Quando o ar que respiramos se torna uma ameaça
Poluição do ar leva a milhões de mortes e intensifica crises climáticas
Reportagem por Matheus Bastos

Os especialistas não têm dúvidas sobre os efeitos que a poluição do ar causa. O professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ramon Cruz, afirma que não é exagero falar que o ar que respiramos está nos matando. O biólogo Paulo Horta destaca que o pulmão é a principal porta de entrada do corpo humano e os danos podem ser irreversíveis.
Em junho de 2024, foi divulgado o relatório global sobre a qualidade do ar, “State of Global Air 2024” (SoGA 2024), que constatou que 99% da população mundial vive em regiões com níveis de poluição prejudiciais à saúde. O estudo foi realizado pelo Instituto Efeitos da Saúde (HEI) e pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Engenheira sanitarista e especialista em controle da poluição atmosférica, Dione da Conceição destaca que mesmo com uma baixa concentração de partículas poluidoras, as pessoas ainda podem sentir os efeitos do ar poluído.
Em Volta Redonda (RJ), as emissões industriais da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), maior siderúrgica da América Latina, criam um ambiente com alta concentração de poluentes desde 1946, ano de construção da indústria. Marcelo Moreno, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, morou oito anos no município para desenvolver a sua pesquisa de doutorado sobre os efeitos da poluição na população.
Ele relata que, em Volta Redonda (RJ), é comum ver camadas de pó preto espalhadas pela cidade, proveniente das chaminés da CSN, que também lançam no ar partículas suspensas que não podem ser vistas a olho nu. “Os moradores da cidade acabam por normalizar a poluição. Torna-se algo do dia a dia”, destaca Marcelo. Mesmo sendo um profissional e especialista na área, ele entende que também foi vítima dessa normalização. “Por um bom tempo, acreditei que as crises respiratórias frequentes que tinha aconteciam por Volta Redonda (RJ) ser mais fria que o Rio de Janeiro”, relata. Ele não relacionava suas crises de rinite e sinusite com a poluição atmosférica. Só entendeu a relação quando voltou para o Rio de Janeiro e reparou as vezes em que foi ao médico para tratar dos problemas respiratórios.
Em 2006, em sua pesquisa de doutorado, Marcelo constatou que, mesmo com concentração de poluentes abaixo do recomendado à época, pessoas grávidas sofreram efeitos que comprometeram sua gravidez. Na tese, dois principais efeitos foram comprovados: nascimentos prematuros e baixo peso ao nascer. Os dois casos podem gerar complicações significativas no desenvolvimento infantil, como infecções, má formação dos órgãos, problemas neurológicos, deficiências motoras, doenças cardiovasculares e outras condições que podem reverberar na vida adulta.
Para Marcelo, toda a população está suscetível a danos causados pela poluição atmosférica, mas existem grupos mais vulneráveis, como crianças, por estarem com o corpo em formação; idosos, devido à maior sensibilidade do sistema imunológico e respiratório; pessoas com comorbidades circulatórias e respiratórias pré-existentes; e aqueles em situação de vulnerabilidade social e ambiental. Algumas regiões se destacam como vulneráveis ambientais no contexto de poluição atmosférica. Locais em que há predominância na direção dos ventos, à beira de estradas e proximidade com indústrias poluidoras concentram grande quantidade de poluentes no ar.
Segundo relatório publicado pelo “Center for Research on Energy and Clean Air” (Crea) em agosto de 2024, o bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, sofre com o aumento de internações desde a instalação da siderúrgica Ternium Brasil, em 2010. O relatório concluiu que a siderúrgica contribuiu com cerca de 1,2 mil mortes por acidente vascular cerebral, infecções respiratórias, câncer de pulmão e diabetes. Nas mortes, são incluídas cerca de 35 crianças abaixo de 5 anos.
Além das mortes, o relatório aponta que 100 atendimentos no pronto-socorro devido à asma, 300 novos casos de asma em crianças, 60 partos prematuros e 60 nascimentos de crianças com peso abaixo do esperado. Cerca de R$ 9,1 bilhões foram gastos com saúde por causa das emissões de poluentes pela Ternium Brasil. O capital social da empresa é de R$ 6,9 bilhões e os investimentos do Rio de Janeiro em educação, cultura e esporte somados no ano de 2023 foi de cerca de R$ 8 bilhões.
Marcelo destaca que fatores econômicos e acesso à saúde são aspectos importantes para a vulnerabilidade de grupos sociais. “Muitas vezes, as pessoas que moram próximas às indústrias e rodovias estão em situação de vulnerabilidade econômica e, consequentemente, têm menos acesso a serviços de saúde”, diz Marcelo. Ele acredita que, caso houvesse problemas de saúde relacionados à poluição em regiões com população residente mais abastada, a mobilização política pelo controle das emissões seria maior.
Segundo o “State of Global Air 2024”, em 2021, a poluição atmosférica contribuiu com cerca de 8,1 milhões de mortes ao redor do mundo, representando cerca de 12,5% do total registrado. A condição do ar é a segunda maior causa de morte para a população geral e para crianças abaixo de 5 anos, ficando atrás da pressão sanguínea alta e da subnutrição, respectivamente. O SoGA 2024 atribui à poluição do ar 30% das mortes por infecção respiratória, 28% das mortes por doenças cardíacas e 48% das mortes por doença pulmonar crônica.
As mortes provocadas pela poluição atmosférica podem ocorrer de maneira silenciosa e por vezes não são classificadas como tal. “A rinite pode ser considerada um efeito brando, mas a pessoa se entope de fármacos para tratar e pode ter uma falência renal”, afirma o biólogo Paulo Horta. Já Marcelo acrescenta que, em ambientes com grande concentração de poluição, uma maior quantidade de pessoas estão passíveis de ter ataques cardíacos.
Como forma de evitar problemas de saúde, a atividade física é aliada, porém em ambientes poluídos o efeito pode ser adverso. Ramon Cruz estudou os resultados das atividades físicas em ambientes poluídos e chegou a conclusão de que, após exercícios de alta intensidade, o corpo humano fica mais vulnerável a respirar poluentes, devido à hiperventilação. Como alternativa, atividades de menor intensidade, que não geram hiperventilação, podem ser feitas. “Apesar de tudo, ser fisicamente ativo ainda é melhor que ser sedentário em condições de ar poluído”, afirma Ramon.
Ele ainda declara, “vamos pagar um preço muito caro por conta da emissão dos poluentes”. O pesquisador se refere às vidas que são perdidas e afetadas pela poluição e os gastos econômicos que, segundo Marcelo Moreno, poderiam ser evitados caso houvesse maior controle das emissões. O artigo “Poluição do ar e internações hospitalares por doenças respiratórias em Volta Redonda (RJ)”, de coautoria de Marcelo, destaca que, entre 2008 e 2015, 9,8% das internações hospitalares do município poderiam estar relacionadas à exposição aos poluentes. Nas internações, segundo dados do artigo, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou R$ 11.769.391,93, representando 9% dos gastos no município. Segundo o Banco Mundial, em 2022, a estimativa de gastos com danos à saúde causados pela poluição atmosférica era de cerca de R$ 36 bilhões, equivalente a 5% do PIB global, aproximadamente.
Para além dos humanos, a poluição destrói a Terra
As consequências da poluição também afetam o funcionamento do meio ambiente. Marcelo afirma que a concentração de poluentes em localidades com maior adensamento populacional, normalmente, é maior que em cidades menos populosas, salvo em casos de presença de grandes indústrias em cidades menores. Porém, como lembra Paulo Horta, vivemos em um ecossistema que se comunica e a relação dos grandes e pequenos centros é íntima.
Paulo afirma que o processo de agravamento da poluição se inicia na domesticação do fogo e que vivemos na era do “Piroceno”, em que perdemos o controle do fogo e dos incêndios. Mas o grande evento para o aumento da poluição gerada pelo ser humano é a Revolução Industrial. Segundo ele, a queima do carvão e as possibilidades de desmatamento e mineração em massa são os principais motivos para o aumento da poluição.
O biólogo afirma que a natureza predatória do ser humano está causando desequilíbrio no ecossistema e causando a extinção de espécies de seres vivos. “Milhões de espécies estão em risco por causa da poluição, incluindo os próprios humanos”, alerta Paulo. Uma das consequências destacadas por ele é o efeito estufa, que é intensificado pela emissão de dióxido de carbono, um dos principais poluentes emitidos pelas indústrias e por veículos.
Uma das possíveis consequências do efeito estufa é o fim da Circulação de Revolvimento Meridional (MOC), uma corrente oceânica do Atlântico, que tem como uma das funções regular o clima do planeta. Sem ela, a Floresta Amazônica se tornaria um deserto, a temperatura da Europa diminuiria 3 graus por ano, causando uma nova Era do Gelo, e outros danos irreversíveis no clima planetário. “Caso não se controle a poluição, o cenário para os próximos anos é apocalíptico”, alerta Paulo.
O ar de baixa e alta qualidade
Para definir padrões sobre a qualidade do ar no Brasil, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) debateu por cinco anos os avanços e metas para o país, construindo a resolução nº 491/2018. O Conama definiu quatro etapas para redução de partículas finas e outros poluentes.

Para classificar o que são as partículas finas, a OMS usa uma escala granulométrica. Partículas com menos de 10 micrômetros são classificadas como partículas inaláveis em suspensão (MP10). Já partículas com 2,5 micrômetros são classificadas como partículas inaláveis finas em suspensão (MP2,5), consideradas mais perigosas para a saúde humana. A pesquisadora do Laboratório de Controle da Qualidade do Ar da Universidade Federal de Santa Catarina (LCQAr/UFSC), Rafaela Borth destaca que, “quanto maior a partícula, mais fácil para o corpo barrar ela. As MP10 são capazes de trazer complicações para olhos e garganta, mas as MP2,5 conseguem entrar na corrente sanguínea e trazer complicações para o coração, o pulmão e o resto do corpo”.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), todas as regiões do Brasil têm um ar considerado nocivo à saúde da população. Rafaela destaca que a qualidade do ar é considerada ruim no instante em que há mais partículas finas suspensas que o recomendado por órgãos reguladores. Ramon Cruz pondera que não existe nível seguro de poluição. “Não se pode garantir que, respirando um ar poluído, nada vai acontecer. Não existe margem de segurança”, afirma.
A OMS define que o limite desejável de partículas finas poluidoras no ar é de 5 microgramas por metro cúbico por ano, porém, em 2023, a média no Brasil foi de 9,9 microgramas por metro cúbico. O uso de combustíveis fósseis e indústrias são alguns dos fatores que mais impactaram na qualidade do ar no Brasil.
A pesquisadora afirma que o processo para a identificação da qualidade do ar ocorre em duas técnicas principais: uso de satélites e medições in loco com estações de monitoramento. Em outubro, foi instalada uma nova estação de referência de monitoramento na UFSC, no campus Trindade, em Florianópolis, em parceria com o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA/SC). A estação será controlada pelo LCQAr/UFSC, que já desenvolve estações de baixo custo. Segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), em 2020, o custo médio de uma estação de referência era de R$ 350 mil. Além das estações que realizam a averiguação da qualidade do ar, os pesquisadores também utilizam dados de satélites que, embora menos precisos que as estações, fazem modelagens matemáticas que auxiliam no controle.
O monitoramento nem sempre foi necessário. Paulo Horta reconhece que, por milhares de anos, os seres humanos tiveram contato com gases e partículas naturais, que não eram nocivos. “Somos fruto de um ar puro. Natural. Se não fosse assim, certamente teríamos sinais evolutivos de um ambiente hostil como mais pelos no trato respiratório, por exemplo”, destaca Paulo. Segundo o biólogo, a Revolução Industrial mudou a composição da atmosfera e acelerou a produção de substâncias químicas tóxicas capazes de produzir uma atmosfera inabitável.
Paulo também alerta para os efeitos das atividades humanas na qualidade do ar, como as queimadas florestais, o uso de combustíveis fósseis e as práticas industriais. “Estamos liberando uma quantidade de poluentes que a biosfera não consegue absorver com eficiência. Isso compromete a qualidade do ar e afeta a saúde das pessoas, além de prejudicar o equilíbrio do meio ambiente”, afirma o pesquisador.

Controlar para adiar
Segundo Dione da Conceição, especialista em controle da poluição atmosférica, o primeiro passo para controlar a poluição é monitorar a qualidade do ar. Com o monitoramento, é possível fazer previsões e entender a origem da baixa qualidade atmosférica. Caso uma grande massa de partículas poluentes esteja se deslocando, a ação é capaz de alertar a população para tomar medidas que reduzam os danos.
Rafaela Borth, pesquisadora do Laboratório de Controle de Qualidade do Ar da UFSC (LCQAr/UFSC), acredita que a baixa quantidade de estações de monitoramento no Brasil intensificou os danos causados pelas queimadas ocorridas entre agosto e setembro no país. Segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), em fevereiro de 2024, apenas 13 estados do país tinham estações automáticas de qualidade do ar. “Não tínhamos plano algum para contornar o que acontecia, porque não houve um monitoramento prévio”, afirma Rafaela.
Em Florianópolis, uma das principais fontes de poluição são as emissões veiculares de monóxido de carbono e óxidos de nitrogênio. Segundo a Secretaria Nacional de Trânsito (SENATRAN), em dezembro de 2023, a cidade tinha cerca de 400 mil veículos em sua frota. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, cerca de 425 mil moradores de Florianópolis tinham 20 anos ou mais. Sendo assim, a relação entre pessoas com idade legal para direção e veículos é quase de um para um.
O impacto dos veículos pôde ser comprovado de maneira prática durante a greve dos caminhoneiros de 2018. O Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) recolheu dados de três estações de controle de qualidade do ar de São Paulo durante os sete dias de paralisação. O bloqueio das estradas e a diminuição da circulação dos veículos causaram a redução de 50% do nível de poluição da maior cidade do país.
Diversas medidas e restrições podem ser adotadas para reduzir o impacto da poluição. “Algumas cidades europeias oferecem incentivos para evitar o uso de veículos movidos a combustíveis fósseis e melhoram o transporte público”, diz Rafaela. Um exemplo é a cidade alemã de Heidelberg, onde a prefeitura oferece um bônus de 1.000 euros aos habitantes que comprarem um veículo elétrico e mais 1.000 euros se instalarem uma estação de recarga em casa. Além disso, algumas cidades dos Estados Unidos, como Chicago, implementam iniciativas de Telhados Verdes, onde são plantadas árvores, arbustos e gramíneas no topo de prédios. Na China, filtros que impedem passagens de poluentes são instalados em chaminés industriais.
Já no Brasil, segundo Rafaela, muitas ações e regulamentações estão concentradas nas indústrias e montadoras. As montadoras enfrentam regulamentações para reduzir a emissão dos veículos já na fase de montagem. As indústrias, de modo geral, passam por licenciamentos de órgãos ambientais que analisam o impacto das emissões e propõem ações para redução, como aumentar o tamanho de chaminés, colocar filtros ou implementar outras técnicas de controle.
Além das medidas para as fontes de poluição, o Ministério do Meio Ambiente planeja um guia de qualidade do ar e cuidados pessoais para os períodos de piora nos índices. O LCQAr/UFSC está envolvido na elaboração do guia, que tem o objetivo de esclarecer o que precisa ser feito em momentos de crise. “Precisamos saber se devemos ou não sair de casa, usar o carro ou transporte público, ter aulas remotas… Enfim, precisamos de um plano efetivo”, afirma Rafaela.
Ramon Cruz entende que uma das medidas imediatas para reduzir os danos causados no corpo humano é se distanciar do trânsito em momentos de maior fluxo de veículos, mas alerta que a solução não é tão simples. O uso do transporte público pode ser benéfico para a condição atmosférica, mas o tempo de deslocamento pode aumentar, diminuindo a qualidade de vida da população. “Trocar o carro pela bicicleta pode ser bom, mas por um fator de gênero, as mulheres podem ficar mais expostas a violências”, pondera Ramon.
Medidas individuais não são suficientes para solucionar os problemas causados pela poluição e só as políticas públicas podem ter efetividade. “Encaro buscar medidas individuais como uma perversidade. A única medida é sair de perto de indústrias e outras fontes. Mas se eu morar lá? Devemos priorizar a indústria que a vida humana?”, reflete o pesquisador da Fiocruz, Marcelo Moreno. Ele acredita que as políticas públicas devem controlar as emissões de maneira efetiva e coordenada, e que as medidas devem ser coletivas. “A única medida individual é se juntar com quem está ao seu lado e pressionar o Estado para controlar de fato a poluição. Cada vida afetada ou perdida pela poluição vale mais que qualquer relação de capital”.