Brasil se deram, sobretudo, após a Constituição de 1988. Dali em diante, mais de 400 processos de demarcação foram homologados e encontram-se em diferentes etapas. Para cada processo, há um estudo antropológico atestando a ocupação tradicional de determinado território. A Constituição garante a preservação de território e cultura de povos indígenas através das demarcações.
Mas nem todos os territórios tradicionais do Brasil têm processos demarcatórios homologados. Uma série de povos foram forçados a migrar ao longo da história e outros tantos chegaram à beira da extinção. Para estes povos, o processo de provar que o seu território é de ocupação tradicional costuma ser mais difícil. É o caso dos Xokleng.
Interesses políticos, econômicos e o excesso de burocracia são outros fatores que podem fazer os processos demarcatórios, de uma maneira geral, se arrastarem por décadas. A demarcação da Terra Indígena Laklãnõ, no Vale do Itajaí, aguarda sua conclusão há pelo menos 20 anos.
Uma retomada, como o próprio nome indica, trata-se do retorno de determinado povo indígena a uma área tradicional que ainda não está com seu processo demarcatório homologado. Muitas vezes, ocupar o território é a maneira encontrada pelo movimento indígena para reivindicar mais agilidade na demarcação, proteger a área de ameaças (como o desmatamento das araucárias) e reafirmar sua ancestralidade. Para além da reocupação territorial, uma retomada reconecta e fortalece culturas de comunidades inteiras.
Segundo o Ministério Público Federal, a comunidade Xokleng Konglui reivindica a área da FLONA ao menos desde 2009, sendo que a Funai tomou conhecimento no ano seguinte. A demanda foi formalizada pelo hoje falecido cacique Veitxá. Ainda de acordo com o MPF, mais de uma década depois, nunca houve pronunciamento da Funai ou da União sobre a tradicionalidade do território. Nunca foi designado um grupo técnico para realizar os estudos antropológicos que poderiam atestar legalmente a FLONA como território Xokleng.
As alegações do Ministério Público Federal fazem parte de uma Ação Civil Pública protocolada em 2021 na Justiça Federal. A ação tem como objetivo cobrar que Funai e União realizem os estudos antropológicos necessários para o reconhecimento do território. Mesmo com a ação, o processo ainda não andou. A União delega à Funai a função de iniciar os estudos antropológicos. A Funai alega excesso de processos e empecilhos decorrentes da pandemia de Covid-19 para justificar o atraso de dez anos no atendimento das demandas dos indígenas.
O documento do MPF ainda menciona um estudo anterior realizado por um etnohistoriador e a oitiva da comunidade Konglui como evidências de que o local pertence aos Xokleng. Cullung foi a representante de seu povo no processo e relatou, além dos acontecimentos envolvendo o pai, a existência de casas subterrâneas e de um cemitério no local. Neste cemitério, está enterrada Kozikãn (também conhecida como “vó Bugra” ou “vó Rita”), liderança histórica do povo Xokleng Konglui e ancestral direta da atual cacica da comunidade.
O retorno dos Xokleng não foi bem visto pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão federal responsável pela gestão da Floresta. Inicialmente alocados dentro da própria FLONA, os indígenas acabaram se retirando voluntariamente semanas depois para evitar uma represália violenta visando cumprir um processo de reintegração de posse movido pelo ICMBio assim que a retomada teve início. Desde então, vivem às margens da RS-484, ao lado de uma das entradas da floresta.
A alegação do ICMBio para mover o processo é de que não se tratava de uma retomada, mas de uma “invasão”. O órgão usa a tese do Marco Temporal para rechaçar a tradicionalidade do território. Este, no entanto, não é lei no Brasil. A tese jurídica do Marco Temporal, defendida pela bancada ruralista do Congresso Nacional, determinaria que indígenas só poderiam reivindicar territórios por eles ocupados em 1988, mas sua validade ainda não foi julgada. O Supremo Tribunal Federal (STF) vem atrasando sistematicamente a votação que envolve a constitucionalidade do tema, num processo que também envolve o povo Xokleng (neste caso, os Laklãnõ).
Na beira da RS-484, atualmente vivem cerca de 40 indígenas, incluindo crianças, abrigados em barracos feitos de lona e madeira. A comunidade tem dificuldades de acesso à água potável, energia elétrica e internet. A escola da retomada tem estrutura precária e em vários documentos que permeiam os diferentes processos judiciais envolvendo a comunidade há relatos de vulnerabilidade econômica e alimentar. A venda de artesanato é hoje fonte de renda de boa parte dos moradores da retomada, que convivem com a presença constante da Polícia Federal, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e de servidores do governo e do parque.
Além da precariedade no acesso a diversos direitos fundamentais, os dois anos de retomada têm sido marcados por constantes batalhas judiciais. O processo de reintegração de posse e a Ação Civil Pública são duas delas, mas há uma terceira que tem causado problemas aos Xokleng. Trata-se da privatização da Floresta Nacional.
Em abril de 2021, os ministros Paulo Guedes (Economia) e Ricardo Salles (então Ministro do Meio Ambiente, hoje deputado federal eleito) assinaram uma resolução para conceder duas FLONAS localizadas em território gaúcho à iniciativa privada – o assunto era pauta no Governo Federal desde o ano anterior. A FLONA de São Francisco era uma delas, em uma concessão de 30 anos. A outra Floresta Nacional do processo é a do município de Canela, que tem áreas reivindicadas pelo povo indígena Kaingang.
O processo de concessão foi conduzido pelo ICMBio, que é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Os últimos dois presidentes da autarquia (Fernando Lorencini e Marcos Simanovic) fazem parte do grupo de militares nomeados para cargos de chefia em diversos órgãos federais durante o governo Bolsonaro.
A resolução foi assinada no dia 19 de abril, dia em que se comemora o “Dia do Índio”, rebatizado recentemente pelo movimento indígena como Dia da Resistência Indígena. O fato foi interpretado pelas comunidades como uma provocação. Mais uma vez, o Ministério Público Federal entrou no jogo.
No dia 10 de junho de 2021, uma nova Ação Civil Pública chegou à Justiça Federal, em caráter de urgência, pedindo a suspensão do processo de concessão. De acordo com o MPF, a comunidade Xokleng, por reivindicar legalmente o território, teria de ser devidamente consultada antes da licitação. Isto porque a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário, determina que os povos indígenas têm direito a uma consulta “livre, prévia e informada” antes que sejam tomadas decisões que interfiram em seus bens ou direitos, o que não ocorreu. Além disso, o MPF pontua que os processos demarcatórios no local “só não puderam ser definitivamente conformados em razão da omissão do Poder Público em realizar os estudos antropológicos devidos”.
A alegação do ICMBio foi a de que o edital de licitação da FLONA não continha projetos executivos, logo não seria possível ainda determinar o tamanho do impacto do processo para a comunidade. Segundo o órgão, estudos relativos a impactos ambientais e culturais seriam realizados “em seu devido tempo”, após o processo licitatório. Entretanto, dentre as obrigações da empresa vencedora do pleito, há determinações como gestão de serviços de hospedagem e comércio, construção de estruturas como estacionamentos, além da reforma de lagos e trilhas.
O Instituto ainda alegou que teria feito uma consulta, mas o procedimento não foi aceito pela Justiça e pelo Ministério Público. “O ICMBio tentou burlar. Eles foram lá na comunidade e chamaram o pessoal quando a Cullung não estava. Levaram eles em Porto Alegre, falaram que iam privatizar a Floresta Nacional e que aquilo ali era uma consulta prévia. Quiseram empurrar uma consulta prévia sem os requisitos da OIT/169”, relata Rodrigo Lino Nunc-Nfôonro, indígena Xokleng graduado em Direito pela UFSC e pesquisador do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A presença de uma liderança instituída pela comunidade é um dos pré-requisitos para que a consulta seja válida. O reconhecimento da liderança de Cullung é atestado em diversos documentos do processo, inclusive de autoria do próprio ICMBio.
O juiz Marcelo Roberto de Oliveira, da 3ª Vara Federal de Caxias do Sul, deu razão à comunidade e ao MPF, destacando que o ICMBio e as demais instituições envolvidas tinham total ciência da reivindicação territorial dos Xokleng. Segundo o juiz, a privatização da FLONA interfere diretamente no processo demarcatório dos indígenas. Ele pontuou que valores culturais e espirituais dos Xokleng serão “severamente prejudicados”, “cabendo enfatizar que tais culturas e valores não são passíveis de mensuração por quem não as vive – razão pela qual, inclusive, os estudos antropológicos e a definição sobre as demarcações são pontos de tangência com o objeto das concessões”.
Entre audiências de conciliação e recursos judiciais, a licitação da FLONA de São Francisco sofreu atraso, mas aconteceu. Em 14 de setembro de 2021, foi assinado o contrato entre ICMBio e o Consórcio Parque do Sul, formado pelas empresas Urbanes e STE Engenharia. O valor do contrato supera os R$ 70 milhões.
A atuação efetiva das empresas dentro da Floresta, entretanto, está suspensa. A Justiça determinou que o processo só poderá ser concluído após a realização de uma consulta à comunidade Xokleng dentro dos devidos trâmites legais.
Domingo, 31 de julho de 2022. De dentro da retomada, Cullung ouve um barulho vindo do céu. O som lhe era familiar, mas há tempos não ecoava pelo planalto de São Francisco de Paula. Não demorou até que a cacica avistasse um casal se aproximando dos barracos. Dois gaviões de bico avermelhado. Foi a primeira aparição de Konglui desde o começo da retomada, um ano e meio antes.
Pousaram pouco acima de um dos barracos. Cullung se aproxima do casal de aves e, a pouco mais de cinco metros de distância, começa a conversar em seu idioma materno. Com a voz calma, conta a Konglui que os Xokleng estão de volta para casa e pede pela proteção do pássaro sagrado.
No dia seguinte a comunidade travaria uma das principais batalhas pelo direito ao território.
Em 1º de agosto, uma audiência de conciliação na Justiça Federal do Rio Grande do Sul discutiu as privatizações das florestas de Canela e São Francisco de Paula, com presença de lideranças dos povos Kaingang e Xokleng, além de representantes da Funai, do ICMBio, do Ministério Público e do Consórcio Parque Sul. “O ICMBio veio com a proposta de fazer a consulta prévia sem nenhuma contrapartida”, lembra Lino Nunc-Nfôonro. Impedidos de entrar na floresta desde a reintegração de posse, os Xokleng exigiam contrapartidas por parte do ICMBio.
Um dia após a visita de Konglui, em cinco horas de debate, a retomada reconquistou o direito de transitar por seu território sagrado. Será assim até que a Funai resolva, enfim, designar um grupo de trabalho para realizar estudos antropológicos dentro da FLONA. Até lá, o mapeamento de locais de interesse antropológico cabe à própria comunidade.
O acesso, porém, não é irrestrito. Os Xokleng devem avisar à chefia do parque, via email e com antecedência de cinco dias, sempre que quiserem realizar alguma atividade dentro da floresta. Os dois dias de prazo para a resposta fazem com que a comunidade tenha que esperar até uma semana para que possa cruzar a cerca ao lado da retomada. Há limitação no número de pessoas (12) e as visitas são sempre acompanhadas por servidores do ICMBio. Os Xokleng estão proibidos de pernoitar dentro do parque e não podem fazer fogueiras, que são parte intrínseca de sua cultura: “O fogo dá moradia para o índio. Onde o índio faz o fogo, ali é o território do índio, ali é a chama da tribo. É a arma do índio. Eu aprendi assim: onde tem fogo, tem índio. Porque o fogo aquece o índio”, relata Cullung.
Também na audiência, ICMBio e Funai se comprometeram a organizar todos os trâmites para que a consulta livre, prévia e informada aos Xokleng aconteça. Até lá, o consórcio vencedor da licitação da Floresta Nacional de São Francisco de Paula segue proibido de realizar atividades dentro do local. O Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (DAER) já foi informado que a comunidade permanecerá no quilômetro seis da rodovia RS-484, à espera de uma definição sobre seu processo demarcatório.