Projeto de lei busca regulamentar a profissão de trancista no Brasil
Atualmente, trancistas enfrentam precariedade e falta de proteção trabalhista
Reportagem por Camila dos Santos
Michele de Sousa Reis, 31 anos, baiana, é trancista há mais treze anos. Dona do salão Princesa Dandara Ateliê, ela aprendeu o ofício de forma autodidata. “Gostava de ver a transformação nas pessoas e me sentia feliz em ver o sorriso dos meus clientes”, conta. A paixão pelo ofício logo se transformou em negócio e Michele expandiu suas atividades para a venda de fibras e jóias para tranças.

Michele de Sousa Reis, trancista há mais de 10 anos (Foto: Arquivo pessoal)
Com a pandemia, Michele reinventou-se como criadora de conteúdo no Instagram, compartilhando dicas e técnicas com outras trancistas no perfil @falatrancista, que hoje tem mais de 165 mil seguidores.
Ativista pela regulamentação da profissão, a profissional explica que as reivindicações incluem a possibilidade de se enquadrar como Microempreendedor Individual (MEI), já que atualmente as trancistas precisam se cadastrar como cabeleireiras ou artesãs. “Se a gente contratar uma auxiliar, também não existe a atividade para isso.”
Segundo a advogada Jéssica de Assis, de Santa Catarina, a regulamentação de uma profissão no Brasil é um processo que envolve a criação de uma lei pelo Congresso Nacional e sua posterior sanção pela Presidência da República. Com uma legislação própria, são definidos os deveres e garantias para os profissionais, além da fiscalização de suas atividades. Esse processo é essencial para diversas profissões, incluindo a de trancista, cuja regulamentação tem sido amplamente discutida.
PL 1747/2024: regulamentação da profissão de trancista
É sobre isso que trata o Projeto de Lei nº 1747, apresentado em maio de 2024, pela Deputada Federal Dandara (PT/MG), que visa regulamentar o exercício da profissão de trancista no Brasil. A proposta está atualmente tramitando nas Comissões de Trabalho e Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
O projeto define a profissão de trancista e estabelece que o exercício dessa atividade deve seguir normas específicas, sem prejuízo de outras regras trabalhistas e previdenciárias aplicáveis.
Entre as atribuições dos trancistas, estão a higienização do cabelo e do couro cabeludo, a aplicação de produtos não corrosivos ou tóxicos e a execução de técnicas de trançado e penteado próprias da cultura negra. Os profissionais devem manter o local de trabalho limpo e higienizado, observar normas sanitárias e orientar a clientela sobre as melhores práticas de cuidado e manutenção do trançado.
O projeto também busca incluir a profissão de trancista no Quadro de Atividades e Profissões da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), garantindo direitos trabalhistas e previdenciários específicos para os profissionais.
A falta de regulamentação traz inúmeros desafios, segundo Michele “queremos ter direitos como auxílio-doença, pois trancistas desenvolvem bursite, LER.”, explica. Além disso, a profissão não é reconhecida em editais ou cadastros oficiais. “Movemos a economia do país o ano todo! E no carnaval? Também queremos poder nos cadastrar para trabalhar atendendo os turistas de forma legalizada.” Para Michele, a regulamentação é importante não apenas para garantir direitos trabalhistas, mas também para a autoestima e protagonismo das mulheres pretas, periféricas e mães solos. “Eu criei minha filha com meu trabalho com as tranças. Antes disso, ajudei a sustentar minha mãe e irmão, atendendo em domicílio.”
A falta de regulamentação também afeta a qualidade dos serviços prestados e o reconhecimento social da atividade. Rayane Vitória, trancista com mais de dez anos de experiência em Florianópolis, explica que a ausência de critérios definidos para a formação e atuação dos profissionais impacta tanto a segurança quanto a confiança dos clientes. Segundo ela, muitos trancistas atuam sem investir em capacitação ou orientar corretamente sobre os cuidados necessários antes e após os procedimentos, priorizando exclusivamente o retorno financeiro.
A profissão de trancista e sua importância afro-cultural
O trancista Edson José Bernardes Júnior, 24 anos, de Florianópolis, afirma que, para a comunidade, a legislação traria maior segurança e confiança nos serviços oferecidos. Os clientes teriam a garantia de que os trancistas seguem padrões de qualidade e higiene, reduzindo os riscos associados a práticas inadequadas. Para os profissionais, “a regulamentação permitiria a implementação de cursos técnicos certificados, abordando desde técnicas de tranças até questões de saúde capilar e empreendedorismo”, explica.
Outro aspecto destacado pelos profissionais é a tradição cultural. “A formalização da profissão ajudaria a preservar a herança cultural e garantir que os serviços sejam prestados de forma segura e profissional”, destaca Lyncoln Eduardo Santos da Rosa, 26 anos, também trancista de Florianópolis.
Lyncoln acredita que, nas últimas décadas, a profissão ganhou mais espaço e atenção “Atualmente, a profissão se expandiu, com trancistas desenvolvendo técnicas inovadoras, aprimorando métodos tradicionais e profissionalizando ainda mais a prática, oferecendo serviços especializados em salões ou de forma autônoma.”
Segundo a trancista Michele Reis, há registros históricos que indicam o uso de tranças como uma forma de mapa, auxiliando os negros escravizados em suas rotas de fuga. “As tranças não são apenas um estilo, mas também um símbolo de resistência e identidade”, afirma. Em sua trajetória, Michele enfrentou o preconceito contra seu cabelo. “Enfrentei a difícil escolha entre manter minhas tranças ou continuar em um emprego. Optei pelas tranças, reafirmando minha identidade e meu compromisso com a valorização de nossa cultura.”
As trancistas são especialistas em twists, tranças nagôs, box braids e dreads, entre outros estilos. Cada uma dessas modalidades exige esforço e técnicas diferenciadas, além de terem tempos variados para sua execução. A advogada Jéssica de Assis explica que se trata de um trabalho manual que exige disposição e esforço físico, muitas vezes realizado em pé por longas horas. A advogada destaca que a realização de movimentos repetitivos pode resultar em inflamações dolorosas nos tendões, assim como em lesões na coluna. “É necessário dar atenção ao limite de horas trabalhadas diariamente e semanalmente para proteger a saúde das profissionais.”
O Projeto de Lei 1747/2024 também busca incluir a profissão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). A CBO retrata a realidade das profissões no mercado de trabalho brasileiro, trazendo mais visibilidade, valorização e inclusão social para as trancistas. “Uma vez incluída na CBO, a profissão de trancista garantirá direitos trabalhistas e atribuições que correspondam às suas atividades específicas.”
A regulamentação pode garantir proteções e benefícios trabalhistas, como jornada regulamentada; piso salarial; férias remuneradas; 13º salário; licença-maternidade; e assinatura na Carteira de Trabalho (CTPS).
O efeito das tranças na autoestima de pessoas negras
Jackeline Aparecida Teixeira, que há três anos se dedica à arte das tranças, revela que esse trabalho exerce um papel fundamental em sua vida. Ela compartilha que, ao adotá-las, sente-se mais autêntica e fortalecida. Atualmente, está satisfeita com sua aparência, embora nem sempre tenha sido assim. “Durante meu processo de aceitação, redescobri minha essência por meio dessa prática. A cada novo penteado, sinto-me mais bonita e confiante”, afirma.

Jackeline Aparecida Teixeira, Nagô Braids (divulgação pessoal)
Ana Carolina de Moraes usa as box braids desde os nove anos de idade. Ela destaca que cada cor e estilo não apenas transformam seu visual, mas também elevam sua autoestima como mulher negra. Além da beleza, ela ressalta a praticidade das tranças no dia a dia, economizando tempo ao se arrumar para o trabalho ou estudos. “Financeiramente, as tranças também são vantajosas, pois a manutenção é necessária apenas a cada dois ou três meses, ao contrário do cabelo natural, que exige produtos como cremes, géis e pomadas diariamente ou semanalmente”.
Thaís Lima destaca que as tranças, além de serem um estilo versátil e uma excelente forma de proteção capilar, tornam-se aliadas valiosas durante a transição capilar, ajudando a disfarçar as diferentes texturas do cabelo enquanto este se recupera dos efeitos de processos químicos. “Esse período é difícil, pois envolve autoconhecimento e autocuidado, exigindo uma mudança completa na rotina. No entanto, também é um momento de libertação”, afirma.

Thaís Lima, box braids. (Divulgação pessoal).
Thaís Lima destaca que a atuação das trancistas tem um impacto significativo na geração de empregos para mulheres negras, oferecendo novas oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Muitas dessas profissionais, que anteriormente atuavam como funcionárias com carteira assinada ou em salões de beleza, encontraram na atividade uma alternativa viável e promissora. “Um exemplo notável é o da minha trancista e empresária, conhecida como Front Black, que, após trabalhar em um salão de beleza, reconheceu o potencial da profissão e decidiu abrir seu próprio negócio”.