Reportagem Rodrigo Barbosa e Fernando Almeida
Fotos Fernando Almeida
Do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, ao Planalto Central, 1.700 quilômetros de estrada foram deixados para trás pelos indígenas Xokleng em sua primeira viagem a Brasília, no Levante pela Terra. Após séculos de luta pelo território originário, o dia 30 de junho de 2021 pode dar fim a uma enorme ameaça vivida pela comunidade e mudar o futuro das demarcações de Terras Indígenas em todo o Brasil. Está nas mãos do STF o veredito: agora, é vida ou morte para os Xokleng.
Nesta quarta (30), o Supremo Tribunal Federal (STF) vota a Ação Cível Originária (ACO) 1100, que discute a demarcação da Terra Indígena (TI) Laklãnõ. A TI fica no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, e é a única a abrigar indígenas da etnia Xokleng em todo o Brasil. Indígenas Guarani e Kaingang, em menor número, também vivem no território. São mais de duas mil pessoas no total.
A ACO 1100 trata da anulação da demarcação da TI Laklãnõ e foi movida em 2007 por ocupantes não indígenas e uma madeireira que explora uma região da TI, a Batistela Agroflorestal. O Estado de Santa Catarina também é assistente da ação, ou seja, foi favorável à sua abertura. Os autores requerem reintegração de posse sobre porções do território Xokleng.
O principal argumento utilizado por eles é a tese do Marco Temporal, que defende a ideia de que povos indígenas só poderiam reivindicar territórios que estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Neste dia, invasores da TI Laklãnõ se encontravam, na prática, sob posse de terras nela incluídas.
A tese do Marco Temporal, defendida sobretudo por ruralistas, ganhou força em 2017, no governo de Michel Temer. Naquele ano, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer no qual dizia entender que um argumento específico do julgamento referente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, poderia ser aplicado para todos os outros. No caso da Raposa Serra do Sol, o STF resolveu o impasse territorial ordenando que a terra pertencia aos indígenas, pois eles a ocupavam durante a promulgação da Constituição.
A questão é que o próprio STF já havia deixado claro que o caso Raposa Serra do Sol não era de repercussão geral, ou seja, atendia apenas às especificidades daquela terra. Mesmo assim, a tese do Marco Temporal ganhou força em meio ao crescimento constante da influência da bancada ruralista em Brasília. A tese é agora usada como argumento contrário, em casos onde não eram os indígenas que estavam em determinado território em 1988.
Defensores da causa indígena denunciam que o Marco Temporal passa por cima do entendimento de que direitos indígenas são originários e, portanto, anteriores à própria criação do Estado brasileiro. O Marco ignora todo e qualquer tipo de invasão que tenha reduzido territórios indígenas antes do ano de 1988.
O STF já anunciou que, desta vez, trata-se de um caso de repercussão geral. Ou seja, caso a ACO 1100 seja rejeitada, outros processos que têm como base de argumentação jurídica o Marco Temporal também vão por água abaixo.
“Nós acreditamos no trabalho do STF […] Estamos correndo um risco e pedimos encarecidamente ao presidente Luiz Fux que venha a fazer acontecer esse julgamento e que venhamos a ganhar a nossa terra. Ao contrário disso, dá um parecer que o Brasil quer que o índio não exista mais”, afirma Nilton Ndili, cacique-presidente da TI Laklãnõ. Durante a estadia no acampamento Levante pela Terra, a comunidade fez algumas visitas ao Supremo e relata que o diálogo sempre foi cordial. O ministro Edson Fachin já anunciou publicamente seu voto contrário à ACO 1100.
A esperança do movimento indígena é que a rejeição à ACO 1100 e o consequente enfraquecimento da tese do Marco Temporal pode ser um entrave ao criticado Projeto de Lei (PL) 490, uma vez que o Marco Temporal é um dos principais pontos do projeto. Mas para além da repercussão geral, o julgamento tem o poder de dar fim a uma histórica violência territorial, cultural e física da qual os Xokleng são vítimas.
“Por longas décadas, nossos caciques anteriores, que hoje não existem mais, lutaram para reivindicar nosso direito originário, que é a nossa demarcação. A Barragem Norte foi construída dentro da Terra Indígena Laklãnõ, houve muitas mortes, e hoje não é mais aquilo que a gente usava antepassadamente”, relembra Nilton Ndili.
O território original dos Xokleng era muito maior que o reivindicado atualmente, e compreendia também áreas do que hoje são os estados do Rio Grande do Sul e do Paraná. Com a intensificação do processo de colonização no sul do país, foram forçados a restringir seu território a Santa Catarina.
Mais especificamente, à região do Alto Vale do Itajaí, onde seriam vítimas de uma série de massacres cometidos por bugreiros sobretudo a partir da instalação da colônia de Blumenau, nos anos 1850. Via de regra, os ataques eram realizados à noite e encontravam dura resistência indígena. Mas o poder de fogo era desigual, e estima-se que bugreiros foram responsáveis por dizimar pelo menos dois terços da população Xokleng na época. Muitas das expedições eram bancadas pelo governo provincial, ligado aos fazendeiros da região, que entendiam os indígenas como obstáculo ao progresso. O território Xokleng ia consequentemente diminuindo a cada nova invasão.
O extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) se estabeleceria em território Xokleng nos anos 1910 com a promessa de dar fim aos conflitos entre colonos e indígenas. “Pacificação” era a promessa anunciada pelo SPI, que inicialmente definiu o território indígena como uma área de 40 mil hectares. Foi o aldeamento dos Xokleng, que até então viviam em acampamentos e não se fixavam em apenas um local. Mais um duro baque à cultura daquele povo.
Mas para além dessa primeira redução territorial, uma série de outras invasões diminuiriam ainda mais o território indígena, mesmo com a presença do SPI. Além disso, o próprio SPI foi responsável por violentar os indígenas, com extensos relatos de violência física e exploração de trabalho escravo por parte de funcionários do serviço. O SPI não apenas não cumpriu a missão de proteger os indígenas, como institucionalizou de vez a violência sofrida por eles.
Na década de 1960, após muita luta do povo Xokleng, o governo de Santa Catarina enfim demarcaria legalmente o território. 14 mil hectares, pouco mais de um terço das áreas inicialmente delimitadas pelo SPI (e na época reconhecidas pelo mesmo governo de SC).
Anos mais tarde, os Xokleng sofreriam mais um ataque que impactaria sua cultura e território de maneira definitiva: a construção da Barragem Norte. Feita pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) no contexto da ditadura, a barragem teve o objetivo de conter as enchentes nas regiões de Blumenau e Itajaí. Basicamente, proteger a população urbana, naquele local majoritariamente branca.
A construção da Barragem Norte foi feita sem consulta aos indígenas e inundou mil hectares do território Xokleng, justamente numa área fundamental à subsistência da comunidade. Os Xokleng perderam suas terras agricultáveis e foram forçados a se mudar mais uma vez, ocupando terrenos com maior declividade. A escassez de território fértil ainda foi responsável por uma grande fragmentação da comunidade: de uma única aldeia, passaram a viver em oito aldeias diferentes. É assim até hoje. A construção foi encerrada no fim da década de 1980, que coincide com o período de maior atividade madeireira dentro da TI (entre os anos 1970 e 1990).
Desde 1999 a Funai reconhece como Terra Indígena Laklãnõ um território que compreenderia 37 mil hectares – área um pouco menor que a definida pelo SPI quase um século antes. O Ministério da Justiça chancelou a declaração em 2003, mas a demarcação até hoje nunca se completou de fato.
O atual status de demarcação da TI Laklãnõ é “declarada”, restando ainda as etapas de demarcação física, homologação e registro. A demarcação física é impedida justamente pela ACO 1100, visto que os terrenos que são alvo do processo de reintegração de posse estão inclusos nos 37 mil hectares reconhecidos pelo governo federal no início dos anos 2000, e não nos 14 mil hectares inicialmente concedidos pelo Estado de Santa Catarina.