Anciã Isabela do povo Xokleng, que completou 75 anos durante o Luta Pela Vida

Acampamento Luta Pela Vida: o descaso do STF e a força da Primavera Indígena

Após três semanas acampados em Brasília, povo Xokleng volta para Santa Catarina sem definição sobre sua terra, mas com foco na mobilização

Reportagem e fotos por Fernando Xokleng e Jucelino Filho

No começo da semana, chegou ao fim mais um capítulo da luta do povo Xokleng por seu território. Após mais de vinte dias acampados em Brasília, os indígenas retornaram à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina, ainda sem uma definição do imbróglio territorial que tramita judicialmente há quase 15 anos. Inicialmente marcada para o dia 25 de agosto, a votação que discute a tese do Marco Temporal foi adiada três vezes pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o período em que o acampamento Luta Pela Vida esteve mobilizado.

Fernando Xokleng e Jucelino Filho, repórteres do Cotidiano UFSC, acompanharam um dos quatro ônibus da delegação desde a sua saída, na madrugada do dia 22 de agosto, e relatam como foram as mais de duas semanas de luta sob o sol escaldante da capital federal. 

Delegação Xokleng a caminho de Brasília

Mais de 400 indígenas Xokleng do Alto Vale do Itajaí viajaram até Brasília para acompanhar a votação que define o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil. Foi a segunda viagem em massa do povo Xokleng à capital, tendo a primeira acontecido em junho deste ano. O atual momento da mobilização do movimento tem sido chamado de Primavera Indígena.

Em sua chegada em Brasília, na manhã do dia 23, os Xokleng se juntaram a um grupo de mais 6 mil indígenas de 176 povos, que ficaram acampados na Praça da Cidadania. O acampamento Luta Pela Vida tem sido considerado a maior mobilização indígena da história e recebeu delegações vindas de todo Brasil, proporcionando a todos os grupos um grande intercâmbio cultural.

Durante toda a mobilização, ocorreram apresentações culturais, danças típicas, rezas, rodas de conversa, mostras de artesanatos e plenárias que falavam sobre as demandas de cada povo. Foi uma semana intensa de atos contra o Marco Temporal e contra projetos de lei que afetam o futuro dos indígenas de todo o país.

O principal objetivo da viagem a Brasília era  acompanhar a votação do Recurso Extraordinário 1017365, referente à  Ação Cível Originária (ACO) 1100. A ACO trata da demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãnõ do povo Xokleng, localizada no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, e foi movida por ocupantes não-indígenas e uma madeireira que exploram o território. Por ter caráter originário, a Ação começa e termina no STF, onde está desde 2007.

Neste período, mais um agente entrou em jogo para requerer uma parte da TI Ibirama-Laklãnõ: o Estado de Santa Catarina. O Recurso Extraordinário 1017365 é um pedido de reintegração de posse movido pela extinta Fundação do Meio Ambiente (FATMA, vinculada ao Estado de SC) contra a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), requerendo parte das terras ocupadas pelos indígenas. A alegação do Estado é que o território em questão se encontra dentro da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, embora os oito hectares em disputa tenham sido reconhecidos como território indígena por Portaria Declaratória do Ministério da Justiça. Mesmo assim, o governo catarinense ganhou o processo nas duas primeiras instâncias, o que o levou ao Supremo. 

“O processo veio com recurso para o TJ, mas não foi reconhecido, aí foi para o STF em 2017. Em 2019, o ministro relator Edson Fachin propôs que fosse reconhecida a repercussão geral do caso. O Supremo reconheceu a repercussão geral, que significa o seguinte: quando do julgamento do caso, o entendimento e a interpretação que o Supremo der para o Artigo 231 com relação à disputa territorial do povo Xokleng, esse entendimento vai se estender a todos os povos indígenas do Brasil”, relata Rafael Modesto dos Santos, advogado do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que representa os Xokleng no processo. 

O Artigo 231 da Constituição Federal, citado por Modesto, trata dos direitos dos povos indígenas e diz, dentre outras coisas, que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Além disso, o Artigo 231 deixa claro que é competência da União demarcar e proteger indivíduos e bens em territórios indígenas. Atualmente, segundo Modesto, a regularização administrativa da TI Laklãnõ depende exclusivamente de uma homologação por decreto a ser feita pelo Presidente da República. 

Atual presidente, Jair Bolsonaro declarou antes das eleições que não demarcaria “um centímetro quadrado a mais de terra indígena”. Ele vem cumprindo a promessa e é abertamente favorável à tese do Marco Temporal, que baseia toda a ACO-1100. O Marco Temporal defende que povos indígenas só podem reivindicar territórios que estivessem sendo ocupados em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. A tese é bandeira da bancada ruralista e tenta apagar mais de 500 anos de luta, tendo ganhado força sobretudo a partir do governo de Michel Temer.

A votação

No dia 25 de agosto, que deveria marcar a retomada da votação do Recurso Extraordinário, o STF optou por pautar a autonomia do Banco Central. A pauta indígena retornou no dia seguinte, mas foi adiada mais uma vez após a leitura do relatório inicial, desta vez para o dia 1º de setembro. 

Devido ao adiamento, a delegação Xokleng, com apoio de outras 34 delegações indígenas, mudou o acampamento para o Complexo Cultural Funarte, onde ficou até o dia 10.

O prolongamento do acampamento Luta Pela Vida, que inicialmente deveria se encerrar em 28 de agosto, teve dias de tensão. O motivo foram as manifestações de 7 de setembro , a poucos quilômetros de onde se estabeleceu o novo acampamento. “Os bolsonaristas ameaçaram invadir o nosso acampamento. Passei a noite de segunda para terça sem dormir”, relatou um dos Xokleng acampados na Funarte. Felizmente, nada de grave aconteceu.

No dia 1º de setembro, quando o julgamento foi retomado, o povo Xokleng viveu aquele que foi um dos momentos de maior emoção desde o começo da mobilização. Por um telão instalado em frente ao Supremo, viram o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se posicionar favorável à causa indígena. Além de um importante apoio contra o Marco, o parecer de Aras foi, de certa forma, inesperado, visto que o Procurador já se mostrou alinhado à Presidência da República em diversas ocasiões.

Uma semana mais tarde, Edson Fachin seria o primeiro ministro do STF a registrar seu voto, também favorável à causa indígena. A esta altura já estava em andamento a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, que deu sequência à Primavera Indígena, e contou com a presença de mais de 3 mil mulheres de diferentes povos.

O julgamento do Recurso Extraordinário 1017365 seria novamente adiado para 15 de setembro, quando o ministro Kássio Nunes Marques se posicionou favorável ao Marco Temporal, conforme já esperado pela comunidade indígena. Com o placar empatado, o terceiro a se manifestar, ministro Alexandre de Moraes, pediu vistas ao processo (mais tempo para analisar os autos). Com isso, não há previsão sobre uma nova data de retomada do “julgamento do século” para os indígenas.

Os atrasos no STF e o descaso do Poder Público não desanimam a comunidade Xokleng, conforme relatou a liderança Brasílio Priprá, ainda durante o Luta Pela Vida. “Hoje, todos os povos que estão aqui, estão esperançosos que se vote a repercussão geral, para que se tenha respeito ao povo brasileiro, ao povo indígena. Estamos aguardando para que o STF nos respeite e norteie as demarcações de terra no Brasil. Nós precisamos dessa votação a favor do povo Xokleng. Sabemos que há uma possibilidade de pedido de vista, mas esperançosamente vamos lutar e se precisar voltar aqui, vamos voltar. Nosso direito deve ser respeitado pela Justiça brasileira”. Brasílio Priprá tinha em mãos documentos datados de 3 de Abril de 1926, que serviram de base para o estudo antropológico que definiu o total de 37 mil hectares destinados para a Terra Indígena Ibirama- Laklãnõ.