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Reportagens

Estudantes surdos da UFSC sofrem com falta de intérpretes nas aulas

Universidade alega que cortes orçamentários impedem a contratação de mais profissionais

Reportagem por Gabriel Elias e Warley Alvarenga

A ansiedade provocada pelo início de um novo semestre é algo comum para muitos alunos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para Bruna Wilke, a primeira aluna com surdez total — profunda bilateral — do curso de Serviço Social, a ansiedade se soma a sentimentos de frustração e revolta. Pelo segundo semestre consecutivo, ela não conta com intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) em todas as disciplinas que frequenta. 

A situação se repete com, pelo menos, outros cinco alunos surdos dos cursos de Administração, Ciências Sociais e Nutrição. Um novo semestre se inicia, mas a acessibilidade não é garantida. 

Bruna soube pela Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE), setor vinculado à Pró Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (PROAFE), três dias antes do início do semestre, que não teria o suporte de intérpretes nas disciplinas: “Serviço Social e Economia Política” (segundas-feiras) e “Serviço Social, Direito e Cidadania” (quintas-feiras), as duas das 18h30 às 22h. Disciplinas teóricas que trazem os direitos humanos e a crítica social como base de estudos.

Isso ocorreu também no semestre anterior, quando Bruna cursou a disciplina teórico-prática “Realidade Social II”, nas noites de quinta-feira. “Eu soube que não teria intérprete na disciplina uma semana antes do início das aulas, por um e-mail da CAE e da PROAFE”, relata. “Fiquei muito chateada com a situação. Enviei vários e-mails para a CAE e até disse que iria denunciar ao ouvidor. No entanto, a situação não foi resolvida até o final do semestre”.

O direito à acessibilidade na educação está previsto na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). Além da lei, o artigo 14, do Decreto Federal nº 5.626, de 2005, determina que as instituições federais de ensino são obrigadas a garantir: “acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até a superior”.

A professora Andréa Lohmeyer, responsável pela disciplina “Realidade Social II”, cobrou soluções urgentes à PROAFE e ao Gabinete da Reitoria. Em resposta à professora, a Pró-Reitoria afirmou que a UFSC não tem intérpretes suficientes para suprir a demanda dos alunos. 

Ainda segundo a PROAFE, a unidade formalizou, para a Reitoria, solicitações de ampliação do número de profissionais para atender os estudantes, no entanto, a contratação depende de disponibilização orçamentária. 

“Quando a resposta de uma pró-reitoria é que não temos condições, porque esse não é um problema isolado, mas é um problema de vários outros estudantes, a universidade está cometendo, ao meu ver, violência institucional”, afirma Andréa. 

Bruna também protocolou uma manifestação na Ouvidoria da UFSC. A resposta foi similar: “A indisponibilidade financeira impede a contratação de novos profissionais”.

Para conseguir cursar as disciplinas em que não tem interpretação de Libras, Bruna recorre a improvisos e conta com o auxílio de colegas de turma. Com seu computador, ela utiliza uma ferramenta de transcrição automática para tentar compreender o que é dito. Os colegas e professores, por sua vez, em momentos de fala, precisam chegar o mais próximo possível de Bruna para a captação de áudio via computador.“Apesar de não ser um recurso acessível nem confiável, que não é 100% garantido e tem muitos erros de português, ele foi uma alternativa que me ajudou a não desistir da disciplina”, conta Bruna. “Esse recurso é bem limitado, eu preciso ficar sentada lendo tudo, não posso participar da aula com opiniões e, às vezes, me sinto excluída”. 

Isolada na turma, Bruna fica o mais próximo possível da professora para seu computador captar o áudio | Foto: Davi Eduardo

Todas as disciplinas em que ela não teve apoio de intérpretes são obrigatórias no currículo da graduação em Serviço Social. Caso não curse as matérias, a estudante não pode terminar o curso. “Pra ser sincera eu já estou me preparando para qualquer situação, mas desistir não é para mim”, diz Bruna, que seguirá firme na luta por seus direitos e permanência na universidade. “Eles ainda vão me ver com diploma e formada”, enfatiza.

Ainda sem interpretação integral, Bruna recorre novamente ao computador para tentar compreender o que é lecionado | Imagens: Amanda Monzon

Maicke Matos, aluno do segundo semestre de Administração, também passa pelo mesmo problema. “Quando pensamos em escolher a UFSC, pensamos na qualidade de ensino dela, porém foi decepcionante quando começamos e não tivemos intérpretes”, lamenta. Maicke tem perda parcial da audição e é oralizado — consegue utilizar uma ou mais linguagens orais para estabelecer comunicação, como a leitura labial. Apesar disto, ele necessita do suporte de intérpretes, visto que a complexidade dos temas ministrados em aula dificulta a compreensão.

Ele não é o único no curso de Administração. Eduardo Pereira, seu colega, também surdo, compartilha das mesmas dificuldades na disciplina “Teoria da Administração”, nas noites de terça-feira. “Algumas coisas eu consigo interpretar para ele, mas a maioria do tempo não conseguimos entender”, conta Maike, que auxilia Eduardo com o possível.

Em publicação recente, a Seção de Interpretação e Tradução de Libras (SEI.Libras), setor vinculado à CAE e à PROAFE, informa as disciplinas que não foram, ou que não estão sendo atendidas em 2025, por falta de recursos humanos. A maioria das disciplinas são obrigatórias e contam como pré-requisito para os semestres seguintes de seus respectivos cursos. 

Muitas disciplinas não atendidas contam como pré-requisitos ou compõem a grade curricular das primeiras fases de seus respectivos cursos

Faltam intérpretes e soluções

Entre os alunos, há relatos de estudantes surdos que cancelaram ou trancaram suas matrículas, ou então pediram transferência interna para o curso Letras-Libras, devido à falta de interpretação nas aulas.   

Luana Lima está no 6ª semestre do curso de Ciências Sociais e é outra aluna surda que sofre com a falta de interpretação desde o início da graduação. Luana também protocolou denúncia na Ouvidoria da UFSC. Entretanto, as respostas são similares às enviadas para outros denunciantes.

Indignada com as respostas obtidas por meio da Ouvidoria da Universidade, Luana ingressou com processos na Defensoria Regional de Direitos Humanos em Santa Catarina (DRDH/SC), órgão vinculado à Defensoria Pública da União (DPU), e no Ministério Público Federal (MPF). Ambos processos seguem em tramitação.

Luana também redigiu um discurso para ser lido em sessões do Conselho Universitário (CUn/UFSC), nos dias 4 e 25 de março de 2025. Porém, isso não foi possível devido a falta de intérpretes. No discurso, ela caracteriza a falta de intérpretes como “obstáculo estrutural à permanência dos estudantes surdos na UFSC”. 

De acordo com Patrícia Barreto, psicóloga da Associação de Surdos da Grande Florianópolis (ASGF), a recorrência de violências simbólicas pela dificuldade de acesso pode gerar estresse físico e psicológico, denominado fadiga de acesso. “A partir do momento que estar em um espaço se torna dificultoso porque eu não tenho um direito básico garantido e eu preciso toda hora ficar lembrando que é necessário intérprete de Libras, isso gera sobrecargas no corpo”, explica.

A garantia da disponibilidade de intérpretes em espaços privados e públicos, como a universidade, estão previstos na Lei nº 10.436/2002, que reconhece oficialmente a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão dos surdos no Brasil. Apesar disso, Patrícia afirma que o direito ainda é por vezes interpretado como caridade e a sua não consolidação pode afetar o pertencimento. 

A reserva de vagas em universidades para pessoas com deficiência está prevista na Lei nº 13.409/2016, sancionada em 2017. Desde então, a UFSC destina até duas vagas por curso no vestibular para este grupo. No segundo semestre de 2024, a universidade contava com oito matrículas ativas de alunos surdos em cursos de graduação que não são Letras-Libras. 

Crescimento no número de matrículas, por semestre, desde a implementação da reserva de vagas

Os dados são do último levantamento publicado pela Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE), em 2024. As informações foram retiradas do sistema de Controle Acadêmico da Graduação (CAGR). Segundo a Coordenação, estes dados são aproximados, pois podem haver estudantes com deficiência que optaram pela não autodeclaração ou que assinalem mais de uma deficiência. 

Perguntada sobre quantos alunos surdos já se formaram na UFSC desde o início da reserva de vagas, a CAE e a Pró-Reitoria de Graduação e Educação Básica (PROGRAD) não responderam à reportagem. 

A UFSC conta com doze intérpretes para atender os alunos surdos que não cursam Letras-Libras. Do grupo, apenas duas são servidoras concursadas e os demais terceirizados. Os intérpretes terceirizados são distribuídos entre os períodos matutino (três), vespertino (dois) e noturno (cinco). Cada disciplina precisa ser atendida por pelo menos dois profissionais, pois é preciso um revezamento na interpretação (seguindo a Lei 14.704/2023, que trata da atuação em revezamento dos profissionais).

Segundo a Seção de Interpretação e Tradução de Libras (SEI.Libras), em 2024, o período noturno foi o mais desafiador para a equipe. Os cincos profissionais disponíveis para o período precisavam se dividir: uma dupla atendia Luana Lima (Ciências Sociais) e outra acompanhava Bruna Wilke (Serviço Social), enquanto um quinto profissional era responsável por atender horários de estudo. 

De acordo com a Secretaria de Planejamento e Orçamento (SEPLAN) da UFSC, a verba utilizada para pagamento dos intérpretes de Libras vem dos recursos de custeio da instituição. A informação foi enviada pela Ouvidoria da Universidade, por email,  após denúncia feita pela aluna Luana Lima. 

Despesas de custeio correspondem a gastos para manutenção dos serviços da universidade, não podendo ser utilizados para aquisição de capital. São exemplos de despesas de custeio: compra de material de consumo, contratação de terceiros para a execução de serviços e manutenção de equipamentos.

Em sua manifestação no texto enviado à estudante, a SEPLAN afirma que os recursos da Política Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) são insuficientes para manter a assistência estudantil e o Restaurante Universitário e que contratos de serviços terceirizados sobrecarregam os recursos de custeio. 

Em outra reportagem realizada pelo Cotidiano neste ano, a Reitoria da UFSC divulgou que suas prioridades de custeio são: bolsas estudantis, restaurante universitário, manutenção predial e a ampliação de programas de ações afirmativas. 

Apesar da afirmação anterior, na mesma manifestação enviada pela Ouvidoria, a SEPLAN diz que a ampliação do número de intérpretes vai contra o atual objetivo da Reitoria que é a redução no número de contratos da UFSC. 

No mesmo documento, o Gabinete da Reitoria afirma que enviou ao Departamento de Desenvolvimento de Pessoas (DPP) da UFSC uma solicitação destinada ao Ministério da Educação (MEC) pedindo a ampliação de mais dez postos de contratação temporária para intérpretes de Libras. 

Aberto em junho de 2024, o processo da solicitação está, desde maio de 2025, em tramitação na Coordenadoria de Matéria Administrativa (CADM), da Procuradoria Federal da UFSC. Procurada sobre o andamento do processo, a CADM não respondeu à reportagem. 

Segundo a PROAFE, em resposta à reportagem, a contratação de mais dez intérpretes de Libras contemplaria todas as demandas solicitadas e atividades previstas para o ano de 2025. Entretanto, o contrato terceirizado firmado pela UFSC limita a abertura de postos de trabalho para apenas mais cinco.

Também foram procurados diretamente para responder à reportagem a Secretaria de Planejamento e Orçamento (SEPLAN), a Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE), a Pró-Reitoria de Graduação e Educação Básica (PROGRAD), o Gabinete da Reitoria e a Agência de Comunicação (Agecom). Nenhuma das unidades respondeu aos pedidos até a publicação deste texto.

Decreto de Bolsonaro

Em 2019, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, publicou o decreto n° 10.185, onde foram extintos 27.611 cargos efetivos do quadro de pessoal da administração pública federal. Entre os cargos de Técnico-Administrativos em Educação (TAEs) extintos está o de Tradutor Intérprete de Linguagem de Sinais. O decreto não acabou com os cargos, mas impossibilitou a abertura de novos concursos públicos. Ou seja, os poucos intérpretes concursados existentes serão os últimos enquanto o decreto permanecer vigente.

Para além dos alunos surdos, a falta de intérpretes afeta também os próprios trabalhadores. Dados do relatório anual de 2024 da Seção de Interpretação e Tradução de Libras (SEI.Libras), setor vinculado à Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE) e à Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (PROAFE), indicam que as atividades de formação da equipe ficam prejudicadas pela “escassez de profissionais”. 

A SEI.Libras é responsável por atender todas as demandas institucionais de interpretação educacional e tradução entre os idiomas Libras-Português no campus da Trindade. Isso abrange atividades que vão desde a interpretação em sala de aula, tradução de documentos e materiais informativos ou didáticos, até a cobertura de eventos promovidos pela UFSC.

Durante o ano passado, as atividades de formação continuadas estavam entre as menos realizadas

De acordo com a SEI.Libras, a interpretação em sala de aula nas Disciplinas Regulares foi o serviço mais demandado ao longo do ano passado (43%),  seguido de Reuniões (23%) e suporte ou participação em Eventos (19,3%). Enquanto isso, a Formação de Equipe representou apenas 1,2% das atividades realizadas. 

Em 2025, a SEI.Libras realizou somente uma formação, em janeiro. “Atualmente, as formações estão suspensas durante o período letivo para que todos os profissionais possam se concentrar plenamente nas demandas de atendimento”, afirma a coordenação. 

O relatório frisa também que um dia de estudo semanal é insuficiente para que os intérpretes se atualizem sobre as disciplinas atendidas. A intérprete terceirizada Aline de Souza define o tempo de estudo como imprescindível para o trabalho na área acadêmica. “Precisamos estar preparados para conhecer aquilo que é muito específico dentro da área do conhecimento, mas a gente só consegue ter preparo com o estudo”, diz. 

Quase todos os dados e informações relatadas pela SEI.Libras foram igualmente disponibilizados no Relatório da Gestão 2024, da UFSC. Como a “escassez de profissionais”, a falta de formação continuada da equipe e as crescentes demandas de trabalho, exceto a solicitação de ampliação do quadro de profissionais: “Esperamos que no próximo ano, ocorra a ampliação do quadro de profissionais contratados e, assim, o setor possa estender suas ações”, conclui o relatório da SEI.Libras.

Caso presencie violações de direitos à acessibilidade em instituições federais, denuncie na plataforma online Fala.BR. As denúncias são gratuitas e podem ser registradas de forma anônima, com ou sem provas.

A acessibilidade não é favor, é direito.

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