Estudantes sem teto: a outra face da (falta de) permanência na UFSC
Sem acesso à moradia e enfrentando o alto custo de vida, alunos relatam como a falta de políticas de permanência estudantil os coloca em uma luta diária pela sobrevivência
Reportagem por Isadora Dymow
Fome, insegurança habitacional e incerteza sobre o futuro. Para muitos estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), essa é a rotina diária. Davi*, de 49 anos, e João Primo, de 22, são exemplos dessa realidade: sem casa, enfrentam dificuldades para estudar, trabalhar e sobreviver em Florianópolis, capital com a segunda cesta básica mais cara do país, segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e o quarto aluguel mais caro do Brasil, de acordo com o índice FipeZap.
A vida sem-teto
Comida, teto e estudo. Organizadas em ordem de importância, essas eram as principais preocupações de Davi enquanto um estudante sem-teto na UFSC. “Eu tinha um sonho, mas nunca imaginei que passaria pelo que estou passando.”
Antes de ingressar na universidade, Davi vivia em situação de rua. “Depois de tentativas de homicídio e ameaças familiares, fiquei alternando entre a rua e casas de conhecidos. Em dias de chuva, ia para minha antiga casa, onde outras pessoas já moravam.” A maioria das noites, porém, ele passava sobre um colchão em matas afastadas da vista pública.
O incentivo ao estudo veio de pessoas que o conheciam do centro da cidade e que já tinham proximidade com o mundo acadêmico. As mesmas pessoas informaram Davi sobre a existência da moradia estudantil para estudantes da UFSC.
Davi ingressou em um cursinho popular de Florianópolis, conciliando estudos com fome e incerteza. “Em um dos cursinhos, eles davam alimentação. Eu comia e pegava algo para guardar no fim de semana”. Conseguiu passar no vestibular e garantiu vaga para o primeiro semestre de 2024.
A vida na universidade, no entanto, trouxe novos obstáculos. A dificuldade em comprovar vulnerabilidade social impediu Davi de acessar os auxílios estudantis. Um valor registrado em seu extrato bancário, oriundo de doações para comprar remédios, foi considerado como renda.
Ele também foi desclassificado para a moradia estudantil sob a alegação de que tinha parentes na Grande Florianópolis. “Eles não são necessariamente minha família. E como eu iria comprovar que era morador de rua?” Assim, Davi permaneceu sem-teto, tendo como única fonte de renda o programa Bolsa Família.
“Estudar foi bem difícil para mim. Eu não sabia usar a plataforma de aula e ler os textos pelo celular era complicado.” Alternando entre as casas de ex-namoradas, parentes, amigos e estadias como visitante na moradia estudantil, Davi não conseguia ter uma rotina estável. “Naquela casa [dos familiares] eles iam dormir às 6h da manhã, e quando eu ficava na casa dos outros, não queria incomodar. Era impossível estudar. Foi com o apoio da minha turma que passei a conseguir ter acesso aos textos impressos”.
Foi sua turma também quem o ajudou a evitar a fome. “Teve uma hora que eles perceberam que eu não estava tomando café da manhã. Então eles começaram a me trazer frutas e outras comidas”. As pessoas que o abrigam também compartilhavam alimentos com ele, dado o longo intervalo entre o jantar e o almoço do Restaurante Universitário da UFSC (RU), que não disponibiliza café da manhã aos estudantes.
Por estudar de manhã e de tarde, Davi teve dificuldade em encontrar empregos. “Antes eu conseguia fazer bicos, mas ninguém queria me contratar para limpar um terreno ou fazer serviços de jardinagem à noite, por exemplo.”
Dormindo no sofá, chão ou quarto de colegas, com fome e dificuldades de estudar, Davi encontrou na universidade uma realidade semelhante à que conhecia anteriormente. “Na rua, eu sobrevivia. Na UFSC, sinto que estou passando pelo mesmo estresse dessa época”.

João Primo, estudante de Engenharia de Alimentos, também conhece a experiência de um estudante sem-teto da UFSC. “Cheguei em Florianópolis sem casa, sem família e sem amigos. A única coisa que eu tinha era o sonho de estudar na UFSC, mas assim que entrei no curso, encontrei diversas dificuldades”. Vindo de Itajaí, ele tinha que pagar cerca de R$ 800 no aluguel que dividia com uma conhecida perto da UFSC.
“Trabalhei muitas vezes em supermercado como atendente, caixa, repositor e realizando carga e descarga de produtos. Também fazia freelas em cozinhas, lavando louças. Esses trabalhos ocupavam todo o meu final de semana”.
Em pouco tempo, os turnos de trabalho passaram a afetar o desempenho acadêmico. “Eu rodei em todas as disciplinas do primeiro semestre porque não via perspectiva no curso, nem em conseguir bolsas de auxílio financeiro. Não sabia se conseguiria permanecer”.
Após oito meses, a rotina estava, segundo ele, insustentável. Em junho de 2024, tornou-se morador da Ocupação Anita Garibaldi, em Capoeiras, região continental de Florianópolis. “Eu já fazia parte do MLB [Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas], então conversei com a coordenação do movimento, e fui acolhido na ocupação”.

João teve que se adaptar a um novo estilo de vida, morando a 11km da faculdade e dividindo a habitação com outras 20 famílias. “Costumo demorar 1h para ir até a UFSC, e uma 1h30 para voltar da UFSC para casa”. Além disso, a fome ainda é um problema recorrente quando faltam recursos na ocupação. “Infelizmente, houve momentos em que passamos fome”.
A Crise de Moradia
De acordo com o Relatório da Coordenadoria de Planejamento do Espaço Físico da UFSC, publicado no segundo semestre de 2023, a cada semestre, cerca de 1.600 novos estudantes possuem demanda por alguma política de moradia. Isso significa que as vagas disponíveis atendem apenas cerca de 2,5% da atual necessidade.
No primeiro semestre de 2024, foram abertas somente 10 vagas para a moradia estudantil da UFSC. No segundo semestre, mais 20, e outras oito, em fevereiro de 2025. A capacidade da Moradia Estudantil é de abrigar 156 moradores.
Os estudantes que dão sorte e conseguem uma vaga na moradia passam a enfrentar um outro tipo de desafio: a falta de infraestrutura. Em julho de 2024, o Cotidiano UFSC trouxe uma reportagem sobre os problemas enfrentados pelas pessoas moradoras do local. Goteiras, infiltrações e problemas de segurança são a rotina enfrentada por quem utiliza o espaço. Em abril de 2025, um vídeo da estudante de Direito Suellem Silva viralizou denunciando as condições do local.
As regras para acesso à moradia estudantil são definidas pela Pró-Reitoria de Permanência e Assuntos Estudantis (PRAE). Podem concorrer a uma vaga estudantes “regularmente matriculados/as em cursos de graduação presencial da UFSC, cujas famílias possuam renda bruta mensal de até 1,5 salário mínimo per capita e Cadastro PRAE válido”. Além disso, a família não deve residir na região metropolitana de Florianópolis.
“Depois de ir até minha cidade natal e conseguir os documentos da minha família, me disseram que faltava algo, mas não explicavam o quê. Respondiam que eu precisava ler o edital”, conta Primo.
Outro fator que dificultou o acesso ao benefício por Primo foi a interpretação dos dados de renda da família. A renda ultrapassou o limite de 1,5 salário mínimo porque sua mãe tinha acabado de ser demitida e estava recebendo a rescisão. “Meus pais moram longe, estão endividados e não recebo ajuda deles. Isso é um absurdo”, reclama.
Primo explicou também que nem mesmo o fato de estar no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), que beneficia pessoas com renda de até 0,5 salário mínimo, foi o suficiente para comprovar sua baixa renda para a universidade. “Aos olhos do governo eu sou uma pessoa em situação de vulnerabilidade, mas para a UFSC, não”.
A situação de vulnerabilidade social dos estudantes que tentam acessar as políticas de permanência estudantil é cada vez maior. Enquanto, na teoria, o edital permite que estudantes com renda individual de até R$ 2.118 concorram a vagas, na prática, a última pessoa selecionada para o auxílio moradia tinha renda de apenas R$ 630 em 2024, e R$136 em 2025. Para a moradia estudantil, os números são ainda mais alarmantes: R$ 25 para homens e mulheres, conforme os dados relativos ao primeiro semestre de 2025.
Estudantes de baixa renda também podem concorrer à Bolsa Estudantil, benefício que concede R$ 963,89 mensais aos bolsistas (até 2023, o valor era de R$ 878,88). No primeiro semestre de 2024, foram oferecidas 50 novas bolsas estudantis, 120 a menos que a quantidade disponível no semestre anterior. Já em 2025, 200 novos estudantes foram atendidos pelo programa. Ao todo, em 2024, 2.170 estudantes foram beneficiados pela Bolsa Estudantil.
Os impactos na vida e as soluções encontradas
Dividindo um cômodo de aproximadamente 15m² com outras duas pessoas, Davi dormia em um colchão na cozinha, embaixo de uma goteira e não conseguia estudar adequadamente. Além disso, a dificuldade para se alimentar começava a cobrar do corpo. “Eu comia uma montanha de comida no horário da janta para aguentar até o horário do almoço do dia seguinte [o RU não serve café da manhã]. Uma hora comecei a passar mal com isso”.
As coisas começaram a mudar quando foi assistir a uma palestra sobre bem-estar racial. “Assisti à palestra, e fui ao Restaurante Universitário almoçar. Lá, a palestrante me reconheceu e pediu para almoçar comigo, e contei para ela sobre a minha situação”.
A palestrante, impressionada com a situação, buscou a PRAE e conseguiu que fosse feita uma revisão da situação socioeconômica de Davi. O estudante passou a ter acesso a dois dos benefícios: a Bolsa Estudantil (no valor de R$ 919,48) e o Auxílio-Moradia (R$ 300).
Com isso, passou a alugar um quarto para morar e afastou-se da fome. Na casa em que mora, tem acesso a um computador para estudar e fazer trabalhos. “Sinto que agora não tenho mais essa síndrome do impostor e consigo fazer o dobro de coisas na metade do tempo.”
Hoje, ele faz faxinas e bicos como auxiliar de cozinha para complementar a renda. “Já ajudei pessoas em situação de rua e paguei quem me ajudou. Por vezes, chamo algum amigo para comer um lanche e eu pago. Não tem sensação melhor”.
João Primo conta que perdeu cerca de 15 kg desde que se mudou para Florianópolis. “Todos os dias, eu almoço arroz, feijão e salada. Não tenho uma boa fonte de proteínas no almoço”.
O estudante de Engenharia de Alimentos conta que sua principal rede de apoio são os “companheiros” dos movimentos, como ele gosta de chamar. Na Ocupação onde vive, há uma organização para divisão de cestas básicas. Além disso, também tem ajuda dos colegas de movimento estudantil.
“A luta para manter a Universidade em pé, principalmente para os estudantes pobres, é o que mais me ajuda a me manter na UFSC. Se não fosse estar no movimento estudantil, provavelmente eu teria abandonado a faculdade e voltado para minha cidade. Continuar na UFSC é uma mistura da vontade de estar construindo uma sociedade mais justa, com a teimosia de permanecer e não aceitar a exclusão da população pobre da Universidade”, coloca João Primo.
Até hoje, Primo não conseguiu retornar regularmente aos estudos, mas pretende voltar à frequentar as aulas no segundo semestre de 2025.
O que diz a universidade?
Atualmente, os benefícios oferecidos pela PRAE são: Bolsa Estudantil, Auxílio Creche, PAIQ (fornecida a estudantes indígenas e quilombolas), Auxílio Moradia, e vagas na Moradia Estudantil. Em 2023, foram 3087 estudantes beneficiados pelas políticas, sendo cerca de 1375 favorecidos pelos programas de moradia.
Para acessar os benefícios, estudantes moradores ou não de Florianópolis devem ter um cadastro PRAE ativo, que é aprovado mediante comprovação de renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. Em ambas procedências, a direção do Departamento de Permanência Estudantil da PRAE (DPE/PRAE) explica que “os casos sociais, ou seja, pessoas sem renda, podem automaticamente acessar os editais de assistência estudantil.”
Na prática, no entanto, os critérios de seleção e a escassez de recursos restringem o alcance dos benefícios mesmo para os “casos sociais”. Mesmo comprovando a falta de renda, uma pessoa que possui algum endereço associado a ela ou a sua família localizado em Florianópolis não pode concorrer a uma vaga na Moradia Estudantil, nem ao Auxílio Moradia. “Os programas de moradia são destinados para pessoas que vêm de fora. Uma pessoa Florianópolis que perde sua moradia deve recorrer às políticas municipais e do estado, que têm a obrigação de fornecer segurança habitacional aos seus moradores”, explicou a direção.
Para esses casos, a PRAE informa que tenta articular o suporte com a assistência social do município. “Temos contato direto com a abordagem social de Florianópolis, mas pode haver uma ‘janela de tempo’ entre o início da assistência municipal e o acesso aos editais da PRAE, o que gera demora para os estudantes”, reconheceu a direção.
A limitação dos recursos financeiros também é uma barreira significativa. Com uma queda de 48,6% no orçamento da UFSC entre 2015 e 2023, a universidade afirma que não tem como atender a totalidade dos estudantes em vulnerabilidade. “Se a gente fizer uma comparação do nosso orçamento de 2024, ele está em igualdade com o de 2015. A quantidade de pessoas que demandam assistência cresce, e em contrapartida o recurso diminui,” informou a PRAE.
Outras alternativas que o DPE sugere aos estudantes é a moradia em hostels e repúblicas que aceitem a vaga mediante trabalho. Solicitar apoio aos Centros Acadêmicos ou, no caso de estudantes imigrantes, associações, são, segundo o departamento, “alternativas de suporte para permanência de algumas pessoas.”
Algumas das limitações são impostas nacionalmente pelo Governo Federal, como é o caso do Programa Nacional de Assistência Estudantil, que desde que se tornou lei, estipula a cessão de benefícios somente para pessoas com renda de até 1 salário mínimo per capita.
Ainda, a portaria do MEC que estabelece a metodologia de análise para realização do Cadastro PRAE limita o público beneficiário. Segundo a portaria, a definição de família “tem como parâmetro não unicamente o domicílio, mas, observa a relação de consanguinidade, dependência financeira e os laços afetivos dos seus membros”. Assim, a comprovação de renda pessoal é por vezes associada à renda da família mesmo que o(a) estudante não reconheça esse vínculo.
Ainda assim, a PRAE afirma que existem “excepcionalidades” previstas no edital e que os critérios podem ser flexibilizados após entrevistas detalhadas. “Hoje, a PRAE possui três Grupos de Trabalho (GTs) destinados ao aperfeiçoamento do nosso trabalho: estudos técnicos, estudantes internacionais e comunicação,que avaliam a eficácia das políticas e sugerem melhorias” , destacou o DPE.
No longo prazo, a universidade planeja ampliar a infraestrutura de moradia. Está em estudo a construção de um novo módulo da Moradia Estudantil em Florianópolis, além de moradias nos outros campi. Porém, não há prazos definidos. “Os projetos da Pró-Reitoria são voltados para a existência definitiva, e não para soluções temporárias,” afirmou a direção.
*O nome original foi trocado por nome fictício para preservar a identidade do entrevistado