Capoeira resiste e se reinventa na capital catarinense
Mesmo diante da falta de apoio e do apagamento cultural, mestres e grupos mantêm viva a tradição em Florianópolis
Reportagem por Júlia Graboski e Júlia Vicente

Sentado à porta em mais um evento de ‘graduação’ — rito popularizado pelo mestre Bimba —, Nô observa o momento em que os alunos recebem a primeira corda, símbolo de progresso e passagem dentro da prática. “Comecei aos quatro anos e, aos 18, recebi o diploma de mestre. A capoeira, para mim, é o oxigênio que eu respiro”, relata Norival Moreira de Oliveira, conhecido entre os capoeiristas como mestre Nô. Aos 80 anos de idade, ele soma 76 anos de prática e 61 de mestria. Falar de capoeira na Ilha de Santa Catarina é também falar de sua própria história de vida.
Ele recorda a fundação de um dos grupos mais antigos da cidade, o Capoeira Angola Palmares. Iniciado em 1979, em Salvador, na Bahia, o grupo chegou em Florianópolis em 1984 com o contramestre Alemão. “E eu vim também, um ano depois, em 1985, e daí começou o ensinamento. Foi um trabalho árduo. Muitos contratempos, mas que fez parte do histórico de construção de um trabalho que até os dias de hoje continua resistindo. Nós estamos incansavelmente dando continuidade”, explica Nô.

Entre berimbaus e pandeiros, o som ecoa pelo espaço, atraindo olhares e despertando memórias culturais. Um registro de alegria e tradição viva na capital catarinense. (Foto:Júlia Graboski)



A iniciativa fortalece os laços comunitários e valoriza a cultura afro-brasileira. Cada movimento ensina respeito, disciplina e identidade. Um retrato da capoeira como ferramenta de transformação social. (Foto: Júlia Graboski)




em momentos de aprendizado, canto e movimento. Com o som do berimbau conduzindo a roda,
a capoeira segue viva e presente no ambiente universitário. (Foto: Júlia Graboski)


Ao chegar na cidade, o contramestre Alemão iniciou a capoeira com os moradores dos arredores do bairro Trindade e acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele explica que a cidade era “ingênua”, sem conhecimento sobre à prática. “Então eu cheguei com essa energia, trouxe essa galera toda e isso deu um boom na capoeira da cidade. Durante muito tempo a gente fazia roda no Mercado, eram uns rodões”, relembra.
As rodas, que reuniam curiosos, turistas e capoeiristas de diferentes estilos, foram decisivas para consolidar a presença da capoeira na capital catarinense. Durante muitos anos, os encontros ocorriam religiosamente aos sábados, ocupando o espaço público como um palco aberto de música, corpo e memória. Com o tempo, porém, as transformações da cidade e do próprio movimento fizeram com que as rodas passassem a acontecer apenas no primeiro sábado de cada mês.
Mesmo com a mudança, a tradição não se perdeu. O encontro mensal se consolidou como um ponto de referência, atraindo capoeiristas de diferentes grupos e gerações, além de preservar a energia que marcou os primeiros “rodões” no Mercado. A capoeira se firmou como espaço de expressão múltipla. “Para mim, ela é algo do coração, que pode ser levada para vários lados: como dança, como luta, como cultura e como arte”, conta Alemão.
Ao falar sobre a tradição, Marco Antônio, o Marcão, professor do mesmo grupo, destaca que a capoeira sempre foi marcada pelo batizado – ritual que oficializa um praticante como um capoeirista, oficializado pela mudança de cor das cordas, e lembra dos preconceitos que ainda persistem. “Como tem muita gente que tem preconceito com religião de matriz africana, acreditam que todo capoeirista é, como dizem, “macumbeiro” — que já é um termo pejorativo. Mas não é assim. Pode ter gente da umbanda, do candomblé, mas também tem evangélico, espírita, católico, budista. Aqui o espaço é aberto. Nas palavras do nosso mestre, capoeira é liberdade, então a pessoa é sempre bem-vinda.”
Dificuldades e desafios na capital
A capoeira em Florianópolis enfrenta diversos desafios que refletem tanto questões locais quanto estruturais da cultura popular no Brasil. Um dos principais problemas é a falta de reconhecimento institucional e apoio público. “O sonho de todo capoeirista é ter um apoio financeiro para que a gente possa fazer um grande evento. Mais suave, sem tanto trabalho, sem ter que tirar do bolso”, relata Edson Sioff, o mestre Polegar. Embora seja reconhecida como patrimônio cultural imaterial do país, muitos grupos e mestres atuam de forma independente, com poucos recursos e sem espaços adequados para treinos e apresentações, o quê dificulta a continuidade das rodas e o acesso da comunidade, especialmente de jovens, à prática.
Outro obstáculo importante é a precarização do trabalho dos capoeiristas. Muitos dependem de aulas particulares, eventos e apresentações esporádicas para garantir sua renda, o que torna a atividade instável e pouco valorizada economicamente. Segundo a pesquisa A capoeira em Florianópolis: um resgate histórico realizada por Adriana Guimarães e Adriana Fontoura, 57% dos mestres em Florianópolis exercem uma segunda atividade profissional. Além disso, há a dificuldade de conciliar a tradição e os valores ancestrais da capoeira com as exigências do mercado cultural que, muitas vezes, privilegia o entretenimento em detrimento da profundidade histórica e social da arte. Mestre Polegar, participante do Capoeira Angola Palmares, explica que sua paixão o mantém como tutor apesar de sua realidade como capoeirista na ilha. “Eu faço um trabalho aqui voluntário, sem receber nada. Estou aqui por amor à arte mesmo. Eu costumo dizer que eu vivo para a capoeira, e não da capoeira”, diz.
Existe ainda o desafio de manter viva a prática como expressão de resistência e identidade negra em um contexto urbano que invisibiliza suas origens afro-brasileiras. A falta de políticas públicas voltadas à valorização das culturas de matriz africana e o avanço da gentrificação – processo de modificação urbana que expulsa moradores para regiões mais distantes e menos valorizadas economicamente – em áreas centrais dificultam a permanência de grupos tradicionais. Ainda assim, os mestres e praticantes seguem resistindo, organizando rodas em praças, promovendo oficinas e mantendo viva a energia coletiva que faz da capoeira um modo de existir e afirmar cultura na cidade. Ao ser perguntado sobre a importância de manter viva a tradição na ilha, Nô afirma: “A importância é mais do que nós possamos imaginar. É a única arte, esporte e luta genuinamente brasileiros.”
A musicalidade, a ladainha e as rodas na capoeira
Em Florianópolis, o mosaico de tradições da capoeira se expressa nas rodas, espaços simbólicos onde corpo, música e ancestralidade se encontram. “A capoeira tem várias vertentes, várias possibilidades dentro dela, e as pessoas vão se identificando com uma ou com outra possibilidade”.
As principais modalidades são: a Capoeira Angola, mais ligada às raízes afro-brasileiras e aos rituais tradicionais; a Capoeira Regional, criada por mestre Bimba e marcada pela sistematização dos movimentos e pela introdução de novos elementos; e a Capoeira Contemporânea, que mescla influências de ambas e se adapta a contextos urbanos e pedagógicos modernos.
A vertente Angola, por exemplo, valoriza o jogo mais baixo, o improviso e a malícia. É uma prática que se desenrola próxima ao chão, com gestos lentos e estratégicos, acompanhados por cânticos e instrumentos tradicionais como o berimbau, o atabaque e o pandeiro. Já a Regional, desenvolvida na década de 1930, apresenta movimentos mais rápidos e acrobáticos, sendo também associada à ideia de uma prática esportiva e de autodefesa. A Contemporânea, por sua vez, amplia as fronteiras: incorpora novas músicas, movimentos e até influências de outras artes marciais, tornando-se uma linguagem viva que dialoga com o tempo presente.
É nas rodas que essas vertentes se encontram e ganham sentido coletivo. Cada uma é única, pode acontecer em praças, praias, ginásios ou terreiros, carregando um simbolismo profundo. É ali que mestres, praticante de mais alta experiência e respeito, responsáveis por preservar, ensinar e conduzir a tradição da capoeira, junto de contramestres, capoeiristas experiente que auxiliam o mestre, conduzem treinos e rodas, alunos e visitantes compartilham saberes e experiências, em uma comunhão guiada pelo som do berimbau. Algumas seguem rituais muito específicos, reafirmando a importância da tradição oral e dos fundamentos que estruturam a capoeira.
O capoeirista Marcão descreve uma dessas experiências, “Nós fazemos uma vez por ano, ao menos, talvez duas, uma roda de vela, então a gente faz isso à noite, fica escuro, fecha a porta, e a gente faz um círculo com pires, com vela mesmo, é uma tradição bem antiga, acredito que ninguém faça, nosso grupo faz”. O uso das velas e o ambiente escuro evocam o sagrado, remetendo às origens afro-brasileiras e à ideia de que a roda é mais do que um encontro físico, é uma conexão com os ancestrais.
Em cada roda, a musicalidade é o elemento que dá vida ao jogo, conduz os movimentos e conecta os participantes em um mesmo compasso. É a música que define o ritmo da ginga, marca o início e o fim de cada disputa. Mestre Polegar explica que a capoeira começou como luta, numa “ânsia” de libertação. “A musicalidade entrou na capoeira e fortaleceu muito uma parte da espiritualidade, porque quando a gente canta as músicas antigas, a gente canta dos mestres que já fizeram essas músicas lá atrás”, relata.
Os instrumentos tradicionais, berimbau, pandeiro, atabaque, agogô e reco-reco, formam uma verdadeira orquestra popular. O berimbau, considerado o líder desta formação, dita o tipo de jogo que será jogado: mais lento e estratégico ou mais acelerado e acrobático. Cada som carrega um significado e uma energia, orientando o capoeirista e criando a atmosfera da roda.
Antes do jogo começar, é a ladainha que toma conta do espaço. Cantada por um mestre ou capoeirista mais experiente, ela abre a roda com respeito e reverência, é um momento de pausa e escuta atenta na letra da canção – que narra histórias, lendas e homenageia mestres memoráveis. “A gente tem essa camaradagem, esse carinho, que é uma coisa meio de irmandade que a capoeira passa”, diz o Contra Mestre Alemão. Durante o canto, a cadência lenta e a poesia transformam o ambiente, preparando corpo e espírito para o que virá.
Com letras mais curtas que as ladainhas, as chulas podem ou não ser improvisadas. Ajudam a contextualizar o capoeirista sobre o jogo e servem como identificação para os praticantes. Suas canções são louvores a mestres anteriores e costumam ter um refrão para o coro cantar.
O cântico que dita o ritmo da roda e dá continuidade ao jogo na capoeira Angola é o corrido. Utilizado também na Regional, cria um andamento mais acelerado e
estimula um jogo mais rápido. Na prática, quem está puxando canta uma estrofe e o coro deve responder sempre o mesmo refrão, não necessariamente ligado às palavras do cantador
Criada por mestre Bimba, a quadra na capoeira geralmente tem somente quatro versos, como sugere o nome. O conteúdo varia dependendo do compositor – suas linhas podem trazer advertências, exaltar capoeiristas ou também narrar fatos e lendas. Na capoeira Regional, a quadra é muito utilizada, normalmente, para abrir a roda.
História, resistência e significado social
A capoeira que existe nos dias de hoje foi modificada com o passar dos séculos. Criada no Brasil pelos africanos escravizados, a prática surgiu durante o período Colonial como um disfarce. Os movimentos eram realizados de forma que se assemelhavam à uma dança, assim, era possível que treinassem sua autodefesa. A capoeira era praticada também nos quilombos, onde era vista como luta, forma de expressão cultural e resistência.
Considerada uma ameaça ao poder dos senhores de engenho e à estrutura do Brasil colonial, a capoeira foi criminalizada, e quem era flagrado praticando recebia punições. Os castigos eram violentos e, comumente, em forma de açoites/chicotadas, porém, também ocorriam em forma de prisões e castigos extras. Foi somente em 1937 que a capoeira foi descriminalizada, com grande influência do mestre Bimba que – fortalecendo a vertente esportista da prática – no mesmo ano, fez uma apresentação para o presidente da época, Getúlio Vargas.
Além de esporte, luta ou dança, a capoeira é um modo de vida. Por trás da energia contagiante das rodas, há uma mensagem que os mestres e praticantes transmitem. “Ela me encantou, por todos os seus elementos. Como luta, como dança, como jogo, como filosofia de vida. Então, a capoeira é o meu chão, né? É o que eu sou e faço”, afirma mestre Polegar.
Mestre Bode, do projeto “Tem capoeira no samba”, de Florianópolis, ensina aos seus alunos a importância de levar o que se aprende na capoeira para a vida. “Como hoje a capoeira está no mundo, a gente tenta mostrar isso aí para eles, que eles também podem ir para o mundo”.
Religião, música, culinária e capoeira são alguns dos símbolos culturais que resistem ao tempo e ao apagamento eurocêntrico. “A Capoeira é música, poesia, festa, brincadeira, diversão e, acima de tudo, uma forma de luta, manifestação e expressão do povo, do oprimido e do homem em geral, em busca da sobrevivência, liberdade e dignidade”, diz o mestre Anande (Almir das Areias).

