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Cartaz realizado por usuários do CAPS no dia da Luta Antimanicomial, em maio de 2024. / (Crédito: Ísis Leites)
Reportagens

“A gente não é uma pessoa, a gente é um número”

Apesar dos avanços na legislação e nas concepções de saúde mental, internações psiquiátricas involuntárias ainda são prática em Santa Catarina

Reportagem por Ísis Leites

Maria, 57 anos, acorda sem saber que este seria o dia de sua primeira internação e da maior crise que já teve. Mora sozinha há 9 anos em sua casa em Florianópolis. Um dos filhos vive na casa ao lado. Nessa manhã, inicia uma briga com os vizinhos, mas não lembra o motivo. Diz que foi algo banal. A discussão acalorada começa a perturbá-la de uma forma que nunca sentiu antes. “Eu disse que queria me matar, que queria morrer”. De repente, Maria pega uma faca na cozinha e a pressiona três vezes contra a barriga. O talher não penetra sua pele, mas a crise é tão forte que o filho presencia a situação e chama o SAMU. Maria toma uma dose de Diazepam para conter a crise. Mesmo com a chegada da ambulância, nada a acalma. Ela é amarrada e levada para o Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPQ). “Fiquei dopada com os remédios e fui”, relata. Após isso, não lembra de quase nada pelos três dias seguintes.

Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) apontam que o Brasil tem pouco mais de 29 mil leitos de psiquiatria, sendo 13 mil deles do setor privado. Em Santa Catarina, há 879 leitos ativos de saúde mental do SUS, sendo que desses, 705 estavam ocupados no mês de julho, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina. O IPQ é o único hospital público especializado em psiquiatria do Estado e possui 120 leitos, de acordo com a gerência de enfermagem do local. Hoje, o instituto atua com capacidade máxima e o que é chamado de “leito chão”, quando a pessoa dorme em um colchão no chão, excedendo a ocupação pré-definida. Em 2024, Maria ocupou um destes leitos.

Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPQ) no Dia da Luta Antimanicomial em maio de 2023 / (Crédito: Ísis Leites)

Ao chegar ao instituto, Maria leva uma injeção que a deixa inconsciente até o dia seguinte. “Apaguei e não sei nem como eu dormi e como acordei”. Os primeiros dias são os mais difíceis por conta das novas medicações. São sete pílulas por dia. Acorda, toma café, toma os remédios, volta a dormir, acorda, toma banho, volta a dormir, almoça e dorme de novo, o dia todo, na maioria dos dias. “É bem ruim, você não está raciocinando muito bem”, lembra Maria. Quando estava acordada, participou de atividades diferentes como horta, bingo e caminhada, mas em geral, ficava dormindo. Nos 23 dias em que ficou internada, a rotina variava entre dormir o dia todo e, em alguns dias, realizar atividades.

O que mais a chocou foi a presença de pessoas em situação de rua e usuários de drogas, que eram maioria na ala onde ficou internada. “Eles colocavam todos na mesma ala. Era horrível, as pessoas pareciam que estavam mortas por dentro”. Maria pediu para ser realocada para não presenciar estas situações, mas passou todo o período na mesma ala. “Tomara que eu nunca volte para aquele lugar. Que lugar horrível. Ninguém quer uma coisa dessas, é que nem estar na cadeia”. 

Segundo Fabiola da Silva Peres, gerente de enfermagem do IPQ, isso não ocorre mais. No início do ano algumas pessoas em situação de rua passaram pela instituição, por conta de leis municipais que foram implementadas. Porém agora as pessoas estão sendo encaminhadas para Comunidades Terapêuticas (CTs), onde conseguem realizar seus tratamentos, que majoritariamente são casos de desintoxicação por abuso de substâncias.

Para Maria, a única coisa boa que veio da internação foi seu laudo. Desde os 17 anos, ela sofre com depressão e ansiedade e durante a internação recebeu o diagnóstico de bipolaridade. O documento que atesta a condição dá direito ao pedido de um auxílio-doença, concedido pelo Governo Federal. Maria poderia ir embora antes se quisesse, mas precisava do laudo médico que só iria ser entregue com a alta. Diz que está acostumada com crises, mas não da forma como estavam ocorrendo recentemente. Já havia tentado suicídio em 2009, porém sabia que havia algo além dos episódios de ansiedade. “Falavam que era só depressão e ansiedade”. Segundo ela, o médico lhe disse que seus sintomas deveriam existir desde criança, ainda que ninguém tivesse identificado. Maria se acostumou com a dor: “A vida inteira eu passei por isso”.

Para pessoas com transtornos mentais, hoje, a internação psiquiátrica é uma opção, que não precisa ser a primeira. Segundo a lei 10.216, instituída na reforma psiquiátrica de 2001, a internação só é indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostram insuficientes. Isso significa que a pessoa pode ser internada caso serviços como assistência social, terapias, medicamentos e acompanhamento psicológico não resultem em uma melhora do quadro. O tratamento durante a internação, segundo a lei, deve incluir serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, entre outros. Mesmo assim, ainda há casos de pessoas que podem passar anos internadas, vivendo grande parte da vida em hospitais psiquiátricos.

A doutora em Antropologia Sabrina Del Sarto passou dois anos pesquisando as barreiras que impedem a desinstitucionalização de pessoas em leitos de saúde mental no Estado de Santa Catarina. Em sua pesquisa etnográfica, Sabrina identificou 89 pessoas internadas permanentemente em Santa Catarina. “Essas internações permanentes, que eu chamo, são as pessoas que vivem de forma permanente dentro do hospital psiquiátrico. Isso não poderia acontecer, mas acontece ainda, e muito”. 

No estudo, a antropóloga aponta que as condições das internações psiquiátricas eram diversas. Em um dos hospitais, as pessoas tinham quartos e pertences individuais. Em outros, os moradores viviam em pavilhões e com quase nenhum acesso a terapias. Permaneciam mais como moradores do que como pacientes. O tratamento presenciado pela pesquisadora era mais relacionado à prescrição de medicamentos, com uma média de 20 pílulas por dia para cada interno. Sabrina conta que ainda há injeção e outras situações chocantes. “É como se os filmes e os documentários que a gente assiste hoje estivessem se repetindo e quase ninguém soubesse, porque é uma realidade muito fechada”. Sabrina realizou sua pesquisa em dois hospitais de Santa Catarina, mas não revela os nomes para manter o anonimato das instituições.

A maioria das pessoas pesquisadas foi internada antes da reforma psiquiátrica, estando dentro dos hospitais há cerca de 35 anos. Muitas delas tiveram um longo percurso de internações: “A gente fala que é porta giratória, quando a pessoa é internada, tem alta, e é internada de novo”, elucida Sabrina. Como houve um rompimento com a sociedade, após um longo período isolada, há muita dificuldade para reintegração social. “Tem vários casos de moradores que voltaram pedindo para ser internados porque a própria instituição cria uma ideia de dependência e desumaniza aquela pessoa”. Sabrina conta que antes da reforma psiquiátrica era comum que, após diversas internações psiquiátricas, a pessoa retornasse sozinha para a instituição mesmo após a alta.

O artigo 5° da Lei da Reforma Psiquiátrica prevê que, em caso de dependência institucional, ou seja, quando o paciente está hospitalizado por um longo período, o governo precisa realizar ações específicas para planejar a alta, o que inclui reabilitação psicossocial. Isso não aconteceu em Santa Catarina. No caso do Centro de Convivência, que é uma instituição ligada ao IPQ, ainda há leitos de internações permanentes. Segundo a gerência de enfermagem do Instituto, há cerca de 80 a 100 pessoas ocupando os leitos como moradores.

Fabiola da Silva Peres, gerente de enfermagem do IPQ, conta que já chegaram a haver dois mil pacientes no Instituto, mas com o Programa De Volta Para Casa, a maioria foi direcionada para seus familiares. Nos casos em que a família não foi encontrada, os pacientes ficaram no Centro de Convivência e alguns estão lá a vida toda. O De Volta Para Casa foi instaurado no Brasil em 2003, época da reforma psiquiátrica. Hoje ele ainda funciona e oferece auxílio à reabilitação psicossocial de pessoas com histórico de internação de longa permanência, com mais de dois anos ininterruptos em hospitais psiquiátricos. O auxílio tem o objetivo de restaurar o direito de morar e conviver em liberdade, bem como promover a autonomia e o protagonismo dos usuários. Apesar da lei conter avanços, a realidade se impõe como um desafio a ser superado quando se olha para as pessoas que estão internadas até hoje.

Internação involuntária: a falta da família como rede de apoio

Rosana Moura, 53 anos, foi internada involuntariamente durante a pandemia de Covid-19. Em 2020, ela vivia o fim de um período de três anos de luto após perder a mãe. A perda havia sido enfrentada com terapias e acompanhamento do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Durante a pandemia, duas amigas cometeram suicídio com apenas dois dias de diferença entre os casos. “Aquilo para mim foi o fim”, lembra. Depois da morte da segunda amiga, Rosana passou por uma crise no apartamento onde morava, em Florianópolis. Ela vivia sozinha e as únicas pessoas que conviviam com ela eram os moradores do prédio. Rosana conta que estava desorientada, que os vizinhos tentaram ajudá-la, mas diz que não lembra de nada desse dia e tudo que sabe foi através de relatos de outras pessoas. 

Rosana possuía herpes no rosto e, com os gatilhos emocionais, as feridas pioraram. “Eu estava com herpes no olho, e não abria de tanto que eu cutuquei”. Começou a arrancar a própria pele. As mutilações ficaram aparentes, às vezes até sangravam. Sem saber o que fazer, a síndica do prédio chamou o SAMU. Rosana conta que foi com eles tranquilamente, pois achava que estava sendo levada para o CAPS. Ao chegar, descobriu que estava no IPQ.

A memória do tempo da internação é falha. Rosana consegue lembrar apenas de alguns flashes dos primeiros dias. Conta que acordou a primeira vez cheia de marcas roxas no corpo por conta das amarrações. Estava com os braços e pernas amarrados na cama. Depois de uma semana, conseguiu lembrar mais alguns detalhes. Afirma que ninguém explicou o porquê da internação, ou o que eram as medicações que tomava. “A gente não é uma pessoa, a gente é um número”, desabafa. 

Durante a estadia no Instituto, Rosana tentou sair. Pedia para todos os médicos, enfermeiros e assistentes sociais para ir embora de lá. Os profissionais não permitiriam que ela saísse sem a assinatura de um familiar. A única familiar estava em São Paulo, e não conseguiu ajudá-la. Ela então começou a ser mais participativa, fazer trabalhos na cozinha e ajudar as enfermeiras. “Eu era sozinha, eu não tive visitas”. Rosana acredita que não havia necessidade de ter ficado 29 dias. Foi somente após uma assistente social ouvir seu caso que ela conseguiu a alta. No IPQ há dois tipos de alta: uma na qual o médico autoriza a liberação, a outra quando o familiar responsável pela internação faz o pedido de saída do paciente.

Segundo a lei 10.216, o término da internação involuntária se dá somente por solicitação escrita do familiar ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo médico responsável. O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural e médico psiquiatra, Marcos de Noronha, explica que a média de internação psiquiátrica no Brasil é de 15 dias. A Secretaria da Saúde de Santa Catarina afirma que o tempo médio de internação no Estado também é de 15 dias. Alguns hospitais psiquiátricos conseguem realizar o tratamento em apenas uma semana. Isso tudo envolve serviços de terapias, atividades de lazer e atuação dos médicos com as famílias dos pacientes, com o fim de promover uma reintegração social gradativa após a internação. Para Marcos, a família é essencial no tratamento, pois é a referência mais forte que os pacientes possuem.

A ex-presidente da Associação Alegremente de usuários do CAPS e defensora da luta antimanicomial, Carla de Oliveira, defende que não deveriam existir casos de internação involuntária sem a autorização da família dos pacientes. “Um psiquiatra vai lá e diz que vai me internar […] É justo isso? É humano?”, questiona. Carla acredita que a internação involuntária desumaniza o paciente e tira o direito da família. “Se ela (a internação) é involuntária, ela não é humanizada”.

Para o movimento antimanicomial, as internações psiquiátricas acabam sendo uma forma de retirar as pessoas da sociedade. Segundo Carla, ninguém gostaria que a internação fosse uma opção, ela acontece por causa da sociedade: “Por não se ter uma gestão comprometida com a saúde mental, que realmente diga: vamos investir, vamos fazer a diferença”. Para a especialista, a internação involuntária não oferece a oportunidade de uma complexidade de tratamento, pois “a primeira coisa que se faz é medicar e tacar uma injeção para silenciar”. Além disso, Carla avalia que quando a pessoa é internada involuntariamente, a primeira perda é do lugar da escuta. “O profissional não pára e diz: Oi, quem é você? Como você está se sentindo? Por que você está assim?”

A psiquiatria e as internações ao longo da história em Santa Catarina

As discussões sobre psiquiatria chegaram ao Brasil em torno de 1830, quando era mais comum o uso do conceito de loucura e esta era vista como alienação dentro da Medicina. “Saúde mental é um termo que vai surgir depois”, explica a historiadora especialista em história da psiquiatria, Ana Terra de León. A pessoa considerada louca não podia participar da vida civil, votar ou cuidar dos próprios pertences. Em 1853, foi fundado o primeiro hospício do país, o Asilo Pedro II. Alguns anos depois, a nomenclatura “alienados” cai em desuso, mas a noção de que a pessoa não poderia cuidar de si mesma permanece. A historiadora Ana Terra reflete que o país foi moldado desta forma, o que diz muito sobre as práticas atuais. “É muito difícil a gente quebrar uma cultura que já vem construída desde o início do século XIX”. Ela acredita que os grandes embates da atualidade sobre saúde mental se dão por conta deste histórico.

Em Santa Catarina, os dois primeiros hospícios surgiram em Brusque e em Joinville. Após o fechamento dos dois hospitais, em 1941, foi inaugurado o Colônia Santana, onde hoje é o Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPQ). Os pacientes das duas primeiras instituições foram transferidos para o Colônia Santana. O hospital surgiu a partir de uma política nacional do Estado Novo, com a tentativa de implementação de uma rede de “higiene mental”, segundo a historiadora. Era um hospício para atender a demanda do Estado todo, e possuía um modelo em que o trabalho agrícola era a principal linha de tratamento. A historiadora conta que há registros de dez mil pés de laranja como fruto do trabalho dos pacientes do hospital. A obrigatoriedade do trabalho originava-se da ideia de que “essas pessoas eram consideradas improdutivas e, além delas não produzirem, causavam ônus para o Estado, porque o Estado tinha que gastar com elas”.

Foto histórica do Hospital Colônia Santana. Ano desconhecido. / (Crédito: Revista hcsm)

Somente com a chegada dos primeiros enfermeiros, no final da década de 1960, que ocorreram as primeiras mudanças no hospital. Ana Terra relata que os enfermeiros se chocavam ao entrar na instituição, pois lá não havia tratamento. “As pessoas ficavam lá jogadas, trabalhavam forçado e recebiam medicação, eletrochoque”. Segundo a historiadora, o hospital atuava em uma política pautada na eugenia. “Ela era a espinha dorsal da psiquiatria no início do século XX no Brasil como um todo. Se a gente não olhar para isso, historicamente, a gente vai cair sempre nos mesmos erros”.

Na década de 1980 e 1990 começam mais mudanças no hospital por conta das discussões sobre a lei da reforma psiquiátrica. Ana Terra explica que isso se dá após começarem a surgir no Brasil várias concepções que contestam o modelo manicomial, o modelo do isolamento. Em 1996, o Hospital Colônia Santana passa por uma série de reformas e se torna o IPQ. Além disso, também foi formado o Centro de Convivência, espaço para pacientes de longa duração que não conseguiram reinserção social.

Ana Terra explica que o IPQ foi, por muito tempo, a única instituição psiquiátrica do Estado e, por conta disso, os atendimentos de saúde mental sempre se organizaram em torno dele. Para ela, deveriam existir mais serviços como residenciais terapêuticos e CAPS, com equipes multidisciplinares. “A existência do hospital é a justificativa para não fazer mais CAPS. Precisamos de mais CAPS, pois só o hospital não dá conta”.

A rede de serviços de saúde mental como alternativa à internação

A doutora em sociologia e analista técnica de políticas sociais no Ministério da Saúde, Mariana Schorn, acredita que um dos principais desafios para a saúde mental em Santa Catarina é a falta de organismos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Segundo ela, há poucos CAPS, poucas unidades de acolhimento e poucos residenciais terapêuticos em relação a outros Estados do Brasil. Em Santa Catarina, há 111 CAPS, incluindo todas as modalidades, quatro Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e somente uma unidade de acolhimento. Isso para um Estado que possui 295 municípios. A ampliação desta rede é um dos mecanismos defendidos pela luta antimanicomial como ferramenta para a diminuição de internações psiquiátricas.

CAPS II Ponta do Coral realiza evento para o Dia da Luta Antimanicomial, em maio de 2024. /(Crédito: Ísis Leites)

Em Florianópolis há somente quatro CAPS, para atender uma cidade com 508.826 habitantes. Em Curitiba, por exemplo, cidade com 1,7 milhões de habitantes, há 13 CAPS. Carla de Oliveira, da Associação Alegremente, acredita ser muito pouco para a demanda de saúde mental do município e entende este serviço como essencial. “O CAPS é fundamental, porque é exatamente o que a gente quer. Isso é um tratamento qualificado, com profissionais qualificados, uma escuta qualificada e em liberdade”.

Com uma rede qualificada, haveria mais oferta de acolhimento das pessoas, sem a necessidade de uma internação em caso de crise. Carla reflete que, se a pessoa tem uma crise em um domingo ou feriado, a única opção de encaminhamento é para o hospital psiquiátrico. “A internação acaba sendo a única opção, e deveria ser a última”. Para ela, deveria haver dispositivos 24 horas com equipes multidisciplinares nos moldes do CAPS.

Em junho deste ano foi inaugurado o CAPS 24h em Florianópolis. O dispositivo serve para atendimento de urgência e emergência de saúde mental e atendimento especializado aberto à comunidade (CAPS tipo III). A analista Mariana Schorn entende que o CAPS 24h deve servir como um substituto ao hospital psiquiátrico. “Eu espero que o efeito seja de substituição, que a gente tenha cada vez mais atenção dada no serviço comunitário, porque está inserido na comunidade”. A diferença maior que se dá é que no CAPS o atendimento é personalizado, os profissionais costumam já saber o histórico do paciente e o que funciona em caso de crise. No caso dos hospitais psiquiátricos, há um distanciamento da pessoa, o que dificulta o tratamento ideal.

Os CAPS oferecem diferentes atividades terapêuticas, como psicoterapia individual ou em grupo, oficinas, atividades comunitárias e artísticas, acompanhamento de uso de medicações e atendimento domiciliar. Um diferencial do tratamento é o fortalecimento dos vínculos do usuário com a comunidade e a família. Já nas internações há uma abordagem voltada para o tratamento medicamentoso e a terapia ocupacional. Como os pacientes chegam em estado de crise, o que se tenta alcançar é a alta. Carla explica que é possível ter acolhimento sem a necessidade de uma internação. Ela dá o exemplo do Projeto Terapêutico Singular (PTS): “É um trabalho feito para o indivíduo, respeitando a subjetividade e a singularidade de cada um. Com internações a gente não tem isso”. O PTS é um projeto do CAPS no qual uma equipe interdisciplinar realiza discussões de caso para implementar um plano de assistência individualizada e contínua, de acordo com a demanda do paciente e de sua rede de apoio.

Oficina de arte realizada no CAPS II Ponta do Coral no Dia da Luta Antimanicomial de 2024. / (Crédito: Ísis Leites)

“Se a gente aumenta a RAPS e deixa ela bem forte, é o caminho para a gente poder fechar o hospital psiquiátrico”, analisa Mariana. Ela entende que se a rede está fragilizada, as pessoas só terão a alternativa de ir para o hospital psiquiátrico. Segundo a Superintendência do Fundo Estadual de Saúde de Santa Catarina, o orçamento do cofinanciamento estadual aos CAPS era de aproximadamente R$ 2 milhões em 2023. Carla de Oliveira acredita que o financiamento é essencial para a ampliação da rede. Essa é uma das diversas dificuldades no estado para atingir um tratamento de qualidade para pessoas com transtornos mentais.

Carla, que também é usuária do CAPS, defende que o tratamento humanizado só se dá com a escuta dos usuários. “Só quem vai saber o que é melhor para nós, somos nós”. Ela acredita que a sociedade enxerga as pessoas com transtornos mentais como inúteis. “Se você tem um transtorno, você não é mais ninguém, você não tem capacidade”. Para um tratamento humanizado, é preciso compreender a visão dos pacientes, com uma escuta ativa por parte de equipes multidisciplinares. Carla conta que é isso que se deseja. “Poder ter crises sem medo, porque hoje até para ter uma crise, você tem medo. Você tem medo de uma internação”.


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