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Reportagens

Da pré-produção ao espetáculo, os desafios dos bonequeiros em Santa Catarina

Participação em festivais e inscrição de projetos em editais culturais fazem parte do cotidiano desses artistas

Reportagem por Camila Eloisa

Espetáculo “A Caixa”, da Cia Mútua. Foto: Leandro Maman

Criar histórias fictícias que abordam temas importantes e delicados, narrativas que façam as pessoas rirem e se emocionarem ou tratar de assuntos históricos. Essas são algumas das temáticas que espetáculos de teatro de bonecos de companhias de Santa Catarina abordam. A maioria das peças produzidas no Estado são contempladas com leis de fomento à cultura. Por isso, inscrever projetos em editais para conseguir financiamento é a realidade desafiadora de muitos bonequeiros catarinenses e brasileiros. A incerteza de ter um projeto contemplado por essas leis, as viagens para apresentar as peças em diferentes lugares, o processo de criatividade constante e os meses de trabalho para a produção de um espetáculo fazem parte da rotina desses profissionais.

“Contestados” é um destes exemplos. A peça levou 14 meses de preparação, desde a concepção artística até a estreia. Como o próprio nome já sugere, o espetáculo, contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura de 2017,  aborda a Guerra do Contestado, conflito que aconteceu entre 1912 e 1916 em Santa Catarina. 

Criada pela Cia Mútua, grupo de teatro de animação de Itajaí, a peça entrou em circulação pelas cidades em que o movimento aconteceu. A atriz Laura Correia lembra que o momento de apresentações nos municípios foi muito bonito. “Ficamos vários dias mergulhados na cultura do Contestado, uma região muito profunda e ancestral. Tivemos uma troca grande com as pessoas que vivem essa cultura, uma cultura cabocla, com sua religiosidade, crenças e lutas. Foi muito impactante”.

O grupo já participou de festivais em diferentes Estados brasileiros e fora do país. Para Laura, é uma experiência enriquecedora. “Você se depara com outras culturas, públicos e artistas e com diferentes idiomas. É um momento de grande aprendizagem”. Com o espetáculo “A Caixa”, que utiliza a técnica de animação de bonecos, a companhia se apresentou na Argentina e no Chile.

O teatro de bonecos é uma área do teatro de animação em que uma história é contada por meio de bonecos controlados por atores.  No Brasil, são 221 bonequeiros associados à Associação Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB). Em Santa Catarina, são 15. Para esta reportagem, foram entrevistados atores e produtores de seis companhias.

Em Itajaí, além da Cia Mútua, a Téspis Cia de Teatro  também utiliza bonecos em suas peças. Em atividade há 30 anos, a companhia  produziu mais de 30 espetáculos. O grupo também oferece oficinas de atuação e cursos de exercício de escuta. 

Denise Luz, atriz e fundadora da Téspis, explica que uma das diferenças entre a técnica de animação e a atuação normal é que, com os bonecos, há outras possibilidades de criação. Por ser um grupo pequeno, a companhia não conta com muitos atores e com os bonecos, é possível criar uma peça com vários personagens.

A atriz  diz que quando a companhia foi criada, um dos focos era o teatro para as infâncias. Antes de se tornar atriz, Denise era professora, por isso sentiu a necessidade de trabalhar com esse público. Ela explica que o processo criativo das peças vem através da negação. “O que eu não quero representar no teatro de infância?”.  

Denise explica que quando começou existiam poucas referências do teatro voltado para esse público: ou a criança era retratada como um ser menos inteligente, ou as peças tratavam de um tema didático. As ideias para novos espetáculos surgiram através da observação desses jovens e como eles se relacionam com as histórias.   

Também com apresentações voltadas para crianças, o Menestrel Faze-Dô trabalha com projetos direcionados à educação. “Mary” é uma boneca de pano que visita as escolas de Lages e região para dialogar com os jovens, de maneira descontraída e cômica, sobre a violência contra mulheres, crianças e adolescentes. Maria Fernandes, atriz e fundadora da companhia, acredita que o teatro de bonecos tem uma abordagem mais interessante para tratar de assuntos difíceis. A peça está em circulação desde 2008.

Os espetáculos do Menestrel são financiados por leis de incentivo à cultura, mas o cenário de Lages é diferente de outras cidades do Estado, que contam com leis municipais de incentivo. Os recursos das peças criadas pelo grupo vêm de leis do estaduais e federais. Maria diz que não vive da arte e sim que sobrevive dela. A companhia também faz apresentações em regiões interioranas de Lages.

Economicamente, a região serrana é uma das mais pobres do Estado. De acordo com dados divulgados pela Associação dos Municípios da Região Serrana (Amures) em 2017, cerca de 13 mil pessoas viviam em extrema pobreza na região. Para Maria, os bonecos têm a chance de levar arte para locais em que o teatro (e demais áreas artísticas) não são de fácil acesso.

A expansão do teatro de bonecos no interior do Estado é uma característica comum entre o Menestrel Faze-Dô e a Trip Teatro. Criada por Willian Sieverdt, a companhia está localizada em Rio do Sul, no Alto Vale do Itajaí. Neste ano, o grupo riosulense completou 35 anos.

Com seis espetáculos, a Trip já rodou diferentes países do mundo. Neste ano, foram para África pela primeira vez, em Dakar e Senegal. Willian diz que os aplausos e as risadas das crianças não diferem de um país para outro, mas que a cultura local e a troca de experiências com outros artistas sempre é especial.

Os projetos da companhia, em sua grande maioria, são contemplados em editais estaduais e federais e com leis de incentivo, como o Prêmio Nodgi Pellizzetti de Incentivo à Cultura de Rio do Sul. Willian afirma que essas políticas públicas são essenciais para o desenvolvimento da cultura.

Sobre a criação desses espetáculos, o ator considera que não existe uma fórmula mágica. A ideia para uma história pode nascer através de um texto, o público que quer trabalhar ou a técnica que será utilizada. Ele dá o exemplo do espetáculo “Incrível Ladrão de Calcinhas”, cuja ideia surgiu a partir da aposta de que “seria um bom título” para uma peça. A partir disso, a narrativa começou a se desenrolar. “Se tem um ladrão, tem que ter um policial. E tem que ter a dona da calcinha. A partir desses elementos, se cria a estética da peça. Nesse caso, usamos Cine Noir”.

O Kasper em terras brasileiras: como tudo começou

A pesquisa aprofundada também pode ser um disparador de ideias para uma nova peça. A montagem mais recente da Trip Teatro é o “Kasperl e a Cerveja do Papa”. O espetáculo é sobre uma visita do Papa a um mosteiro antigo da Alemanha, onde é produzida a melhor cerveja da região. Com essa marca registrada, os moradores decidem receber a santidade com a bebida. Cabe ao Frei Beberrão – protagonista da história – a tarefa de fazer a cerveja para o pontífice:

– Eu pagaria qualquer coisa pra quem fizesse a cerveja do Papa.
– Eu faço a cerveja pro Papa.
– Você sabe fazer cerveja?
– Eu sou um “cer” maravilhoso. Eu sou um “cer” fantástico. Eu sou um cervejeiro!

Cena do espetáculo “Kasperl e a Cerveja do Papa”. Foto: Reprodução/Trip Teatro

“Kasperl e a Cerveja do Papa”  é resultado de anos de pesquisa de Willian Siebert sobre a origem do teatro de bonecos em Santa Catarina. A prática surgiu nos anos 1950 e 1960, em Pomerode e Jaraguá do Sul, com o teatro de “Kasperle”, personagem central do teatro popular alemão. O ator e ex-professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Nini Beltrame, também realizou estudos sobre o assunto.

De acordo com pesquisa publicada em 2010 no Portal de Periódicos da UDESC, escrita por Maria Eduarda Schappo e orientada por Nini, o teatro de bonecos catarinense surgiu em Pomerode com a família Emmel, após um grupo alemão apresentar uma peça de Kasrperle em Blumenau, cidade vizinha a Pomerode.

Em Jaraguá do Sul, essa área do teatro de animação veio com Margarethe Patzmann Schlunzen, conhecida como “dona Móin-Móin”, artista natural da Alemanha, que veio para o Brasil para cuidar dos filhos de sua irmã. Margarethe fazia apresentações para crianças, percorrendo várias escolas da cidade.

Segundo artigo escrito por Gerd Bohlmeier, Adriana Schneider Alcure e Mareike Gaubitz, publicado na Revista Garrafa em 2023, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o teatro de bonecos foi muito utilizado nos fronts da Segunda Guerra Mundial, para divertimento dos soldados em combate, e em hospitais, para alívio terapêutico dos pacientes.

A primeira companhia de teatro de bonecos foi criada em Santa Catarina, em 1977, em Lages. O Grupo Gralha Azul, como se chamava a Cia, foi onde Nini Beltrame iniciou sua trajetória como bonequeiro.

Nine explica que apesar da ditadura militar, época em que a cultura não recebia incentivo e nem fomento, o então prefeito Dirceu Carneiro estimulava e impulsionava o teatro de bonecos em Lages. Dirceu criou um projeto de popularização dessa área das artes cênicas e estimulou a criação de novos grupos.

O Grupo Gralha Azul teve importante função política e artística em Lages, virando referência não só para o Estado, mas para o Brasil. Com o crescimento, o grupo chegou a se apresentar em países europeus e sulamericanos. Lages também chegou a sediar o IX Festival de Teatro de Bonecos do país em 1980.

A partir das décadas de 1980 e 1990, novos grupos foram formados, nas cidades de Rio do Sul, Itajaí, Joinville, Florianópolis, Concórdia, Joaçaba e outros municípios. Alguns desses grupos utilizavam o teatro de animação para criticar e resistir à Ditadura. Diante desse contexto e com a própria influência do Gralha Azul, o teatro de bonecos começou a ser difundido no Estado, até chegar nos dias atuais, com a criação de novos festivais.

Apresentação de espetáculo com o Mamulengo no Animaneco. Foto: Reprodução/Animaneco

Palcos itinerantes

O Animaneco – Festival Internacional de Teatro de Bonecos – é hoje um dos maiores festivais de teatro de bonecos do país, segundo a Associação Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB). O evento acontece desde 2017 e nasceu da inspiração de Cássio Correia, ator e produtor natural de Jaraguá do Sul e fundador da Essaé Cia, que cresceu acompanhando o Festival de Formas Animadas da sua cidade natal.

Os onze dias de programação exigem um ano de preparação para o festival. O processo de desenvolvimento também envolve a escrita de um projeto para conseguir captar recursos estaduais ou nacionais, lançamento de edital para que as companhias possam se inscrever e a curadoria das peças que vão participar.  

Na maioria das vezes, o dinheiro do festival vem através do Programa de Incentivo à Cultura (PIC), edital catarinense de fomento a projetos culturais. Cássio afirma que também já realizou o evento através da Lei Rouanet, e da Lei de Incentivo à Cultura de Joinville, por meio do Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura (Simdec). Além desses programas de incentivo, o Animaneco tem parcerias com parcerias do Sesc e de Consulados, para que as passagens de companhias internacionais possam ser pagas.

Para o idealizador, a maior dificuldade de conseguir realizar o Animaneco está na captação de recursos. “Estamos passando por um problema sério de gestão na Fundação Catarinense de Cultura. Há um atraso para a aprovação de projetos, o que acaba adiando a captação de recursos para a produção do festival”. Esse foi o motivo para que em 2021 o festival não acontecesse.

A falta de dinheiro não é um problema só para Cássio. Sassá Moretti, idealizadora do Festival Internacional de Teatro de Animação, (FITA) afirma que o evento conta mais com recursos de empresas do que incentivos públicos.

O FITA acontece em Florianópolis desde 2007, época em que Sassá era professora de teatro no curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Ela conta que sentia falta de levar seus alunos para assistirem peças de teatro de animação e então decidiu criar um Festival que concentrasse várias apresentações teatrais. 

Durante 14 edições, o evento reuniu companhias de diferentes Estados brasileiros, países sulamericanos e da Europa. Além das apresentações teatrais, o Fita reúne oficinas sobre a técnica de animação e montagem, mesas de conversa e exposições sobre essa área do teatro.

Outro festival em atividade no estado é o Bonencontro, organizado pela Cia Mútua. Criado em 2017, as três primeiras edições do evento foram realizadas somente com companhias catarinenses e contavam com o fomento da Lei de Incentivo à Cultura de Itajaí e o Prêmio Elisabete Anderle. A 4ª edição, em 2022, foi a primeira em nível nacional, com recursos da Lei Rouanet.

Os produtores dos três eventos afirmam que as edições só acontecem com as leis de incentivo, sejam municipais, estaduais ou federais. “Criatividade a gente tem. Mas sem fomento governamental as peças não são produzidas e não são circuladas”, afirma Maria Fernandes.

Políticas públicas de fomento à cultura

Atualmente, Santa Catarina conta com dois editais estaduais e três federais para patrocinar projetos culturais voltados às artes cênicas. Os entrevistados da reportagem inscrevem, na maioria das vezes, suas propostas no PIC e Elisabete Anderle. O Programa de Incentivo à Cultura foi criado em 2020 e fomenta projetos culturais de empresas contribuintes do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). As instituições que patrocinaram as propostas podem abater o valor do imposto.

Já o Elisabete Anderle conta com recursos do próprio Estado para financiar propostas culturais. Em 2024, o edital, que costumar ser lançado entre julho e agosto, foi publicado somente em dezembro. A FCC justificou o atraso com a troca de gestão e troca de comissão para realização do edital, além de ajustes no modelo de contrato. 

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